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CAPÍTULO 1 VILLA-LOBOS E O CONTEXTO DO INDIANISMO, NACIONALISMO E

1.6 UIRAPURU EM CONTEXTO

Em 1934 chegou ao Brasil o bailarino ucraniano Serge Lifar, na época diretor e primeiro bailarino do balé da Ópera de Paris, que havia sido convidado para participar da temporada lírica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro (PEREIRA, 2003, p. 113). Juntamente com Victor de Carvalho, ele escreveu o argumento de um bailado com tema indígena intitulado Jurupari,

que serviu de base para uma coreografia elaborada sobre o Choros n. 10 (1926) de Villa-Lobos (NEVES, 1977, p. 71). De acordo com uma notícia do jornal Correio da Manhã de 21 de setembro de 1934, a obra foi apresentada no dia 19 anterior em um espetáculo que contava com outros bailados, entre eles dois bailados brasileiros de temática indígena: Amazonas, também de Villa-Lobos, e Imbapara, de Oscar Lorenzo-Fernandez.

Até o final da década de 1920 o Brasil não possuía uma tradição de grupos de balé, os grandes espetáculos vinham da Europa e traziam consigo seus artistas, cenários e técnicos (FARO, 1988, p. 19). A primeira escola brasileira de balé foi criada por Maria Olenewa em 1927, sendo oficializada como Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro em 1936 (PEREIRA, 2003, p. 118). A atuação deste grupo integrou a política estado-novista de nacionalização da arte que estimulou a criação de um balé com características brasileiras, incentivando o desenvolvimento da ideia de um “bailado brasileiro” na década de 1930 (op. cit.).

Fizeram parte do repertório deste grupo várias obras com diferentes temáticas nacionais, com coreografias sobre músicas antigas e também obras compostas como balés naquele período. As principais obras nacionalistas executadas estavam calcadas na temática afro-brasileira, como Maracatu do Chico Rei (1933) e Leilão (1941) de Francisco Mignone, regionalista, como Noite de Festa de Arraial (s.d.) de Francisco Braga, e principalmente indianista: Amazonas, Uirapuru e Jurupary de Villa-Lobos, Imbapara (1929) e Amaya (1930) de Lorenzo-Fernandez e Iracema (s.d.) de João Octaviano (op. cit). As duas fotos abaixo são de apresentações de Uirapuru como bailado no ano de 1940.

Figura 1 - Cena do Bailado “Uirapurú”. Teatro Colón, Buenos Aires, 1940. Colado no verso um recorte de programa com as informações “8- Uirapurú (lenda do pássaro encantado). Bailado brasleiro em um acto. Texto e música de H. Villa-Lobos. Coreografia de Vaslav VELTCHEK, parte musical do maestro Martinez GRAU. Personagens: O índio feio Vaslav VELTCHEK. O índio bonito - Juko Lindberg. A índia caçadora – Madalena ROSAY. Jovens índias – corpo de baile do Teatro Minicipal. Regisseur de baile – Americo Pereira”. No verso manuscrito “Foto L. Sudak / Teatro Colón / Buenos Aires”.

Figura 2 - Vaslav Veltchek no bailado Uirapuru em 1940. Com a dedicatória “Au Grand Villa-Lobos un souvenir de Uirapuru e avec tout reconnaissance de m´avoir Donner realiser ce chef-d´ouvre de La musique brésilienne. Affectueusement. Vaslav Veltchek. Rio, 1940”

Fonte: Acervo do Museu Villa-Lobos

A literatura sobre Villa-Lobos é extensa e diversificada, contando com obras que foram escritas desde a primeira metade do século XX, ainda durante a vida do compositor, até uma importante produção bibliográfica recente. As primeiras biografias22, apesar de todos os seus

méritos, contribuíram para a disseminação de uma imagem romanceada acerca da figura de Villa-Lobos (muitas vezes incentivada pelo próprio compositor) que exaltava as aventuras de suas supostas viagens pelo interior do país, sua personalidade forte, a instintividade do processo de composição, seu nacionalismo inato e seu talento musical23. Como demonstra

Amorim Neto (2007), Villa-Lobos exercia um posicionamento coercitivo sobre os

22 Villa-Lobos: compositor brasileiro, de Vasco Mariz, publicada em 1949 e O Romance de Villa-Lobos, de Carlos de Paula Barros, publicada em 1950.

pesquisadores com quem mantinha contato direto, determinando de certa maneira o que seria publicado sobre ele. Mesmo após a sua morte, as publicações demonstram que os pesquisadores não haviam conseguido um distanciamento suficiente para que surgissem abordagens mais críticas das obras e da trajetória de Villa-Lobos.

A virada para o século XXI marca o início de uma série de publicações que trouxeram novas perspectivas para compreender a obra e a trajetória do compositor. Esta revisão pela qual vem passando a literatura sobre Villa-Lobos tem contribuído para que conceitos como o seu alheamento às correntes estéticas do período e que suas obras careciam de coerência formal sejam descontruídos24. Ao confrontar as informações fornecidas por diferentes autores

que foram discutidas ao longo deste capítulo é possível situar melhor Uirapuru no contexto da produção do compositor.

