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O uso de técnicas não invasivas de estimulação cerebral pré-frontal para produzir efeitos em tarefas cognitivas mostrou-se efetiva em diversos estudos (LUCCHIARI et al., 2018; GREEN et al., 2018; IVANCOVSKY et al., 2017; WEINBERGER et al., 2017; ROSEN et al., 2016; MAYSELESS et al., 2015). Isto significa que o método foi considerado adequado para testar hipóteses que abordem a região cerebral mencionada no estudo da criatividade.

A pesquisa sobre criatividade recebeu maior atenção nos últimos anos, especialmente a partir da neuroestética e da neurociência social. No entanto, sendo um conceito complexo que se aplica a uma grande variedade de situações, os resultados disponíveis são muitas vezes confusos e inconsistentes. Lucchiari e colaboradores (2018) propõem que a ETCC possa ser útil na promoção de um estado criativo em seu sentido mais geral, o que permitiria uma reorganização

espontânea de todo o sistema cognitivo. O efeito de neuromodulação depende muito da tarefa cognitiva proposta; assim, é importante testar que tipo de tarefa é capaz de suscitar pensamentos criativos durante os protocolos de ETCC.

Os mecanismos pelos quais a ETCC melhora a criatividade podem ser assim divididos: (1) promover a atenção autocentrada; (2) diminuir o efeito de filtros perceptuais, censuras e mecanismos inibidores; (3) incrementar o pensamento criativo, facilitando o surgimento da imaginação e de mecanismos analógicos; e (4) favorecer o caminho em direção à efetivação do ato criativo (artistic enactment) (LUCCHIARI et al., 2018; MAYSELESS et al., 2015). A efetivação do ato criativo é definida como a capacidade de finalizar o curso de criação de forma tangível e concreta. Pode se referir a qualquer esfera da vida, mas é um conceito particularmente interessante no que se refere à produção artística, mesclando diferentes conhecimentos e processos motores em uma forma única e apreciável.

A cognição criativa provavelmente depende de duas operações primárias: geração e seleção de ideias. Embora a maioria das ações de pensamento criativo envolvam, até certo ponto, ambos os processos, a crescente literatura sobre intervenções com ETCC sugere que a geração e a seleção de ideias criativas envolvam mecanismos diferentes com bases neurais distintas. A estimulação catódica sobre o córtex frontotemporal inferior esquerdo, uma região implicada no controle inibitório e na manutenção de modelos mentais, tem sido associada a melhorias em tarefas que dependem principalmente da geração de ideias. Em contraste, a estimulação anódica sobre a região dorsolateral do córtex pré-frontal esquerdo e córtex frontopolar (Figuras 6 e 7), regiões do cérebro que provavelmente contribuem para o pensamento direcionado por objetivos, pode aumentar o desempenho em tarefas que impõem minuciosa seleção de ideias criativas (WEINBERGER et al., 2017). Um dos motivos da variabilidade de efeito da ETCC pode ser por afetar mecanismos que já estejam sofrendo plasticidade neural, ou seja, já estejam em transformação. Como as contribuições das diferentes regiões do córtex frontolateral variam de acordo com a natureza da tarefa criativa – gerativa ou seletiva –, o mesmo acontece com a eficácia da estimulação excitatória ou inibitória sobre estas regiões (MAYSELESS et al., 2015; WEINBERGER et al., 2017).

Lucchiari e colaboradores (2018) relatam o caso de um homem afetado por um acidente vascular cerebral na região da artéria cerebral média esquerda que, após o ocorrido, relatou o desejo de desenhar. Sem qualquer educação artística

prévia, o sujeito começou a treinar e aperfeiçoar suas habilidades de desenho e pintura usando a mão esquerda; ele era destro, mas a mão direita ficou com sequelas do evento. Quatro anos após o acidente vascular cerebral, o paciente foi submetido a um protocolo de ETCC consistindo de estimulação da região frontotemporal direita (não afetada pelo acidente vascular). Neste caso, temos o efeito do evento vascular sobre o hemisfério esquerdo e o da neuromodulação sobre a região frontotemporal direita. Sessões de trinta minutos de estimulação anódica produziram aumento das habilidades gráficas nas tarefas de desenho. Embora seja difícil obter uma explicação completa deste efeito apenas com base na interação entre os dois hemisférios, é possível que o comprometimento da região frontotemporal esquerda possa desinibir a motivação artística, o que pode substituir parcialmente as funções de comunicação afetadas pelo acidente vascular. Os resultados revelados neste trabalho sugerem melhora do desempenho comportamental e da conectividade funcional após as sessões de ETCC, tanto nos domínios cognitivo quanto motor (LUCCHIARI et al., 2018).

