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2.2 Netflix: um fenômeno de convergência audiovisual

2.2.3 Sistemas de recomendação

2.2.3 Sistemas de recomendação

Em termos técnicos, algoritmos são um conjunto de protocolos (comandos) que configuram a base de sistemas computacionais. Eles compreendem cálculos matemáticos (logaritmos), funções, códigos, softwares e são programados com o objetivo de realizar tarefas através da resolução de algum problema, mapeando algumas informações e produzindo outras (GOFFEY, 2008; GILLESPIE, 2014a, 2014b).

Os sistemas de recomendação, por sua vez, são definidos como agentes inteligentes que operam através do cruzamento de dados e da combinação de informações geradas pelos algoritmos (DIAS; SALGADO, 2017). A importância de tais sistemas está na variedade de aplicações que possuem, como a de ajudar usuários a lidar com elevado índice de informações, proporcionando relevância de conteúdo e recomendações mais acuradas àquilo que o usuário prefere. Esses mecanismos fazem parte das dinâmicas midiáticas de circulação e consumo em Netflix desde seus primeiros anos, por meio do software CineMatch, lançado em 2000. Atualmente, eles influenciam 75% das escolhas do que os usuários assistem nos serviços dessa companhia de streaming (VANDERBILT, 2013).

Segundo Adomavicius e Tuzhilin (2005), os sistemas de recomendação podem operar de três maneiras diferentes:

a) Recomendação por conteúdo: recomendações aos usuários com base em itens semelhantes àqueles que preferiram no passado;

b) Filtragem colaborativa: recomendações de itens que outros usuários com perfis similares consumiram anteriormente;

c) Recomendação híbrida: baseada na combinação dos métodos a e b com o propósito de otimizar as recomendações.

Em Netflix, os detalhes técnicos sobre como os mecanismos de recomendação funcionam são desconhecidos publicamente. Contudo, determinadas ações em sua interface, solicitadas em prol dos sistemas de recomendação, podem ser observadas. No momento do cadastro de um novo assinante, por exemplo, Netflix solicita que o usuário selecione produtos que já assistiu ou que pretende ver. Depois, o usuário é convidado a pontuar, utilizando de uma a cinco estrelas, os títulos que indicou ter assistido (ação que não é compulsória).21 Em seguida, o assinante é direcionado para a página central do menu da companhia, na qual há sugestões de conteúdos que ele poderia gostar, fundamentadas em tags como “em alta”, “séries empolgantes” e “filmes aclamados pela crítica” (ver figura 6), com base nas preferências apontadas no começo do cadastro.

Figura 6 - Tags da interface do sistema de recomendação de Netflix

Fonte: Captura de tela da interface Netflix.

Tal ação descrita pode ser interpretada conforme a lógica de recomendação de conteúdo, a qual se baseia em itens consumidos e/ou bem avaliados no passado. Netflix necessita da utilização desse sistema para realizar sugestões para seus usuários, pois é a partir dele que os outros tipos de recomendação – filtragem colaborativa e recomendação híbrida – se fundamentam para operar.

De forma correlata às sugestões de consumo, são também os sistemas de recomendação que organizam os produtos a serem ofertados. Em entrevista ao portal

21 Esse sistema de classificação por estrelas será substituído pelas opções “curtir” e “descurtir”. Para Todd Yellin, vice-presidente de produtos e inovação de Netflix, “o polegar para cima e para baixo é a linguagem global da internet” (PASSOS, 2017), o que indica forte influência das redes sociais no modo como Netflix opera.

Kissmetric, Jenny McCambe, diretora global de relações de mídia em Netflix, explica que é por meio da análise algorítmica que a companhia escolhe quais títulos serão incorporados em seu acervo (HOW..., 2013). Segundo McCambe:

Nós sempre utilizamos nosso profundo conhecimento acerca do que os usuários amam assistir para decidir o que está disponível em Netflix.... Se você continuar assistindo, vamos continuar adicionando mais daquilo que você ama. (HOW..., 2013, on-line, tradução nossa). 22

John Ciancutti, vice-presidente em engenharia de produto, em nota ao mesmo portal, acrescenta que Netflix procura, sobretudo, o conteúdo mais eficiente, ou seja, aquele que irá atingir “máxima felicidade de consumo” por dólar gasto. Desse modo, os mecanismos de recomendação não auxiliam apenas na oferta de conteúdo e em sugestões de consumo personalizado, mas ajudam o serviço na avaliação de quais produtos serão mais rentáveis, afunilando o tipo de oferta disponibilizada.

