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House of Cards inaugurou, em Netflix, uma tradição de produção seriada que atua em dinâmicas de distribuição e circulação próprias. Estas integram elementos como streaming, arquitetura multitelas, sistema de recomendação e extensão em redes sociais on-line. Trata-se de uma narrativa seriada configurada às circunstâncias midiáticas de Netflix, cujo modelo de produção se estendeu, de certo modo, para os outros títulos da companhia.

A série instaurou um dos principais elementos da gramática de produção de séries de Netflix – o lançamento, na sexta-feira, de todos os episódios de uma temporada no dia de estreia tendo em vista o consumo por streaming e sob demanda. Tal estratégia de lançamento (que remete àquela dos filmes no cinema) se tornou uma regra nas produções originais de Netflix (Orange is The New Black, Daredevil, Jessica Jones) e favoreceu a prática de binge-watching e de comentários em redes sociais on-line e afins, já que os usuários poderiam ter mais tempo livre durante o final de semana para conferir a série. Além disso, como mencionamos anteriormente, House of Cards foi a primeira aposta de Netflix em uma estrutura narrativa com menor uso de ganchos e retomadas, pois seus episódios poderiam ser consumidos de forma

subsequente e os usuários teriam a oportunidade de revisitá-los caso não compreendessem os acontecimentos da história.

Tal possibilidade repercutiu na própria concepção do enredo da série. Criada por Beau Willimon e coproduzida por David Fincher, House of Cards aborda a trajetória política de Frank Underwood (Kevin Spacey). Por não ter sido indicado para o posto de Secretário do Estado pelo presidente que ajudara a eleger nos EUA, Frank arquiteta um inescrupuloso plano com apoio da esposa, Claire (Robin Wright), e do assessor, Douglas Stamper (Michael Kelly), para ganhar poder político e ocupar o mais alto cargo público em Washington – o de presidente do país. Para tanto, Frank não poupa esforços, trapaceando, manipulando, subornando, ameaçando e mesmo assassinando personagens à sua volta, caracterizando-se como alguém ardiloso e sem remorsos. As outras figuras da trama, em sua maioria, demonstram caráter similar ao de Underwood, o que resulta em um enredo repleto de intrigas, reviravoltas e conspirações. Por isso, como mencionamos anteriormente, a série desenvolve-se, principalmente, a partir de processos de barganha política. Isso exige um espectador atento a todos os detalhes da narrativa da série, a qual possui menos uso de ganchos e retomadas.

Mecanismos de recomendação de Netflix delinearam os processos de produção, distribuição e circulação de House of Cards, o que a torna referencial para compreender o modelo de narrativas seriadas da companhia. Conforme apresentamos no tópico anterior, a série teve sua pré-produção (escolha de tema, elenco e direção) baseada em dados gerados a partir de análises de hábitos de uso de assinantes dos serviços de Netflix. Os dados analisados pela companhia apontavam que os usuários que assistiam à produção original homônima da BBC (1990) eram os mesmos que tinham como costume ver filmes protagonizados por Kevin Spacey. Ademais, esse público possuía também preferências por séries e filmes dirigidos por David Fincher. Logo, por meio de mecanismos de recomendação, Netflix lançou a série a partir de uma aposta mais embasada, escolhendo Spacey como protagonista e Fincher como coprodutor e diretor do episódio piloto. De acordo com Steve Swasey, vice-presidente de comunicações de Netflix, em entrevista ao portal Gigaom:

Tínhamos um alto grau de confiança [em House of Cards] com base no diretor, no produtor e na pontuação por estrelas. [...]. Através de nossos algoritmos, podemos determinar quem pode estar interessado em Kevin

Spacey ou em dramas políticos e sugerir: “você pode querer assistir a isso” (tradução nossa). 52

A análise de dados algorítmicos, via sistemas de recomendação, também norteou o processo de circulação e divulgação de House of Cards na interface do serviço de Netflix. Foram produzidos trailers diferentes, com destaque para Kevin Spacey, Robin Wright e David Fincher, que apareciam de acordo com o perfil de cada público.53 Embora a exploração dos dados sobre as preferências dos usuários possa ocorrer de distintas formas nas produções originais de Netflix – em alguns casos, apenas na divulgação da série54; em outros, na escolha do título que a companhia irá produzir55 – House of Cards implantou um modelo de narrativa seriada em que o uso de dados, via sistemas de recomendação, poderia ser aplicado desde os processos de produção até os modos de circulação e divulgação das séries de Netflix.

