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CAPÍTULO III OS CAMINHOS PERCORRIDOS EM BUSCA DE

3.5 Interpretação do material qualitativo

Para a interpretação do material qualitativo proveniente dos Roteiros Auto Aplicados (RA) e das gravações posteriormente transcritas, nos ancoramos no referencial da Hermenêutica de Profundidade (HP) de Thompson (2009). A escolha deste referencial teórico deveu-se pelo fato de adentramos na seara da linguagem, no universo dos significados que segundo o autor (Op cit) são produtos pré- interpretados por sujeitos que estão inseridos em um contexto sócio-histórico, sendo, portanto, “a hermenêutica da vida quotidiana um ponto de partida primordial e inevitável ao enfoque da HP” (THOMPSON, 2009, p.359). Neste sentido, a HP tem se mostrado um importante instrumento para melhor compreendermos as inter- relações entre o mundo simbólico e o plano material em que estas se desenham no bojo da sociedade capitalista (FERREIRA; ALENCAR; RIGOTTO, 2010).

As contribuições acima descritas nos auxiliaram a elucidar que o nosso campo de investigação (a linguagem) é por si só, um campo pré-interpretado, sendo, portanto, necessário ir além da interpretação da doxa, em direção a uma hermenêutica em profundidade.

Para Thompson (2009) a HP consiste em três estágios que longe de serem estanques, estão em constante movimento. São elas: a Análise sócio- histórica, a Análise formal ou Discursiva e a Interpretação/Reinterpretação. Trataremos brevemente de cada uma destas fases.

A análise sócio-histórica pode ser elaborada a partir da relação entre as formas simbólicas e seus contextos e processos historicamente construídos e socialmente estruturados, dentro dos quais e através dos quais, essas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas. As maneiras como essas condições podem ser mais adequadamente examinadas irão variar de um estudo para outro (THOMPSON, 2009).

A análise formal ou discursiva são construções simbólicas complexas, através da qual algo é expresso ou dito. Dentro do enfoque da HP, o analista de discurso tem a possibilidade de utilizar diversas abordagens de análise de discurso, como por exemplo, a análise semiótica, a análise discursiva, a análise de conversação, dentre outras (THOMPSON, 2009).

A interpretação/reinterpretação acontece de forma simultânea no enfoque da HP. As formas simbólicas, que são o objeto da interpretação, são parte de um campo pré-interpretado onde de acordo com a HP, projetamos um significado apenas possível, mas que pode divergir do significado construído pelos sujeitos que constituem o mundo sócio-histórico. Desse modo, a possibilidade de existir um conflito entre interpretações é intrínseco ao próprio processo de interpretação (THOMPSON, 2009).

Nossa experiência em trabalhar com esta abordagem em situação semelhante (FERREIRA; RIGOTTO, 2010) contribuiu para acreditarmos que a HP nos ofereceu um esquema capaz de analisar as construções simbólicas de forma sistemática e adequada. Dessa maneira, tornou-se possível nos apropriarmos das falas dos sujeitos da pesquisa e (re)interpretá-las, sem desvirtuar o sentido que nelas estava contido.

Contudo, um esclarecimento faz-se necessário aqui. Não é nossa intenção reduzir a proposta da HP apenas a uma técnica para interpretação/reinterpretação do material qualitativo. Compreendemos sua densidade teórica que assume, por vezes, condição estruturante em consonância com seus estágios, como observamos em Rigotto (2004) e Marinho (2010).

Antes, encontramos no referencial da HP de Thompson (2009) o auxílio necessário que nos possibilitou analisar as diferentes formas simbólicas indissociadas de seus contextos sócio-históricos. Além disso, nos permitiu compreender os diversos fatores sociais que influenciam na produção do discurso, bem como o papel da ideologia como o sentido que serve para “estabelecer e sustentar relações de dominação” (THOMPSON, 2009, p.76).

Para a interpretação e análise do material qualitativo, procedemos com as transcrições das gravações advindas do grupo focal e das entrevistas em

profundidade. A transcrição destes materiais foi realizada pelo próprio pesquisador, objetivando com isso, uma imersão no material empírico, pois além das construções simbólicas “faladas”, interessou-nos também o não dito, as pausas e o silêncio, ambos repletos de significados para este estudo.

Após as transcrições, em que respeitamos as falas dos sujeitos com seus regionalismos, iniciamos um processo lento e cauteloso que foi a leitura do material empírico. Este foi o momento de nos aprofundarmos em nosso conteúdo qualitativo, buscando compreender as singularidades de cada fala ao tempo em que nos desafiava a construção de mediações vinculando-as a seus contextos sócio- históricos. Concomitantemente, submetemos o conteúdo de nosso material a sucessivas categorizações, acreditando juntamente com Orlandi que “este é o primeiro passo para se generalizarem certas características, se agruparem certas propriedades e se distinguirem certas classes” (ORLANDI, 1983, p.192).

Concluída a fase das categorizações, iniciamos a análise de nosso material de acordo com os aportes teórico-metodológicos da Hermenêutica de Profundidade à luz da Análise de Discurso (AD). De acordo com Pinto (1999), a AD procura “descrever, explicar e avaliar criticamente os processos de produção, circulação e consumo dos sentidos” (PINTO, 1999, p. 7). Para Orlandi (2000) a análise do discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos.

Contudo, temos ciência que apenas nos reportar à AD não nos assegura uma consistência epistemológica e metodológica acerca da nossa análise devido a grande diversidade de enfoques, correntes e tendências que hoje em dia se interessam em fazer algum tipo de AD.

