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4.1 BASES NEURAIS

4.1.3 Memória e criatividade

“Criatividade é a conjunção de duas ou mais memórias”. Na definição do psiquiatra Jaime Vaz Brasil, citada por Izquierdo (2011, p. 127) em sua obra “Memória”, encontramos a conexão entre estes dois conceitos que tão fortemente suportam o ato coreográfico em dança. Escolho propositalmente esta obra não acadêmica de Izquierdo, entre as centenas de artigos científicos escritos por ele; neste texto de acessível leitura dirigido ao grande público, o autor se permite avançar suavemente sobre o tema no qual exibe profundo domínio teórico. O

resultado são reflexões que servem à conexão arte-ciência, muito mais do que o pragmatismo dos artigos quantitativos. Passaremos a eles em seguida, mas a leveza e pessoalidade colocadas por Izquierdo logram, de alguma forma, tecer as costuras dos conceitos aqui discutidos:

Não se cria a partir do nada. Cria-se a partir do que se sabe, e o que sabemos está em nossas memórias. Não creio que exista alguma definição possível para o ato criativo. Alguma vez escrevi que ele se assemelha a tropeçar com alguma coisa, e que bem-aventurados são aqueles que se dão conta disso e a partir daí elaboram algo novo: um quadro, um poema, um conto, uma partitura musical. Mas os componentes dessas obras constam do que está em nossas memórias. (IZQUIERDO, 2011, p. 127)

Izquierdo (2011) julga que a criatividade pode ser considerada uma arte combinatória levada ao extremo, uma composição de memórias que não é igual à soma de suas partes.

As centrais reguladoras da memória humana estão localizadas em estruturas denominadas amígdala e hipocampo, que fazem parte de um sistema maior, composto ainda por estruturas diencefálicas (núcleo anterior do tálamo e hipotálamo), pelas fibras do fórnix (que conectam as estruturas do sistema) e pelas estruturas cerebrais do giro cingulado. Este sistema configura o sistema límbico (Figura 6 e Figura 8), que é um conjunto gerenciador de emoções e comportamentos sociais. O hipocampo é uma pequena protuberância que age como indexador de memórias, mandando-as para a parte apropriada do hemisfério cerebral para seu armazenamento a longo prazo e recuperando-as quando necessário (PFENNINGER, 1991; IZQUIERDO, 2011).

Uma variedade de funções e capacidades cognitivas básicas foram relatadas como correlacionadas com medidas de criatividade. Para criar algo novo, primeiro deve-se poder armazenar e recuperar informações, de modo que se possa facilmente fazer associações entre conceitos ou objetos. Por meio deste, o processo criativo pode se beneficiar da memória de trabalho, alternando entre categorias de resposta e modificando abordagens ineficazes para uma solução. Ao aumentar a carga de memória de trabalho, o desempenho de solução de problemas com pensamento convergente foi prejudicado, enquanto o desempenho de pensamento divergente foi aprimorado (HAN et al., 2018).

Os 86 a 89 bilhões de neurônios do sistema nervoso humano exibem individualmente dezenas de milhares de conexões para cada neurônio. Se até há pouco tempo se valorizava mais a localização de cada grupo neuronal e sua função, agora se considera que o número, a variedade e a qualidade das conexões é que determinam a complexidade dos nossos pensamentos. Há uma miríade de conexões possíveis, que podem se estabelecer e se desfazer continuamente, e que assim, determinam como nos relacionamos evolutivamente. À contínua mudança que ocorre nas conexões neuronais chamamos neuroplasticidade, e é ela que faz com que se possam aprender fatos novos desde o nascimento até o final da vida. O tamanho dos neurônios (Figura 11) determina sua excitabilidade, capacidade de alteração de voltagem e condutibilidade; e estas, a capacidade de estabelecer conexões. O diâmetro do axônio é inversamente proporcional à resistência interna da membrana celular; quanto mais espesso o axônio, mais fácil a transmissão nervosa. A bainha de mielina, capa lipoproteica, garante a manutenção da voltagem no axônio. O tamanho do axônio determina o grau de projeção que esta célula nervosa atingirá. E tudo isto, por fim, determina a capacidade que cada conjunto vivo de neurônios comunicantes tem de produzir pensamentos complexos e únicos em cada indivíduo (PFENNINGER, 1991; ZABELINA, 2016).

