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CAPÍTULO 2 MÚSICA E SIGNIFICADO

2.1 ESTRUTURA E SIGNIFICADO EM MÚSICA

Até meados do século XVIII o paradigma estético da música era a estética do sentimento, derivada da doutrina dos afetos, segundo a qual a expressividade musical estaria na representação e descrição das paixões, na sua capacidade de mover os afetos (DAHLHAUS, 1991, p. 33). A música era considerada uma arte mimética, capaz de emular sentimentos através de recursos específicos reconhecíveis.

Os representantes da estética da imitação do começo e meados do séc. XVIII, o Abbé Dubos e Charles Batteux, que tentaram reduzir todas as artes à verdade única e indivisível de que a arte é mimesis, consideravam a música vocal como imitação da modulação oral e a instrumental como pintura sonora. Inclusive Rousseau, que menosprezava a música instrumental, atribuía em 1768, no Dictionaire de Musique (225) ao ‘génie du musicien’ o seguinte: ‘il peint tous les tableaux par des sons’. Enquanto pictórica, a música instrumental estava legitimada: imitava, ainda que fosse de forma ingénua [sic] e banal (DAHLHAUS, 1991, p. 41).

Neste contexto, a música instrumental ocupava uma posição valorativa modesta diante do público, principalmente em comparação com a ópera e outros gêneros vocais. A arte era considerada pela burguesia como um meio de comunicação de problemas de moral,

portanto, para Dahlhaus, a música instrumental era tida como uma modalidade deficitária da música vocal devido à sua carência de conceitos e imagens (DAHLHAUS, 1999, p. 8-10).

No século XIX, diferentes autores passaram a considerar justamente a carência referencial da música como sua principal qualidade, defendendo que a música instrumental seria “puramente poética” justamente porque faltava a ela um sujeito, um objeto e um propósito definido (MICZNIK, 1999, p. 210). Isto levou ao desenvolvimento do princípio da autonomia, segundo o qual a música seria a revelação do “absoluto” porque havia se desvencilhado dos elementos referenciais e afetivos, surgiu como oposição à estética do sentimento, operando uma mudança do paradigma estético musical durante o século XIX (DAHLHAUS, 1999, p. 10).

Uma obra chave para os desenvolvimentos teóricos acerca da música absoluta foi o livro Do Belo Musical de Eduard Hanslick, publicado originalmente em 1854. Para o autor, a música tem a capacidade, ainda que restrita, de suscitar sentimentos e pensamentos, mas sua beleza se encontra no próprio conteúdo musical, que ele chama de “formas sonoras em movimento” (HANSLICK, 2011, p. 41). Como identifica Nattiez (2005, p. 119), este argumento tem duas dimensões, uma de caráter semiológico e outra de caráter estético: na dimensão semiológica, Hanslick admite que a música pode evocar sentimentos que são externos à ela, portanto o autor não pode ser considerado um formalista “puro”. No entanto, este rótulo se perpetuou devido à dimensão estética de seu argumento, de que a beleza da música está reduzida à sua “imanência”.

A ideia de música programática emergiu também em meados do século XIX, como contraponto à estética do absoluto, onde compositores buscavam representar objetos e eventos através de sua música, derivando a lógica da composição desta tentativa (SCRUTON, s/n, 2014b). Para Scruton (2014a, s/n, tradução minha) “Tanto a Programm-Musik de Liszt quanto a Gesamtkunstwerk de Wagner surgiram da visão de que toda música era essencialmente significativa e nenhuma música poderia ser considerada mais absoluta do que qualquer outra”.

As definições acerca do termo música programática são imprecisas, contudo, de uma maneira geral são duas as tendências principais. Uma primeira, mais presente nos discursos de senso comum, entende como música programática todo o tipo de música que evoca referências extramusicais, sejam elas de caráter descritivo ou emoções subjetivas. Scruton (2014b) credita esta tendência, em parte, ao musicólogo alemão Friedrich Niecks, que nas

suas publicações do início do século XX negligenciou a “vital distinção estética entre representação e expressão”. Para Niecks toda a música entre os séculos XVII e XIX, com ou sem texto ou programa, é programática (MICZNIK, 1999). Desta maneira, o termo não tem muita utilidade, já que abarca uma diversidade excessivamente grande de manifestações musicais.

Na segunda tendência, mais usual na literatura musical especializada, o termo música programática define um tipo de música instrumental surgido no século XIX, que tem como característica a representação descritiva e/ou narrativa de um evento, imagem, ideia, etc. Para Franz Liszt, a música programática é aquela cuja lógica interna é derivada do objeto que a composição tenta representar, de seu programa, sendo o poema sinfônico seu principal representante (SCRUTON, 2014b, s/n). Ao defender seu conceito de música programática, Liszt se apoiou na polissemia da palavra “poética”, utilizada por teóricos da música absoluta como a capacidade da música de expressar ideias de maneira autônoma, fundindo este significado com a noção de que a música precisa de uma ideia “poética” que permita ao compositor comunicar-se de maneira mais precisa (MICZNIK, 1999, p. 210).