Reconhecemos que por mais diversificados que sejam os enfoques que tratam da AD, todos se nutrem, essencialmente, de duas abordagens: a AD francesa e a AD anglo-americana (PINTO, 1999). Não é nosso objetivo discorrer aqui sobre essas duas escolas analíticas, cuja extensão e densidade de seus referenciais teóricos extrapolam e muito o escopo deste trabalho.

Queremos por outro lado, deixar clara nossa postura acerca do modelo de AD adotado nesse trabalho, privilegiando o contexto sócio-histórico das falas de

forma crítica, em consonância com o referencial teórico-metodológico por nós adotado. Neste sentido, entendemos assim como Pinto (1999) que toda fala é uma forma de ação, exigindo-nos a adoção de uma postura de “detetive sociocultural”, no sentido de procurar e interpretar vestígios que permitam sua contextualização.

Munidos pelos conselhos de Pinto (1999), recorremos a Orlandi (2000) que nos ofereceu outros ensinamentos preciosos em relação à postura que o analista de discurso deve assumir. De acordo com a autora:

[...] o analista de discurso não interpreta, ele trabalha no limite da interpretação, não se coloca fora da história, do simbólico ou da ideologia. Ele se coloca em uma posição deslocada que lhe permite contemplar o processo de produção dos sentidos em suas condições (ORLANDI, 2000, p. 61).

No intuito de garantir a maior riqueza possível ao presente estudo e em conformidade com os preceitos da pesquisa qualitativa (já devidamente demarcados em momento anterior), optamos por trabalhar com os Roteiros Auto Aplicados em diálogo com o corpus que extraímos do material empírico. Este procedimento nos permitiu captar as singularidades inerentes a cada roteiro, articulando-os de forma contextual aos objetivos propostos para esta pesquisa. No intuito de preservar o anonimato dos participantes, adotamos as seguintes legendas abaixo:

GF – Grupo Focal

EI – Entrevista com representante da Igreja Católica ES – Entrevista com representante do movimento sindical EF – Entrevista com representante da FAFIDAM

EMP – Entrevista com representante do Ministério Público Estadual RA – Roteiro auto aplicado, sendo seguido das numerações subscritas de 1 a 7. Os números foram atribuídos aleatoriamente. Objetivando o anonimato dos participantes, apenas o RA submetido ao nosso grupo será identificado como RA7.

Neste estudo, optamos por dialogar continuamente com o contexto sócio- histórico da região do baixo Jaguaribe. Ao reconhecermos e valorizarmos sua importância, acreditamos estar em conformidade com os preceitos do paradigma emergente de ciência. Contudo, não iremos abordá-lo de forma pormenorizada, uma vez que já existe uma extensa e densa literatura sobre tal (ELIAS, 2008; ALEXANDRE, 2009; MARINHO, 2010; FREITAS, 2010; PESSOA, 2010; RIGOTTO, 2011). Dessa forma, longe de ir de encontro aos princípios metodológicos adotados nesse projeto, estamos nos esquivando de possíveis homologias.

Na Análise Discursiva, procuramos apreender as subjetividades e os significados presentes no material proveniente do Grupo Focal, das entrevistas em profundidade, bem como dos roteiros auto aplicados à luz da Análise de Discurso tal como definida por Orlandi (2000) e Pinto (1999).

A Interpretação/Reinterpretação foi construída a partir do diálogo com a Análise sócio-histórica e com a Análise Discursiva, buscando assim, elucidar as questões que nortearam nossa investigação.

Antes, porém, de adentrarmos efetivamente na seara hermenêutica, julgamos necessária a realização de um breve preâmbulo como forma de deixarmos claros alguns pontos importantes.

De acordo com nosso referencial teórico-analítico, adentrar na seara da interpretação das formas simbólicas é também penetrar no universo das possibilidades, uma vez que “o significado de uma forma simbólica não é dado de antemão, fixo; oferecer uma interpretação é projetar um significado possível, um dentre muitos significados que podem divergir ou conflitar com outro” (THOMPSON, 2009, p.380).

Nesse sentido, soam-nos de forma mais confortável as palavras de Thompson ao nos falar que:

Toda interpretação é aberta a suspeita, e é precisamente por causa disso que, ao apresentar uma interpretação, nós devemos também apresentar razões e fundamentações, evidências e argumentos que, do nosso ponto de vista, tornam essa interpretação plausível (THOMPSON, 2009, p.96)

Portanto, em consonância com seus preceitos, as análises interpretativas que se seguem emergem de um diálogo profundo e cauteloso entre as experiências vivenciadas pelo pesquisador durante o trabalho de campo, seu material empírico e os referenciais teóricos que nos alicerçam nessa construção.

Estamos assim, empreendendo um movimento dialético entre a realidade por nós vivenciada e a clareza teórica que almejamos obter, fruto de um trabalho de reflexão acerca de nossa própria práxis. Dizemos isso, pois, em vários momentos da pesquisa, caminhamos em meio a dúvidas e incertezas e consideramos importante reconhecer isto no decorrer desse processo.

Dessa forma, antes de confinarmos as formas simbólicas a uma única possibilidade de interpretação, estamos, por outro lado, oferecendo à crítica nosso modelo hermenêutico-analítico, cujo processo, pela sua própria natureza, pode fazer surgir um conflito de interpretações. Mesmo diante da possibilidade de divergências, acreditamos ser esse o melhor caminho para nos esquivar de uma simples leitura do real (THOMPSON, 2009).