A ETCC foi utilizada no estudo do pensamento criativo por Colombo e colaboradores (2015), que exploraram a área dorsolateral do córtex pré-frontal em um estudo controlado com 45 participantes. Eles foram randomicamente designados para receber sessões de estimulação ou sessões placebo e seu produto criativo foi avaliado através do Torrance Test of Creative Thinking (TTCT). O protocolo consistia de sessões de 20 minutos de estimulação, após as quais imagens de objetos de uso comum eram mostradas aos participantes. Metade deles recebeu instruções para visualizar a si mesmos utilizando o objeto de maneira não usual (pensamento divergente); a outra metade deveria imaginar-se utilizando o objeto de forma usual (pensamento convergente). Depois, foi pedido aos participantes que descrevessem todos os usos possíveis do objeto apresentado. O objetivo era induzir a tomada de atitudes diferentes diante de uma tarefa criativa. Os resultados mostraram intensificação da performance criativa após estimulação anódica (ponto onde a corrente positiva flui para dentro do corpo), mas apenas após terem recebido a instrução para o pensamento divergente. Os participantes mostraram temperatura corporal mais baixa após a estimulação catódica (ponto onde a corrente positiva sai do corpo), sugerindo que, quando uma tarefa não é criativa, ou quando o pensamento criativo não é solicitado, os sujeitos mostram níveis mais baixos de entusiasmo para cumpri-la (COLOMBO et al., 2015). Segundo os autores, nesta

situação haveria uma menor excitação tecidual, algo como uma menor “prontidão bioquímica” para executar a tarefa criativa. Desta forma, suporta-se a ideia já previamente defendida por outros autores (CHÁVEZ-EAKLE et al., 2007; ZABELINA et al., 2016) sobre o envolvimento da área dorsolateral do córtex pré-frontal na criatividade; e ainda confirma-se o uso da ETCC como método efetivo para o estudo das capacidades criativas.

Green e colaboradores (2017) também estudaram a cognição criativa, ou cognição relacional, que se refere à compreensão das relações entre experiências, ideias, objetos, palavras etc. A emergência destes pensamentos relacionais abstratos, e não apenas concretos ou superficiais, possibilita raciocínios complexos e tomada de decisões, sendo a marca do desenvolvimento cognitivo humano. Neste estudo, a ETCC foi utilizada em 31 sujeitos, de forma randomizada, para estimular a região frontopolar. Os autores questionavam se a capacidade de encontrar analogias semânticas melhoraria mais apenas com dicas de criatividade, com intervenção neural (ETCC), ou com ambas. As tarefas de aferição eram verbais, em que os participantes deveriam encontrar analogias entre as questões apresentadas. Os resultados confirmaram o potencial da ETCC em melhorar a cognição relacional criativa, permitindo a formulação de conexões entre conceitos distantes com mais eficácia.

A área artística, representada pela música, foi objeto dos estudos de Anic e colaboradores (2018) e de Rosen e colaboradores (2016). O estudo de Rosen (2016) propõe dois modelos de improvisação em jazz: o tipo 1 seria baseado em processos automáticos e associativos, enquanto o tipo 2 seria baseado em processos executivos e controlados. A escolha do tipo de processo seria dependente do grau de expertise do sujeito: novatos confiariam mais em mecanismos executivos e controlados, enquanto musicistas mais experientes escolheriam os processos automáticos e associativos. Para testar sua hipótese, os autores realizaram um protocolo de ETCC abordando o córtex pré-frontal dorsolateral com estimulação anódica (excitatória), catódica (inibitória) ou placebo em 17 musicistas de jazz. Os resultados mostraram uma interação significativa entre o grau de experiência do musicista e a ETCC: após estimulação anódica, novatos tiveram um desempenho melhor em termos de originalidade, conforme avaliado por especialistas em música, enquanto o efeito oposto foi obtido para os musicistas mais experientes, que exibiram pior desempenho. Os pesquisadores interpretaram suas

descobertas como uma confirmação do modelo dual de improvisação, uma vez que foram encontrados diferentes desfechos criativos entre musicistas novatos e experientes. Anic e colaboradores (2018), trabalhando com ETCC em pianistas, encontraram resultados muito similares aos de Rosen et al. (2016).

