• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 MÚSICA E SIGNIFICADO

2.4 SIGNIFICADO MUSICAL E HERMENÊUTICA

Agawu (1991, p. 11-14) identifica duas correntes de autores com trabalhos de orientações semióticas em música: a primeira ele denomina de empiristas-taxonômicos e outra de semanticistas. O principal representante da primeira é Jean-Jacques Nattiez, principalmente nos seus trabalhos iniciais, nos quais o autor se apoia na conhecida tripartição entre os níveis poiético (o processo de produção da obra), estésico (o processo de recepção) e neutro (a materialidade da obra). De acordo com Agawu, a ênfase de Nattiez no nível neutro parece eliminar decisões a priori do analista e confere um caráter cientificista ou empírico para a análise musical (op. cit., p. 12). O semanticistas, exemplificados por Wilson Coker, Frits Noske, David Lidov, Leonard Ratner e Wye Allanbrook, que também abordaram questões de significado em música utilizando noções de funcionamento de signos, parecem ter se preocupado mais com as questões de interpretação e não somente com a identificação de signos musicais (op. cit., p. 12-13).

Esta diferenciação entre as duas correntes supracitadas demonstra que havia, pelo menos à época do trabalho de Agawu, uma diferenciação entre a tarefa semiótica de

identificação de signos musicais, mais científica ou objetiva, e de interpretação semântica do discurso, menos científica ou mais subjetiva. O diagnóstico de Kramer (2011, p. 21-25) sobre os caminhos seguidos pela musicologia com relação ao sentido musical chega a conclusões parecidas. Um destes caminhos é o semiótico, pelo qual se assume que o sentido da música é construído com sinais que devem ser reconhecidos e seu funcionamento explicado. No caminho hermenêutico, o sentido é entendido não como intrínseco ao objeto interpretado, mas envolve “a agência de um intérprete que é mais que um decodificador, é até mesmo criativo” (op. cit., p. 21, tradução minha). Hatten coloca o problema nos seguintes termos:

Na medida que uma competência estilística [formada pelos princípios gerais e

restrições de um estilo] se move além de um ‘léxico’ de tipos, ou uma ‘gramática’

dos seus sentidos, para uma ‘poética’ das suas significações, a competência se torna mais e mais difícil de capturar sistematicamente. Deste modo, uma tentativa de reconstruir uma competência estilística deve admitir um componente especulativo considerável. Este componente eu chamo de hermenêutico, e é caracterizado por um processo inferencial criativo que fornece hipóteses sobre potenciais correlações e interpretações. Hipóteses hermenêuticas podem ser retiradas de qualquer parte do universo cultural contemporâneo, incluindo conexões ou evidências de outras artes, outros reinos de discurso, informação biográfica – em resumo, qualquer área relevante que possa contribuir para o campo expressivo de um estilo ou obra musical (HATTEN, 1994, p. 227-228, tradução minha).

O autor destaca o papel do sujeito que interpreta na construção do conhecimento sobre música. O analista/intérprete é um sujeito criativo, que fornece suas interpretações baseado em informações retiradas de diversos meios e relacionadas por ele em forma de conhecimento sobre o objeto analisado. Desta forma, o processo de análise do significado musical não é um processo científico no mesmo sentido das chamadas ciências “duras”, apesar de algumas teorias tratarem o assunto como tal, mas um nuançado processo interpretativo no qual a subjetividade tem papel preponderante.

