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2 A SUGESTÃO LEGISLATIVA Nº 15 DE 014 EM DEBATE: UMA

2.4 Perspectivas sobre Abortamento e Direitos Reprodutivos na (e para Além

2.4.2 Estudos sobre a SUG nº 15/2014

No âmbito da Sugestão Legislativa que é objeto desta tese, as bases de dados localizaram três dissertações de mestrado já publicadas: uma da área da Análise Crítica do Discurso, que investigou comunicações das três primeiras audiências públicas (SUASSUNA, 2016); uma das Ciências Sociais, baseada na Teoria das Representações Sociais (OLIVEIRA, 2017); e outra da área de Geopolítica, que se debruçou sobre quatorze falas provenientes das duas primeiras audiências (SOUZA, 2017). Assim, dada a relevância do tema e das discussões que permeiam esse debate, é possível afirmar que há poucas investigações publicadas que tenham como foco a SUG.

A dissertação de Suassuna (2016) analisou a percepção dos participantes das audiências públicas a respeito das mulheres e de seus corpos. Em virtude da temporalidade de sua pesquisa, foi possível analisar somente três das cinco audiências que ocorreram nesse âmbito. A primeira categoria de análise de Suassuna (2016) opõe os discursos sobre maternidade como lei natural – ou maternidade naturalizante, como designa Beltrame (2016), conforme abordamos na seção anterior – aos discursos que defendem o processo de ter filhos como um projeto de vida possível, mas não compulsório, de modo que o aborto é entendido como “[...] uma escolha pessoal de planejamento de vida”. (SUASSUNA, 2016, p. 95). Quanto à defesa da maternidade como aspecto inerente à mulher,

O discurso dos participantes contrários à SUG nº 15 reforça a maternidade como lugar de realização natural do feminino. As políticas públicas e medidas de assistência têm o papel de assegurar que as mulheres seguirão seu papel pré-determinado biologicamente. A mulher que aborta é a mulher que nega a sua natureza sagrada de mãe, e sofrerá a culpa por seu pecado. (SUASSUNA, 2016, p. 95).

Na segunda categoria, a autora aborda a dualidade entre morte e vida nesse debate: enquanto discursos antiescolha enfatizam a morte do feto no processo de abortamento, participantes pró-escolha abordam a mortalidade de mulheres decorrente de abortos clandestinos, realizados em condições insalubres. Suassuna (2016, p. 95-96) entende que, “Enquanto um [lado da discussão] centrava a discussão sobre o início da vida, o outro focava na importância da mulher como ser social e biológico formado, sem que ambas as posições estabelecessem um diálogo concreto.” Outros aspectos interessantes trazidos pelo estudo da autora concernem

à própria organização das audiências públicas da SUG e ao seu potencial como mecanismo de reforço da democracia: nesse sentido, Suassuna salientou que houve uma participação desproporcional de parlamentares nas sessões, eventualmente tirando o direito de fala de outros participantes.

No âmbito das Ciências Sociais, Oliveira (2017) investigou as representações sociais do aborto e das mulheres nas cinco audiências públicas da SUG nº 15. Alguns de seus achados vão ao encontro daqueles encontrados na pesquisa da Suassuna (2016), tais como a emergência de um modelo de maternidade hegemônico, que a autora insere em uma estrutura maior, referente ao “[...] modelo heteronormativo de família e aos papéis sociais e afetos dos seus membros na domesticidade: pai, mãe, filho/a, amor e doméstico.” (OLIVEIRA, 2017, p. 76). Nesse âmbito, o aborto refletiria a destruição da mulher-mãe e a constituição da mulher-assassina:

Assim, a mulher-mãe [...] torna-se desnaturada, fora de sua biologia sagrada, que a coloca em relação social dentro de uma lógica familista. Então, emerge a mulher-assassina, que não se encontra em uma família e a destrói, sendo desumana frente ao feto, o qual é vida pura e inocente, mais humano que ela. A mulher fora de uma relação social não seria ninguém, não teria direitos (os quais só lhe são permitidos enquanto mulher-mãe que luta, a qualquer custo, para garantir a sagrada maternidade e o exercício espontâneo de sua natureza, que seria divina). (OLIVEIRA, 2017, p. 85).

Outro aspecto alinhado ao estudo de Suassuna (2016) concerne à concepção do aborto como questão de saúde pública, considerando-se as mulheres vítimas do abortamento clandestino. Essa perspectiva se opõe à do aborto como morte de seres de direitos, de modo que “O indivíduo mulher e o indivíduo feto, como sujeitos, disputam aqui o reconhecimento da sociedade e a proteção do Estado [...].” (OLIVEIRA, 2017, p. 97-98). Nesse âmbito, a autora também traz novas contribuições para a compreensão de tal contexto, enfatizando que a dualidade entre mulher e feto, em debates como o da SUG, é gerada por uma lógica individualista que opõe o direito de nascer de um lado e o direito de interromper a gravidez de outro, aspecto que “[...] acaba por reforçar os argumentos contrários ao aborto, dando ao primeiro a legitimidade da reivindicação”. (OLIVEIRA, 2017, p. 143-144).