Uma série de fatores levam a crer que a peça não tenha sido concebida, em sua forma final, na data de 1917. Primeiramente, como já apontado por outros autores, é inexplicável o hiato entre a data de 1917 e a estreia da peça em 1935. Como vimos, Villa-Lobos foi muito ativo na década de 1920, compondo e executando muitas obras ao longo do período. Foi a partir de sua ida a Paris, inclusive, que o compositor passou a estrear suas peças indianistas, o que é coerente com a demanda europeia da época. Uirapuru é uma peça que se enquadra neste conjunto de obras que o compositor poderia ter executado durante a década de 1920, tanto por causa da temática indianista quanto pela disponibilidade de infraestrutura necessária. Muitas de suas obras para orquestra foram estreadas entre 1917 e 1935, por exemplo os Choros n. 8 e 10 e Amazonas (MUSEU VILLA-LOBOS, 2009).

O fato de Tédio de Alvorada ter sido tocada depois da suposta data de composição de Uirapuru é outro indício de que a última ainda não havia sido concebida. A primeira foi estreada em 1918 (op. cit.) e continuou sendo tocada na década de 1920. No jornal O Paiz de 28 de novembro de 1922 há uma notícia de um concerto que Villa-Lobos iria dar no dia 01 de dezembro seguinte, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com Tédio de Alvorada no repertório. Numa notícia do jornal A Noite de 21 de agosto de 1929, são listados alguns concertos com a obras de Villa-Lobos que seriam realizados pelo mundo naquele ano.

Uirapuru não consta em nenhum deles, mas Tédio seria tocada pela Filarmônica de Viena na Áustria.

Alguns elementos de Uirapuru são certamente mais coerentes com o período da década de 1930, sendo o primeiro deles a concepção da peça como um bailado. É difícil imaginar que o compositor almejasse que suas peças entrassem no repertório dos balés estrangeiros que circulavam pelo país até o final da década de 1910, tendo em vista que ele ainda não era um compositor renomado. O Rio de Janeiro, por sua vez, não dispunha ainda de um corpo de baile naquele período, algo que só iria acontecer na década de 1920 com a formação das primeiras escolas de balé por dançarinos estrangeiros que se estabeleceram na cidade (ver PEREIRA, 2003). O início da década de 1930 é o período no qual começaram a florescer diversos bailados nacionalistas que foram dançados pelos corpos de baile recém formados na cidade (op. cit.). Além disso, em 1934 Villa-Lobos montou o balé Jurupari conjuntamente com Serge Lifar, a quem o compositor dedicou Uirapuru. Este também é o ano anotado no manuscrito da última como data em que havia sido reformulada, provavelmente com a intenção de que fosse dançada pelo bailarino ucraniano.

O momento de reaproveitamento de peças antigas para a elaboração de composições novas no começo da década de 1930, inclusive no bailado Caixinha de Boas Festas, é outro indício que contribui para pensarmos que o compositor possa ter tido a ideia de fazer o mesmo com Uirapuru. Do ponto de vista estético, a reelaboração de Tédio de Alvorada em Uirapuru não pode ser considerada extremamente grande, apesar de aparecerem na última alguns elementos que o compositor desenvolveu apenas na sua segunda fase25. A estética menos

ousada de Uirapuru, em comparação com obras da segunda fase, também é coerente com o terceiro período de criação do compositor, caracterizado por uma maior clareza e simplicidade em suas composições.

Creio que seja difícil encontrar provas materiais que definam qual foi a data correta de escrita da peça, portanto esta discussão teve como objetivo trazer informações relevantes para compreender o contexto de produção de Uirapuru. Desta forma, acredito que a adaptação da obra e sua concepção como o bailado Uirapuru são mais coerentes com o

começo da década de 1930, apesar de grande parte do seu material musical ter sido composto em torno de 1916 como Tédio de Alvorada.

Procurei traçar ao longo deste capítulo a relação de Villa-Lobos com três “ismos” frequentemente associados à Uirapuru. O indianismo esteve presente na música brasileira desde o século XIX, inicialmente com a atuação da Ópera Nacional e Carlos Gomes, foi repudiado na sua forma romântica na primeira fase do modernismo paulista e apareceu reformulado na obra destes mesmos autores na segunda metade dos anos 1920. Na música de Villa-Lobos, o indianismo se manifestou a partir de sua primeira viagem à Paris em 1923 como parte de uma mudança estética na obra do compositor que correspondia às expectativas do público europeu. O nacionalismo, cujos primórdios também remetem ao século XIX, passou a adquirir importância maior na obra do compositor a partir dos anos 1920, apesar de elementos da música brasileira (principalmente popular urbana) transparecerem em algumas de suas obras do começo da carreira. Acredito que o modernismo, ou a preocupação em criar uma música de feição moderna, foi a principal característica de sua atuação como compositor antes de 1923, e continuou sendo importante ao longo de sua carreira. Assim como ocorreu com outros artistas do período, como o grupo de modernistas paulistas, em meados dos anos 1920 Villa-Lobos se voltou para a ideia de construir uma música nacional, que teve na figura do índio um elemento essencial.