O principal aspecto da música programática é a “intenção declarada” do compositor em guiar a percepção do ouvinte através da inserção física de uma indicação programática junto com a publicação da partitura (op. cit., p. 213). Os tipos de indicações podem variar a “força” com que a percepção do ouvinte é conduzida, por exemplo: um título pode dar uma ideia geral de caráter para a peça, já uma história detalhada pode guiar o ouvinte na associação de eventos da história com determinados momentos da música ou até mesmo traçar um paralelo entre os dois tipos de narração. Como indica Micznik (op. cit., p. 214, tradução minha) “o programa, uma vez declarado, não está mais relegado ao papel de uma ‘história anedótica das origens’ mas se torna parte da apreciação estética do ouvinte”.

Dentre as inúmeras dicotomias que fazem parte da musicologia (erudito/popular, tonal/modal, mimese/diegese, etc.), uma em particular permeia toda a análise deste trabalho: a relação entre estrutura e significado musical. Esta é uma discussão histórica que precede o estabelecimento da disciplina nos seus moldes atuais e remete à oposição entre música absoluta e música programática.

A ideia de música absoluta foi a predecessora do formalismo na análise musical (FUBINI, 2007, p. 24), estabelecido no final do século XIX e que se manteve importante ao longo da história da disciplina. Desde então, os teóricos considerados formalistas se

preocuparam em demonstrar como os diversos parâmetros musicais operam no funcionamento da estruturação da música (KERMAN, 1980, p. 315). Desta maneira, a musicologia tradicional se ocupou durante muito tempo principalmente em encontrar maneiras de descrever o “significante”, mas deixou de lado o “significado” (GRABÓCZ, 2009, p. 21).

Esta dialética remete ao que Bastos (2013, p. 32) denomina de “dilema etnomusicológico”, segundo o qual a música seria formada por dois planos de abordagem: um primeiro que estaria no domínio dos “sons”, instância portanto da musicologia, e outro que seria o do “comportamento”, de competência da antropologia. Quando Merriam (1969, p. 226, tradução minha) afirma que “O sistema sonoro tem estrutura, mas ela deve ser observada como produto do comportamento que a produz”, ele estabelece uma relação de determinação do plano sonoro pelo plano do comportamento. Esta visão de que a música seria um mero reflexo da cultura que a produz é denominada por Bastos (2013, p. 33) de “paradoxo etnomusicológico”. Ao reconceituar a etnomusicologia como “estudo da música como cultura” no final dos anos 1970, Merriam abre o caminho para a superação do supracitado paradoxo, entendendo “o sentido da música (cultura) como algo codificado em sua própria estrutura (música como cultura)” (BASTOS, 2013, p. 61). Sendo assim, a música seria mais do que um mero reflexo, mas um campo no qual a cultura se articula e os significados são também produzidos. A divisão entre estrutura e significado se torna portanto irrealizável, e nesta dissertação se planeja adotá-la como estratégia metodológica que visa facilitar a aproximação do analista ao texto musical.

Os diversos teóricos que se dedicam a esta problemática tem encontrado diferentes maneiras de abordar a questão, vou me limitar a comentar aqui os autores que tem trabalhado com as teorias das tópicas e da narratividade. Agawu (1991, p. 23) considera que no universo da música do classicismo há um jogo entre dois diferentes processos de semiose, a “introversiva” e a “extroversiva”. A primeira diz respeito à um tipo de referencialidade intramusical formada por signos “puros” (op. cit., p. 51) que não carregam uma associação extramusical. Através da análise schenkeriana o autor examina a atuação de elementos harmônicos e melódicos na dinâmica da peça e também sua estratégia retórica, por meio do paradigma do começo-meio-fim (AGAWU, 1991, p. 51). A semiose extroversiva, por outro lado, lida com os elementos musicais que carregam associações extramusicais, que no caso de Agawu são as tópicas musicais.

Os autores que estudam a semântica musical, incluindo aqueles pertencentes às correntes de tópicas e narratividade musical, “percorrem um caminho precário entre ‘interpretação’ semântica e ‘análise’ estrutural” (MCKAY, 2007, p. 162, tradução minha, itálico no original). A forma de apresentação da frase citada, que no seu contexto fala especificamente da teoria das tópicas, mas acredito ser possível sua extrapolação para os estudos de significação musical em geral, revela algumas questões centrais para esta discussão. Ao colocar entre parênteses as palavras “interpretação” e “análise”, McKay parece questionar a própria definição dos conceitos como eles são entendidos na musicologia tradicional. O primeiro foi visto durante muito tempo como algo subjetivo que não condiz com o suposto cientificismo da disciplina de teoria musical, já o segundo esteve associado com a prática de demonstrar as relações objetivas entre os elementos constituintes da obra, dissociados de sua historicidade. Ao colocar a conjunção aditiva “e” em itálico, Mckay reforça o caráter de dependência entre interpretação e análise nos estudos sobre o significado musical. Como argumenta Guck (1998, p. 158), a objetividade do processo analítico nunca foi alcançada, a análise musical é em si mesma um ato interpretativo.