Essas escolhas influenciaram significativamente a versão de Netflix para House of Cards, cujo público, em parte, sequer sabe que a produção é um remake (DELANEY, 2016). Qualquer título criado a partir de outro já existente é uma releitura, a qual apresenta elementos novos e diferentes. Entretanto, destacamos como a série de Netflix apresentou-se reconfigurada não apenas em termos narrativos, mas também metamorfoseada segundo as circunstâncias midiáticas de Netflix – o que lhe permitiu conquistar novos fãs, num cenário espectatorial bastante distinto daquele de 1990, época da House of Cards da BBC. Isso se estabeleceu como o principal diferencial da produção em relação às demais séries de Netflix.

Ademais, foi a partir de House of Cards que Netflix inaugurou também estratégias de divulgação nas redes sociais on-line, visando o acompanhamento das

52 We have a high degree of confidence in [House of Cards] based on the director, the producer and the stars. […]. Through our algorithms, we can determine who might be interested in Kevin Spacey or political drama and say to them ‘You might want to watch this.’. Disponível em:

<https://blog.kissmetrics.com/how-netflix-uses-analytics/>. Acesso em: 26 jan. 2017.

53 Disponível em: <

http://www.nytimes.com/2013/02/25/business/media/for-house-of-cards-using-big-data-to-guarantee-its-popularity.html>. Acesso em: 26 jan. 2017.

54 Conforme mencionamos no capítulo anterior, há uma diversidade de aplicações do uso dos sistemas de recomendação nas ações de marketing desenvolvidas por Netflix. Durante o lançamento das séries originais Daredevil e Fuller House, a companhia usou diferentes pôsteres em sua interface para identificar qual deles o público preferiria antes da estreia de ambas as produções. Para Daredevil, ainda foi inserido um painel de contagem regressiva no perfil dos assinantes para monitorar se eles iriam permanecer atentos, acessando o menu de Netflix, e assistir ao primeiro episódio dessa série à meia-noite.

55 Séries como Arrested Development são um exemplo que pode ser interpretado nessa circunstância. Disponível em: <https://gigaom.com/2013/02/12/netflix-ratings-big-data-original-content/>. Acesso em: 26 jan. 2017.

práticas de consumo das séries originais da companhia simultaneamente ao lançamento das produções. Como mencionamos no tópico anterior, na data de estreia de House of Cards, a companhia fez uso de imagens, vídeos e links com informações exclusivas para divulgação da primeira temporada da série, principalmente nas redes Facebook e Twitter. Aliado a esse movimento, a companhia postou a seguinte mensagem no Twitter, atuando a partir da perspectiva de um fã: “Quanto de House of Cards vocês já assistiram? Assistam com responsabilidade. Não se esqueçam de tomar banho, comer, alongar “#assistacomresponsabilidade”. Tal ação, conjunta com o lançamento da série, gerou publicações de fãs nos perfis de Netflix e no de House of Cards no Twitter, resultando em grande repercussão da série nesse espaço – cerca de 50.000 “tuítes”.56

House of Cards e as ações relacionadas à série nas redes sociais on-line instauraram em Netflix uma experiência espectatorial baseada, principalmente, em processos de visualização conectados e compartilhados (MASSAROLO; MESQUITA, 2016). As estratégias pautadas em ações de extensão nas redes sociais on-line se repetiram em outras estreias das produções seriadas da companhia, tais como Black Mirror, 3% e Stranger Things. As ações relacionadas ao universo das séries originais se tornaram cada vez mais sofisticadas, como apresentamos no tópico anterior, expandindo o mundo ficcional das produções Netflix e potencializando o engajamento em relação a elas a partir de “curtidas”, comentários e compartilhamentos. Assim, diante do caráter pioneiro de House of Cards em Netflix, propomos, toma-la como estudo de caso. No próximo capítulo, caracterizamos tal perspectiva metodológica.

56 Disponível em: <

4 METODOLOGIA