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A Revolução Industrial introduziu inovações tecnológicas no processo de produção de mercadorias, resultando na possibilidade de produção em massa dos produtos industrializados. Mas as mudanças no processo de produção fabril não se limitaram ao campo do desenvolvimento tecnológico – deixou marcas também na estrutura social da sociedade. Foi graças à referida Revolução que as cidades vivenciaram forte crescimento populacional, levando ao fenômeno da urbanização. A partir daí, as cidades foram alçadas à condição de protagonistas das sociedades modernas, concentrando capital, renda, prestigio e poder político.

As cidades se transformaram nos locais de produção e consumo do sistema capitalista, o que resultou no aumento da circulação tanto de pessoas como de mercadorias, evidenciando a necessidade de reprodução deste espaço urbano capitalista. Os imperativos do capitalismo levaram à concentração de moradia, do trabalho e do capital nas cidades, na medida em que a cidade concentrava a mão de obra necessária à produção de mercadorias. Neste cenário, a urbanização funcionou como motor da industrialização, ou seja, como condição necessária para que o desenvolvimento tecnológico e o processo fabril de produção de bens e mercadorias se realizassem. Estes dois processos se complementam na medida em que a cidade vai se tornando cada vez mais atrativa para a consolidação do processo industrial (CASTELLS, 1980).

O fenômeno do crescimento das cidades industriais dos séculos XIX e XX despertou, de imediato, o interesse dos sociólogos, que a tornaram objeto de investigação sociológica. A ocupação cada vez maior das cidades levou consequentemente ao aumento da densidade urbana – fenômeno descrito por Davis como metropolização da humanidade. Esta metropolização possui dois fatores principais: o crescimento vegetativo da população proveniente do nascimento de indivíduos na cidade; e, as migrações que, a partir da Revolução Industrial, alterou a estrutura social da humanidade – de uma estrutura rural e dispersa para uma estrutura urbana e concentrada (DAVIS, 1975).

Os precursores dos estudos urbanos tinham na cidade o locus por excelência da interação social, ou seja, o local onde a sociedade acontece. É na cidade que se tem o encontro

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dos indivíduos, que selecionam seus pares para estabelecerem algum tipo de interação, onde o encontro do diferente se cruza, onde o ritmo é mais acelerado, onde há uma profusão de encontros entre os indivíduos que estabelecem vínculos e mantém relações uns com os outros, e onde pessoas, mercadorias, bens e moeda circulam de forma plena. Enfim, a cidade é onde a sociedade cumpre o seu devir.

Weber, Simmel, Wirth e R. Park foram os primeiros a pensar a cidade sociologicamente e se preocuparam em conceituar e definir o que configura este espaço no sentido sociológico. Os estudos posteriores acerca das cidades advêm direta ou indiretamente das ideias destes autores, que postularam alguns elementos fundamentais para a existência da cidade mediante sentido sociológico: densidade, heterogeneidade, anonimato, racionalidade, atitude blasé e divisão do trabalho (GOULON, 1995).

Todas estas características estão presentes nas cidades, em maior ou menor grau. Robert Park procura definir o ambiente urbano como sendo caracterizado por altas densidades populacionais – resultado do grande número de pessoas morando em um reduzido espaço, típico das cidades. É essa configuração que leva à heterogeneidade – pessoas culturalmente diversas convivendo num mesmo espaço, no caso, o espaço urbano. O resultado deste cenário urbano é o desenvolvimento do anonimato, ou seja, a ideia de que não é possível que todos os cidadãos se conheçam pela quantidade de habitantes que os centros urbanos apresentam. Este processo está inserido num processo mais amplo de racionalização da humanidade que torna possível o fenômeno da aglomeração urbana ao organizar uma estrutura social racional, conseguida graças a uma divisão do trabalho que permite a organização do espaço e das tarefas que os indivíduos desempenham neste espaço (PARK, 1973).

Mas as cidades modernas não são caracterizadas apenas como um amontoado de indivíduos convivendo no mesmo espaço; se notabilizam por desenvolver um peculiar modo de vida tipicamente urbano, cujas características são provenientes fundamentalmente do fato deste aglomerado urbano viver e interagir num mesmo espaço, estabelecendo uma infinidade de vínculos sociais, mas que em sua grande maioria são fugazes e superficiais. Simmel denomina tal atitude de blasé e afirma que esta é uma estratégia utilizada pelos indivíduos com o objetivo de preservar suas respectivas individualidades. Para tanto, desenvolvem uma atitude de reserva marcada por uma posição de indiferença em relação ao outro na maioria dos encontros sociais que estabelecem. Cria-se, assim, um mecanismo de seletibilidade das interações sociais que permite ao indivíduo optar em aprofundar relações sociais com alguns parceiros de interação com os quais os vínculos sociais se apresentam mais solidificados,

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superando, então, a mera troca de estímulos e de superficialidades que predomina na maioria das relações sociais. O turbilhão de encontros que se apresenta a todo instante é o que leva também o espaço da cidade a se configurar como o espaço do encontro, da diferença, da sociabilidade e da circulação de pessoas (SIMMEL apud VELHO, 1973).

