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Estudo 2: Caracterização ambiental e avaliação da contaminação da área

CAPÍTULO IV NA MEDIAÇÃO COM O OUTRO EU, A CONSTRUÇÃO

4.1 Por uma Epistemologia Transgressora com vistas à Emancipação

4.3.2 Estudo 2: Caracterização ambiental e avaliação da contaminação da área

A metodologia do estudo ambiental foi composta por diferentes atividades e instrumentos, a saber: a) Acompanhamento da pulverização aérea; b) Identificação do fluxo dos agrotóxicos, da sua aquisição ao descarte; c) Análise dos Estudos de Impacto Ambiental das empresas e projetos de irrigação, bem como de outros dados secundários disponíveis sobre os compartimentos ambientais; d) Pesquisa de resíduos de agrotóxicos em amostras de água superficiais e subterrâneas, sedimento e solo; e) Mapeamento das vulnerabilidades socioambientais junto às comunidades (MARINHO; CARNEIRO; ALMEIDA, 2011). Abordaremos cada um deles em separado.

a) Acompanhamento da pulverização aérea – As aplicações de agrotóxicos

realizadas nas monoculturas da banana na Chapada do Apodi acontecem também, via pulverização aérea. Elas são realizadas com o intuito de combater um fungo causador da Sigatoka amarela que acomete esse tipo de cultivo, devido, principalmente, a implantação de extensas áreas de monocultura. Na tentativa de controlar essa “praga”, os grandes produtores juntamente com os parceiros difundem a aplicação de fungicidas que acontecem principalmente durante as estações chuvosas. Ressalta-se que a utilização da pulverização aérea é de interesse de empresários do agronegócio em função dos lucros que obtêm a partir dessa prática (MARINHO; CARNEIRO; ALMEIDA, 2011). Destacamos ainda a maneira como esse procedimento afeta as comunidades que residem no entorno das plantações, sendo frequentes as queixas de moradores em relação à exposição aos agrotóxicos. Os principais sintomas percebidos pelas comunidades são “característicos da exposição a venenos, principalmente cefaleias, vômitos, náuseas e alergias, além de relatos sobre a morte de animais sempre que a ‘chuva de venenos’ acontece” (MARINHO; CARNEIRO; ALMEIDA, 2011, p.170).

Aqui mais uma vez o campo empírico e seus atores sociais foram decisivos para que incorporássemos o assunto da pulverização aérea na pesquisa, uma vez que não imaginávamos a ocorrência de tal prática na região. Assim, nos forneceram as coordenadas necessárias para iniciarmos nossa investigação. Por

Figura 9 e 10: Avião e produtos utilizados na pulverização aérea. Fonte: MARINHO; CARNEIRO; ALMEIRA (2011).

meio de contato com informante-chave, a equipe de pesquisa reuniu as primeiras informações para uma posterior visita ao pequeno aeroporto localizado na Chapada do Apodi. O acompanhamento da pulverização aérea in loco nos anos de 2008 e 2009, além da utilização de entrevistas, registros fotográficos, coleta de dados e materiais (amostras de água e solo), bem como o contato com os profissionais contratados para realizarem a pulverização aérea nos permitiram uma melhor compreensão da magnitude do problema à saúde e ao ambiente provocado por estas práticas.

A equipe de pesquisa conseguiu obter o cronograma da primeira pulverização aérea do ano de 2009, porém, não foi possível acompanhá-la, uma vez que ele é muito flexível, sendo refeito a cada variação ambiental (MARINHO; CARNEIRO; ALMEIDA, 2011). A presença da nossa equipe de pesquisa nos locais onde aconteceriam as pulverizações também pode ter contribuído para a sua não realização. No entanto, a conversa com moradores da comunidade de Cercado do Meio nos oferecia uma dimensão da gravidade do problema em questão. Eram moradores, mães que vinham nos relatar inconformadas, que por conta da pulverização aérea, seus lares, seu alimento e até mesmo seus filhos ficavam impregnados com o cheiro do veneno. Aos poucos reuníamos informações valiosas a partir do contato com esses atores, que iam se encaixando no “quebra-cabeça” daquele território marcado por um surpreendente dinamismo social e ambiental.

b) Identificação do fluxo dos agrotóxicos – Com o intuito de melhor

a equipe de pesquisa buscou refazer todo o seu trajeto, desde a venda até o descarte das embalagens. Como ponto de partida, reuniu informações em relação ao comércio local, entrevistando os proprietários ou responsáveis das quatro maiores lojas que comercializavam estes produtos em Limoeiro do Norte/CE25. Visitaram também uma Unidade de Processamento de Embalagens (UPE), localizada em Mossoró (MARINHO; CARNEIRO; ALMEIDA, 2011).

Durante o processo de aquisição de informações sobre o fluxo dos agrotóxicos no Ceará, a equipe de pesquisa buscou juntamente à SEMACE e a SEAGRI dados sobre volumes e princípios ativos comercializados no estado. As tentativas, porém, foram infrutíferas, tendo em vista que ambas as instituições não dispunham de tais relatos. Procuramos então a Secretaria Estadual da Fazenda (SEFAZ) no intuito de que, a partir das tributações incididas sobre esses produtos, pudéssemos dimensionar a magnitude e o fluxo desses produtos no Estado.