Ivankovsky e colaboradores (2018) utilizaram a ETCC para investigar diferenças culturais na criatividade. Examinaram grupos compostos por 30 israelitas e 30 japoneses com relação ao pensamento divergente que, embora não seja um sinônimo direto de criatividade, está entre seus preceitos fundamentais. A cultura japonesa é conhecida por ser um protótipo do leste asiático, restritiva e coletivista. Apesar de Israel não ser a escolha padrão para uma comparação prototípica entre Oriente e Ocidente, repetidos estudos mostraram que a população judaica em Israel é ocidentalizada e individualista (IVANKOVSKY et al., 2018). Cada participante foi submetido a uma sessão de ETCC e a uma sessão placebo, com duração de 20 minutos, intensidade de 1,5 mA e intervalo entre as sessões de três a sete dias. Após estimulação catódica (que inibe a atividade neuronal da região estimulada) no córtex pré-frontal esquerdo e anódica (que aumenta a atividade neuronal da região estimulada) no córtex pré-frontal direito, encontraram uma melhora no desempenho de tarefas criativas verbais, ou seja, diminuindo a atividade de áreas que bloqueiam a criatividade e aumentando a atividade de áreas que a promovem, haveria um efeito de “liberação criativa”.

Alguns mecanismos relacionados com a criatividade são servidos por áreas do cérebro às quais não é possível estimular diretamente por técnicas não invasivas. Ao ponderar sobre equipamentos para investigação em neurologia e criatividade, Colombo e colaboradores (2015) propõem que a neuroestimulação seria mais útil para encontrar relações causais e não apenas associações, como na eletroencefalografia (EEG), na cintilografia (SPECT) e na ressonância nuclear magnética funcional (fMRI). O EEG, já cogitado na fase inicial deste estudo, é o registro da atividade elétrica cerebral em diferentes regiões do córtex, realizado através de eletrodos posicionados em áreas específicas no escalpo (LUFT; ANDRADE, 2006). Na fMRI, também cogitada inicialmente em nossos procedimentos metodológicos, são criadas imagens transversais do órgão examinado a partir do princípio do eletromagnetismo, gerando um forte campo magnético com os prótons de hidrogênio do tecido humano, que será traduzido em imagens. A ressonância funcional soma a este mecanismo a detecção de variações

no fluxo sanguíneo local, inferindo sobre o funcionamento da área em questão (MAZZOLA, 2009). A cintilografia cerebral (SPECT) também detecta variações na circulação sanguínea do cérebro e gera imagens transversais do órgão, mas neste caso a partir da utilização de fármacos com marcação radioativa. Luft e colaboradores (2014) sugerem que a combinação de ETCC com outras técnicas de neuroimagem (por exemplo, fMRI, EEG) e empregando outras técnicas de análise de dados pode possibilitar uma compreensão mais profunda da dinâmica espaço- temporal, de padrões de conectividade e de desempenho criativo.

Os autores e estudos expostos neste capítulo confirmam, então, o efeito da ETCC no contexto criativo, para além das utilizações já conhecidas na clínica médica. O contexto criativo em Artes, de forma mais específica, foi também abordado. Há, entretanto, uma lacuna investigativa na área da Dança, que pretendemos tangenciar com este estudo.

“Coreografar é lidar com o „nada‟. É pegar esse „nada‟, que é o

silêncio, que é o ócio, que é o correr, que é o ficar... E usar esse

imenso „nada‟ de maneira a se comunicar; transformar isso num

processo de comunicação com o mundo.”

6 METODOLOGIA

Revisados os conceitos importantes à formulação e análise de nosso problema de pesquisa, assim descrevemos a metodologia deste estudo.