Embora os clássicos da Sociologia Urbana não tenham se debruçado diretamente a respeito da questão da circulação no espaço urbano, os deslocamentos urbanos servem como pano de fundo da realização das cidades. Assim, a circulação urbana, que mais tarde veio a ser conceituada como movimentos pendulares, deslocamentos urbanos e, por fim, mobilidade urbana, é elemento fundamental das cidades no sentido sociológico, ao passo que é tida como condição necessária para que os indivíduos acessem seus parceiros de interação social. Ou seja, a mobilidade urbana é responsável direta pela concretização da sociabilidade e, consequentemente, da própria sociedade. Sob tal perspectiva, a mobilidade deve ser encarada como o coração da cidade; é aquela que permite a transitoriedade; que faz dos citadinos indivíduos capazes de interagirem uns com os outros, garantindo a divisão do trabalho, a heterogeneidade, os vínculos sólidos, a fluidez e fugacidade da maioria dos laços sociais que os indivíduos mantêm. Sem a mobilidade, nenhum dos aspectos supracitados se faz plenamente, ou seja, o espaço urbano não acontece de modo pleno, uma vez que a circulação – premissa básica para a cidade se realizar enquanto tal – fica comprometida.

Portanto, desde o início dos estudos sobre o espaço urbano, a mobilidade urbana é considerada como condição fundamental para a existência das e nas cidades e, a partir dela, é que se acessa o trabalho, o estudo, o lazer, o consumo, ou seja, a cidade propriamente dita. Porém, os pioneiros destes estudos na Sociologia encaravam a mobilidade como algo natural, inerente ao ser humano e condição previamente dada para a realização da sociabilidade no espaço urbano. Autores como Weber e Simmel, que iniciaram a reflexão sobre o espaço urbano nas primeiras décadas do século XX, consideram as inovações tecnológicas um facilitador da circulação de pessoas e mercadorias nas cidades. Se Simmel analisasse a relação entre automóvel e as cidades, veria no veículo automotor mais um elemento que confirma a necessidade da atitude blasé de reserva da individualidade, pois a motorização aumenta os estímulos mentais e a velocidade dos fluxos de pessoas e mercadorias circulando. Já Weber teria no automóvel mais uma etapa do processo irreversível da humanidade no sentido de racionalização da vida que acontecia de modo privilegiado nas cidades modernas. (VELHO, 1973).

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Os continuadores do pensamento sociológico sobre as cidades, os autores da chamada Escola de Chicago, também não encaravam a mobilidade como um problema sociológico digno de investigação própria – permaneceram com a mesma interpretação de Simmel e Weber: um fenômeno naturalizado da vida social. Muito da postura apresentada se deve ao fato de que a mobilidade não era tida como problema de investigação sociológica porque não era um problema social. Assim, não seguia na lista de prioridades de objetos da Sociologia professada pela Escola de Chicago, focalizada nos problemas urbanos enfrentados pela cidade. A partir desta perspectiva, nas primeiras décadas do século XX, a circulação e a mobilidade urbana eram questões secundárias de investigação, já que não apareciam como problemas a serem sanados nem aos olhos dos investigadores que partilhavam da perspectiva da ecologia humana de Chicago, e muito menos das autoridades políticas que incentivavam este tipo de pesquisa. Portanto, a mobilidade urbana permaneceu como mero pano de fundo da sociabilidade e das relações sociais e, consequentemente, para a Sociologia Urbana (EUFRÁSIO, 1999).

O foco dos estudos da Escola de Chicago era encontrar maneiras de integrar o grande número de imigrantes, das diferentes partes do mundo, que se dirigiam para os Estados Unidos da América (EUA) no início do século XX – mais especificamente para o meio-oeste industrial. A iniciativa norte-americana procurou conjugar os métodos e técnicas da pesquisa social aplicada e ao pragmatismo político, intervindo na sociedade a partir dos achados empíricos das pesquisas. Os acadêmicos de diversos campos do saber da Universidade de Chicago, com deliberado apoio estatal, fizeram da cidade um laboratório vivo cujo objetivo principal era dar conta do fenômeno urbano em toda sua extensão, ou seja, explicar o crescimento acelerado da cidade de Chicago no início do século XX, e ainda, encontrar alternativas de integrar os novos moradores à cidade (EUFRÁSIO, 1999).

A mobilidade urbana, portanto, não foi objeto imediato de preocupação dos clássicos da Sociologia Urbana pelo simples fato de que, embora estes tenham assistido um vertigino crescimento urbano, se locomover nas cidades ainda não se configurava um problema e tampouco um desafio à sociabilidade urbana. A mobilidade só se tornou objeto de investigação a partir do momento que o ato de se locomover pelo espaço das cidades encontrou obstáculos que colocaram em xeque o devir da própria sociedade. Até então, o automóvel era saudado como um ícone da modernidade e não como um vilão que roubaria a promessa de velocidade de locomoção prometida pela modernidade em seu apogeu.

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Mas o crescimento das cidades e do número de automóveis acabaram levando pensadores de diversas áreas do conhecimento a se deterem sobre a temática da mobilidade intraurbana. Apesar da maioria das análises concentrarem no automóvel o papel principal nos estudos sobre mobilidade e como o principal agente causador das mazelas urbanas, estes estudos também contribuíram no sentido de alargar a noção e o conceito de mobilidade, ampliando o debate sobre a temática. Tal fato permitiu que o conceito de mobilidade atravessasse as fronteiras do simples ato de deslocar-se de um local para outro. Paulatinamente, foram sendo adicionadas ao conceito questões a respeito do como se deslocar no meio urbano, indagando sobre a capacidade e a consciência de fazê-lo a partir das possibilidades que a sociedade moderna oferece até consolidar o conceito de mobilidade urbana que agrega atualmente preocupações de cunho ambiental e de qualidade de vida (DUARTE; LIBARDI; SÁNCHEZ, 2007).