Entretanto, verificou-se que:

A partir da legislação federal, foram elaborados estamentos estaduais que isentam em 100% os agrotóxicos de ICMS, IPI, COFINS e PIS/PASEP, configurando um quadro de benefícios fiscais que estimulam o consumo de venenos em todo o estado, e certamente incidem na escolha locacional de empreendimentos do agronegócio (MARINHO; CARNEIRO; ALMEIDA, 2011, p. 177).

A ausência dessas informações juntamente com todo o conjunto de subsídios concedidos pelo Governo do Estado do Ceará, que vão desde a redução tributária de alguns impostos, a concessão de toda uma infraestrutura logística e operacional até a criação de legislações que favorecem os interesses dos empresários, contribuem para que se configure hoje no Estado, um quadro de descontrole em relação ao uso e comercialização dessas substâncias químicas.

c) Análise dos Estudos de Impacto Ambiental das empresas e projetos de irrigação, bem como de outros dados secundários disponíveis sobre os compartimentos ambientais – Nossa equipe de pesquisa debruçou-se na análise

das informações contidas nos Estudos de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), apresentado à Secretaria do Meio Ambiente do Estado do

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Ceará (SEMACE) pelas empresas para fins de aquisição do licenciamento ambiental. A análise dos EIA/RIMA pelos pesquisadores foi elucidativa, permitindo a obtenção de informações sobre: relação dos agrotóxicos e fertilizantes constando seus fabricantes, classe toxicológica e classe ambiental; quantidade de fertilizantes e agrotóxicos utilizados pelas empresas; construção de tanques subterrâneos para receptação de resíduos de lavagem das embalagens de agrotóxicos e pulverizadores e; consumo diário de água para a irrigação. Contudo, o contato com o campo empírico logo nos mostrou a discrepância existente entre o que estava descrito no EIA/RIMA e o que realmente acontecia nos territórios onde se localizavam as empresas do agronegócio. Por meio de relatos de trabalhadores, obtivemos informações referentes à utilização de agrotóxicos que não estavam descriminados no EIA/RIMA. Também ocorreram denúncias feitas junto ao Ministério Público do Estado quanto à utilização de agrotóxicos que seriam proibidos no Brasil, como evidencia o discurso abaixo:

[...] alguns trabalhadores vinham e faziam denúncias que supostamente estariam usando em algumas empresas da Chapada, agrotóxicos que seriam proibidos sua utilização aqui no país [...] a gente ficava achando que existia algo errado, mas não conseguia ter nada concreto (E.M.P).

Esta e outras denúncias foram investigadas pela Promotoria do Meio Ambiente em conjunto com Ministério Público do Trabalho, Delegacia Regional do Trabalho e Polícia Federal, como mostra o discurso abaixo:

A única vez que nós participamos de uma fiscalização junto com a DRT, com a Polícia Federal, numa determinada empresa onde existiam

várias denúncias, o que eu posso te dizer é que nenhuma das denúncias a gente conseguia comprovar, tudo estava dentro das exigências legais (E.M.P). [grifos nossos].

Então, eu só fui efetivamente pra campo uma vez, e a gente não

conseguiu detectar nenhuma das supostas irregularidades que estariam ocorrendo. (E.M.P). [grifos nossos].

Não é nossa tarefa julgar a atuação do Ministério Público do Estado, bem como os demais órgãos que participaram dessa atuação em particular. Ao invés, preferimos uma interrogação: apenas uma única fiscalização a uma empresa que

possui mais de 5.000 ha (Freitas, 2010) seria suficiente para conseguir detectar a diversidade de irregularidades denunciadas pelos trabalhadores?

d) Pesquisa de resíduos de agrotóxicos em amostras de água superficiais e subterrâneas, sedimento e solo – No que concerne a este item, nossa equipe de

pesquisa fez uma avaliação crítica de um estudo publicado pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará (COGERH) no ano de 2009. Tal pesquisa evidencia, dentre outros, o aumento expressivo do índice de poços cadastrados em Limoeiro do Norte no período de 2001 a 2007, representando, nesta série temporal, o maior número de construções. Este período coincide também com a expansão dos plantios das empresas da fruticultura irrigada na Chapada do Apodi.

Outro dado discutido criticamente pela nossa equipe diz respeito à detecção de princípios ativos em cinco amostras coletadas no período de junho de 2008 (período correspondente à quadra invernosa), enquanto que no período de outubro de 2008 (período de estiagem) foi detectado apenas um princípio ativo em uma amostra, como mostra a tabela abaixo:

A análise dos resultados demonstrou uma maior presença de agrotóxicos no período chuvoso, dentre eles, os tipicamente utilizados nas culturas do melão, banana e abacaxi. O fato de os pesquisadores já possuírem informações quanto ao calendário das pulverizações aéreas na região, bem como dos princípios ativos

Tabela 2: Resultados das análises de resíduos de agrotóxicos na água da bacia Potiguar, 2009.

utilizados nas referidas culturas permitiu estabelecer uma possível relação com a presença de agrotóxicos identificados nas análises.