A tecnologia de recomendação se insere até mesmo na forma como a interface de Netflix é construída, no modo como seus produtos aparecem e nas opções de hiperlink ofertadas. Segundo os próprios funcionários da empresa, Carlos Gomez-Uribe, vice-presidente de novos produtos, e Xavier Amatriain, diretor de engenharia, quanto mais próxima é a posição de um título da primeira linha do menu, maior é a probabilidade de ele ser assistido (VANDERBILT, 2013). Logo, a tendência é de que os primeiros conteúdos que aparecem nas primeiras linhas horizontais do menu em Netflix sejam aqueles com mais chances de o usuário gostar, conforme o sistema algorítmico. Para Chris Jaffe, vice-presidente de inovações de produto em Netflix, a personalização é significativamente relevante, pois é a base para garantir que usuários continuem a usar os serviços da companhia. Ao portal Business Insider, Jaffe declara que Netflix realiza forte investimento em programação – mais de cinco bilhões de dólares –, considerando que tem apenas 90 segundos para convencer o usuário a assistir um conteúdo antes de ele abandonar os serviços de Netflix (O’REILLY, 2016). De acordo com o vice-presidente de inovações de produto, a cada ano, a companhia promove centenas de testes em modalidades A/B23 com cerca de 300.000 usuários

22 We always use our in depth knowledge (aka analytics and data) about what our members love to watch to decide what’s available on Netflix….If you keep watching, we’ll keep adding more of what you love.

23 Testes A/B são procedimentos empregados com objetivo de descobrir alternativas em páginas ou sites para aumentar a quantidade de acesso. Esses testes fundamentam-se na comparação de resultados de duas ou mais versões de uma página ou elementos abrangidos por ela, a fim de otimizar sites.

em todo mundo. Esses testes incluem desde a escolha de imagens e tamanho da fonte dos produtos até apresentação de conteúdo em slides e suas especificações na tela dos assinantes. Segundo Jaffe, a importância de implementar tais experimentos está na possibilidade de verificar as mudanças propostas, avaliando se há maior engajamento do público com o serviço de Netflix. Isto é, maior quantidade de acessos, permanência na interface e exploração das opções de recomendação sugeridas.

Os sistemas de recomendação ainda atuam como relevante ferramenta de interpretação de hábitos culturais para Netflix, auxiliando no ramo de suas produções exclusivas e ações de marketing, além de atuarem nas dinâmicas de circulação e consumo, conforme mencionado. Esse processo pode ser compreendido no processo de produção, circulação e consumo de séries em Netflix, como é o caso de House of Cards.

Através desses mecanismos, Netflix pôde prever preferências de consumo de seus assinantes e lançar essa série como seu primeiro produto exclusivo. Os dados analisados por Netflix indicavam que os mesmos usuários que assistiam à produção original homônima da BBC, produzida na década de 1990, eram aqueles que tinham como costume ver filmes protagonizados por Kevin Spacey. Ademais, esse mesmo público possuía preferências por séries e filmes dirigidos por David Fincher. Essas informações foram fundamentais para que Netflix estruturasse elementos como tema, direção e elenco na pré-produção dessa narrativa seriada (CRUZ; GIARDELLI; VALENTE, 2016).

A análise de dados algorítmicos também norteou o processo de divulgação de House of Cards. Foram produzidos dez trailers diferentes, que apareciam de acordo com o perfil de cada público. Para aqueles que eram fãs de Kevin Spacey e assistiam a vários filmes com sua presença no elenco, o trailer dava enfoque a cenas com o ator. Já para os usuários que viram diversos filmes estrelados por mulheres, o destaque do trailer estava na atriz Robin Wright, que coprotagoniza a série junto com Kevin Spacey. E, para os fãs de David Fincher, o trailer se apresentava marcadamente ao estilo do diretor (ROETTGERS, 2013).

É válido ressaltar que as estratégias de marketing citadas no caso de House of Cards não são necessariamente repetidas em ações de divulgação de outras séries originais de Netflix. Durante o lançamento das séries originais Daredevil e Fuller House (Netflix, 2016-presente), a companhia empregou diferentes pôsteres em sua interface para identificar o preferido do público antes da estreia de ambas as

produções. Para Daredevil, ainda foi inserido um painel de contagem regressiva no perfil dos assinantes a fim de monitorar se iriam permanecer atentos, acessando o menu de Netflix, e assistiriam ao primeiro episódio da série à meia-noite, horário em que a segunda temporada da produção seria disponibilizada mundialmente (ROETTGERS, 2016). Trata-se, portanto, de uma diversidade de aplicações do uso dos sistemas de recomendação nas ações de marketing desenvolvidas por Netflix.

Tendo em vista os aspectos pontuados até então, nota-se que os mecanismos de recomendação, mais do que caracterizar a lógica midiática de Netflix, ao integrarem a organização da interface desse serviço e seus modos consumo, configuram a maneira como os produtos circulam, pautando-se, sobretudo, em uma hiperfragmentação de nichos e de suas preferências. Nesse processo, observa-se não apenas a construção de uma experiência individualizada – por meio da integração desses sistemas com elementos como o streaming e a arquitetura multitelas –, mas também profundamente personalizada. Isso tem auxiliado Netflix a fidelizar seus públicos e a construir produtos altamente direcionados. Essas produções têm se constituído como uma espécie de âncora para a permanência de usuários em Netflix e, simultaneamente, para a materialização de uma complexa lógica algorítmica no processo de produção audiovisual.