No que se refere ao contexto da SUG e ao seu alcance democrático, a autora pontua que a participação de públicos específicos ao longo das audiências foi relevante ao debate; no entanto, assim como pontua Suassuna (2016), seu estudo salientou “[...] o fato de as audiências públicas instituírem-se, na maioria das vezes,

por jogos políticos que permitiram maciça presença e interação dos grupos contrários ao aborto”, aspecto que ela considera como “[...] sintomático de uma estrutura política composta de maioria parlamentar contrária ao aborto e que participou direta e indiretamente das falas e da marcação de posições.” (OLIVEIRA, 2017, p. 46).

Por fim, o trabalho de Souza (2017), inserido na área das Geociências, teve um foco diferente dos privilegiados nos dois estudos anteriores: sua análise recai especificamente sobre os modos como os argumentos científicos são agenciados pelos participantes, considerando-se uma amostra que compreende os 14 primeiros painéis da SUG nº 15. O resultado principal de seu estudo indica que os participantes das audiências recorrem à ciência para conferir legitimidade aos seus argumentos, contexto no qual predomina uma visão imparcial e objetiva do fazer científico. (SOUZA, 2017). Assim como nas pesquisas de Suassuna (2016) e Oliveira (2017), Souza (2017) observa que painelistas antiescolha frequentemente perspectivam a maternidade como aspecto instintivo e inerente à mulher, como condição necessária à “suprema realização feminina” (SOUZA, 2017, p. 50). Nesse sentido, a autora também salienta que as mulheres que abortam são caracterizadas como assassinas e irresponsáveis. Por outro lado, de maneira similar aos estudos anteriores sobre a SUG, a investigação de Souza (2017, p. 47) considera que a maioria “[...] dos convidados pró-escolha buscam evidenciar a situação de injustiça social decorrente da ilegalidade do aborto a que as mulheres ficam expostas.” A questão da autonomia também emerge de tais discursos, salientando-se “[...] a capacidade de as mulheres tomarem a melhor decisão para as suas vidas.” (SOUZA, 2017, p. 51).

Dentre as três investigações, o trabalho de Souza é o que mais explora a manipulação ontológica do feto. Nesse contexto, a autora (2017, p. 72) opta por adotar “[...] a sigla zef, cunhada por Rostagnol (2008), para referir-se ao embaralhamento que os militantes antiescolha promovem para aludir a diferentes etapas que precedem o nascimento (zigoto, embrião e feto)”. Seu trabalho também se vale da categoria de tecnofeto para analisar a exploração de imagens do embrião por parte de grupos antiescolha, por meio das quais os atributos de “[...] autonomia e individualidade [...] permitem atribuir ao zef os mesmos direitos que o Estado concede aos cidadãos, aos já nascidos.” (SOUZA, 2017, p. 72).

Salientamos ainda as conclusões da pesquisadora no que se refere às audiências públicas da SUG como espaços de participação democrática. Quanto a

esse aspecto – e em consonância com os estudos de Suassuna (2016) e de Oliveira (2017) –, Souza considera que há uma pluralidade significativa (mas não suficiente) dos participantes. Ao analisar a distribuição de painelistas e seus argumentos, a autora também observa que, enquanto a maior parte dos acadêmicos participantes de sua amostra são pró-escolha, há maior participação de religiosos nos grupos contrários. Isso lhe permitiu asseverar que “[...] a adesão à militância religiosa, de um lado, e à militância acadêmica, de outro, são traços distintivos dos lados da contenda no cenário brasileiro.” (SOUZA, 2017, p. 71).

A revisão de trabalhos anteriores sobre a SUG muito contribui para a macrocontextualização desse embate e para a compreensão das diferentes perspectivas analíticas que esse contexto enseja. Em síntese, destacamos os seguintes pontos:

a) Todos os trabalhos observam a emergência de uma concepção naturalizante de maternidade, associada ao modelo hegemônico de feminilidade abordado anteriormente;

b) O abortamento como questão de saúde pública se contrapõe à perspectiva de morte do feto, visto como ser de direitos (SUASSUNA, 2016; OLIVEIRA, 2017); e

c) É problematizável o alcance das audiências públicas como mecanismos de ampliação do debate democrático sobre a descriminalização do abortamento, dada a limitação dos espaços de interação (SUASSUNA, 2016) e da pluralidade de grupos sociais participantes (SOUZA, 2017), além da manipulação dos eventos em virtude de interesses políticos (OLIVEIRA, 2017).

Salientamos ainda que esta revisão nos permitiu constatar a ausência de: a) trabalhos brasileiros sobre aborto focados na emergência de frames semânticos, considerando-se uma perspectiva de Semântica Cognitiva; e b) trabalhos semântico- cognitivos voltados especificamente ao estudo da Sugestão Legislativa nº 15. É sobre esse aporte teórico que versa o próximo capítulo desta tese.

3 ANÁLISE DO DISCURSO BASEADA EM

FRAMES

: UMA PERSPECTIVA