Como forma de identificar os tipos de agrotóxicos utilizados nas culturas do agronegócio da Chapada do Apodi, bem como seus princípios ativos e volumes, entramos em contato com o Laboratório do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Ambientais Avançados da UFMG. Além de possuírem equipamentos de alta tecnologia26 capazes de detectarem resíduos de agrotóxicos em partes por bilhão, detinham também suporte técnico e analítico para a identificação dos princípios ativos priorizados (MARINHO; CARNEIRO; ALMEIDA, 2011).

Ao todo foram colhidas 24 amostras de água em triplicata dos canais que abastecem as comunidades, das caixas d’água e de poços profundos. Apesar de ter identificado a presença de agrotóxico em todas as amostras colhidas, o estudo não quantificou suas concentrações.

e) Mapeamento das vulnerabilidades socioambientais junto às

comunidades – Em conformidade com nossos preceitos epistemológicos, não nos

interessava apenas as informações obtidas por meio das hard sciences. Também consideramos importante compreender as percepções das comunidades acerca da presença desses agentes químicos, assim como suas repercussões sobre sua condição de saúde e de trabalho.

Neste sentido, empreendemos com nossos parceiros um movimento de mobilização junto às comunidades (Lagoinha, Cabeça Preta, Tomé, Maracajá e Lagoa dos Cavalos), atores locais e movimentos sociais com o objetivo de “discutir alternativas ao modelo de desenvolvimento da fruticultura na região, pautadas na diversidade local e em experiências que pudessem trazer novos elementos para uma produção sustentável” (MARINHO; CARNEIRO; ALMEIDA, 2011, p. 201).

Com vistas a fomentar um processo participativo e horizontal, além de fortalecer a troca de experiências entre todos os presentes, adotamos como metodologia a cartografia social. Esta, por sua vez, não visa apenas retratar o modo como as comunidades se apropriam de seu espaço físico, mas sim, e sobretudo, afirmar seus modos de vida. A cartografia social é, pois, o lugar em que “se

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estabelecem relações entre linguagens representacionais e práticas territoriais, entre a legitimidade dos sujeitos da representação cartográfica e seus efeitos de poder sobre o território” (ACSELRAD, 2010, p.9).

Para Santos (2009), a cartografia social é muito complexa, pois combina características das ciências naturais e das ciências sociais. Além disso, “é muito provável que a transição paradigmática da ciência moderna para o conhecimento pós-moderno de oposição se venha a repercutir bastante na cartografia social” (SANTOS, 2009, p.197).

De acordo com Acselrad (2010), o que está em jogo na cartografia social e para os sujeitos que dela participam, é o território enquanto terreno disputado material e simbolicamente. Nesse sentido, a partir da realização dessas experiências encontramos a união de resistências que se colocaram na contramão do projeto desenvolvimentista elaborado para aquela região, visibilizando, assim, as diversas formas de conflitos, uma vez que:

As práticas culturais entre as quais se inscrevem as atividades de auto mapeamento, na contramão da expansão das fronteiras de acumulação, não apontam para arranjos institucionais consensuais, mas, antes, para o dissenso, pelo qual pretendem concorrer para a produção não hegemônica de sentidos e territórios (ACSELRAD, 2010, p.7).

Fundamentados nessa metodologia, realizamos oficinas junto às comunidades onde lançávamos questões simples aos participantes (cerca de 40 pessoas) como o que promovia e o que ameaçava a vida em seus territórios. Estes, por sua vez, nos surpreendiam ao demonstrarem a grandeza e a complexidade do saber popular, relacionando em uma matriz, a diversidade de fatores que impactavam em suas vidas.

Este procedimento permitiu compartilhar os conhecimentos produzidos de maneira conjunta, além de reunir os diversos olhares das comunidades sobre seus territórios, como mostra o discurso transcrito:

Ela foi uma pesquisa extremamente participativa, e por ser participativa, essa ideia dos mapas, das comunidades construírem mapas sobre a sua visão, sobre o seu lugar, ela foi uma coisa fantástica. Tanto é que do começo ao fim, a cartografia social foi utilizada e é utilizada como referência que serve [...] para as comunidades de percepção do seu lugar (G.F).

Figura 11 – Mapas de vulnerabilidade produzidos pelas comunidades de Maracajá e Tomé Fonte: MARINHO; CARNEIRO; ALMEIRA (2011).

A representação feita pelas comunidades através da confecção dos mapas retrata de forma clara suas denúncias e descontentamentos com o projeto desenvolvimentista adotado naquela região. Percebemos a presença de diversos elementos externos aos seus modos de vida tradicionais, impostos às comunidades através da expansão do agronegócio em conformidade com a política de governo.

A cartografia social funcionou não só como ferramenta capaz de dar visibilidade aos conflitos, contribuindo na tessitura de parcerias entre comunidades vizinhas, como também, instrumento de denúncia junto ao poder público acerca dos passivos socioambientais destinados à população camponesa.

4.3.3 Estudo 3: Caracterização da exposição humana e dos agravos à saúde