A tarefa do analista contemporâneo ao interpretar os significados da música do passado é descobrir os códigos usados por uma cultura específica para compreender os sinais presentes em uma obra. O primeiro passo para isso é formular hipóteses sobre um fenômeno, como um signo, cujo código de interpretação é desconhecido. Esse processo foi denominado por Peirce como “abdução”, e é a maneira pela qual o pensamento científico progride em busca de conhecimento novo (KLEIN, 2004, p. 58). A inferência de hipóteses é a base para a interpretação de significados em música, que vem seguida busca de exemplos em outras obras que podem, de maneira indutiva, validar ou não estas hipóteses (op. cit., p. 59). Outras maneiras de validar ou não as hipóteses interpretativas, que transparecem ao longo deste

trabalho, são a avaliação de condições culturais que envolvem a obra e o processo poiético do compositor (op. cit., p. 61). As discussões do capítulo I e as análises que relacionam as marcações do programa na partitura que aparecem no capítulo III são exercícios neste sentido.

A abordagem do significado de obras de outras épocas não implica em uma recuperação objetiva dos significados do passado. O analista coloca em jogo sua interpretação atual baseada em informações, recolhidas em diferentes meios, de elementos que ele percebe nas obras do passado.

A interpretação não é nem uma recuperação do significado do passado nem uma imposição do significado do presente. É colocar o significado em ação, por meios verbais ou outros, cujo objetivo é combinar a diferença do passado com a abertura do presente. Esta atividade nunca deixa de estar em movimento, mesmo quando o objeto da interpretação, seja um texto, evento ou coisa, é ele mesmo do presente (KRAMER, 2011, p. 7).

A tentativa de redescobrir como as pessoas compreendiam uma obra musical do passado na sua época original, ou uma “hermenêutica da recuperação” (KLEIN, 2005, p. 54), decorre em um outro problema. A postulação de um ouvinte competente, aquele que possui em seu mundo musical os códigos necessários para uma compreensão “correta” de uma obra de um estilo específico, é na verdade uma projeção do próprio analista que interpreta, ou seja, uma pessoa em uma determinada cultura que ouviu uma determinada obra da mesma maneira que o analista (op. cit.). Como complementa Kramer (2011, p. 16, tradução minha) “Uma atividade [como a interpretação] que é arbitrária e fantasiosa no presente não se torna racional e objetiva simplesmente pelo recuo ao passado. A própria existência de uma história da recepção pressupõe o valor de atos de recepção individuais(lizados)”.

A perspectiva do analista do presente, que permite que se organize o passado em códigos de interpretação, coloca o problema hermenêutico de que esta perspectiva não é a mesma daqueles indivíduos do passado, para quem o futuro é imprevisível (KLEIN, 2004, p. 74). É difícil pensar que nós podemos eliminar o tempo e voltar aos códigos do passado sem a contaminação do futuro transcorrido entre a época da obra e a do analista, mas a busca da compreensão da obra no seu contexto original é um dos passos importantes para interpretar suas consequências (op. cit.).

Sendo assim, nas análises do próximo capítulo adota-se uma abordagem interpretativa que concilia a teoria das tópicas e da narratividade. A partir da identificação de agentes musicais no plano temático, assim como de tópicas musicais, são realizadas interpretações da

narratividade em Uirapuru, demonstrando como o roteiro do argumento e a forma musical estão relacionados. A partir de uma abordagem fundamentada na análise narrativa de Grabócz (2009), as interpretações demonstram os elementos do argumento selecionados pelo compositor para representar musicalmente a história através da música.

A teoria das tópicas colocada ao lado da teoria da narratividade pode levar à ideia de que a primeira está mais relacionada com a decodificação de signos musicais, ou seja, com a objetividade científica, e a segunda associada com a interpretação do discurso musical, mais hermenêutica. Como demonstra Hatten (1994, p. 33) as teorias da linguagem não são consensuais sobre até que ponto a decodificação de sinais e a interpretação de acordo com o contexto são autônomas. Acredito que ambas as tarefas são essencialmente interpretativas, e portanto ambas tem seus riscos. Sua associação é uma maneira de levar adiante o ato interpretativo, como aconselha Klein: “Se as leituras analíticas hermenêuticas da música são perigosas, a cura para elas não é interpretar menos, mas interpretar mais” (KLEIN, 2013, p. 23).