Figura 11: Estrutura básica do neurônio, célula nervosa

Um dos principais elementos celulares responsáveis pela memória e pela neuroplasticidade são os espinhos dendríticos (Figura 12). Eles são saliências que ampliam a área de superfície dos dendritos (projeções dos corpos neuronais), aumentando assim a capacidade de trocar informação com as células vizinhas. Um percentual dos espinhos dendríticos são lábeis (cerca de 35%), outros são permanentes. Eles apresentam diferentes formas (filamentar, fino, longo, achatado, em cogumelo, ramificado), executando diferentes funções, e apresentam capacidades biofísicas de resistência, condutância e capacitância que lhes conferem a habilidade de cumprir estas funções (Figura 13). Os espinhos mais lábeis são os filopódios, finos e compridos. Aliás, os espinhos menores e com formatos mais simples são os mais propensos a formarem-se e “dissolverem-se”, e por isto são característicos do processo de aprendizagem. Os espinhos mais complexos e estáveis são característicos de quem “já aprendeu”. Seria muito difícil colocar toda uma maquinaria celular para fazer e desfazer, a todo momento, espinhos maiores e de formatos mais complexos, como aqueles em formato de cogumelo, por exemplo. Os espinhos lábeis podem durar minutos ou horas e podem mudar de formato em segundos (TONNESEN; NÄGERL, 2016).

Figura 12: Espinhos dendríticos em visão esquemática (esquerda) e em microscopia

Stimulated emission depletion (STED) 3D

Figura 13: Tipos de espinhos dendríticos Legenda: A) sésseis; B) cogumelos; C) Filamentares; D) Filopodia; E) Ramificados; F) com espículas.

Fonte: TONNESEN; NÄGERL, 2016

O tratamento com estrógeno (estradiol, o hormônio característico feminino) aumenta o número de espinhos dendríticos nos neurônios hipocampais, aqueles responsáveis pela memória. Estudos com ratas demonstraram que os espinhos dendríticos diminuem em 30% na época da ovulação, sendo depois recompostos. As especializações ligadas ao sexo no organismo humano não estão restritas à produção hormonal e às características sexuais periféricas, mas dão sinais de clara interferência neuronal, ou seja, pode-se dizer que a neurofisiologia de indivíduos humanos femininos e masculinos mostra diferenciações neuro-hormonais bem estabelecidas. Garcia-Segura e McCarthy (2004), entre outros achados, descreveram o funcionamento dos neurônios GABAérgicos femininos no período da ovulação. O GABA é um neurotransmissor inibitório e tem a capacidade de bloquear a produção do hormônio do crescimento. Entretanto, cada vez que um folículo ovariano é liberado, os astrócitos (tipo de células “auxiliares” do sistema nervoso central) se prolongam e impedem a função dos neurônios GABAérgicos, permitindo, assim, que o hormônio do crescimento seja liberado. A liberação deste hormônio é

evidentemente necessária caso esse folículo seja fertilizado e gere um embrião. Todo este ciclo é apenas um dos exemplos de especialização neuro-hormonal ligada ao sexo. No que tange à nossa pesquisa, poderíamos especular sobre as diferenças entre coreógrafas e coreógrafos, e mais ainda, entre coreógrafas em diferentes fases de seu ciclo hormonal e de sua vida fértil no momento da criação de uma dança. Seria, talvez, impossível distinguir estas interferências puramente neuro- hormonais daquelas consideradas socialmente e psicologicamente relevantes nestes períodos.

A perda de detalhes contextuais pode refletir uma mudança temporária nas estruturas cerebrais que suportam a memória. Está bem estabelecido que a memória contextual do medo depende do hipocampo para expressão logo após a aprendizagem, mas se torna independente do hipocampo em um ponto posterior, um processo chamado “consolidação de sistemas”. Esse processo temporizado se correlaciona com a perda de precisão da memória. Pedraza et al. (2016) descobriram que a intensidade do treinamento de memória modula a decadência progressiva da dependência do hipocampo e da precisão da memória. Um treinamento de forte intensidade acelera a consolidação de sistemas e a generalização de memória. Os mecanismos subjacentes a esse processo são desencadeados por glicocorticóides e noradrenalina, hormônios produzidos de forma autonômica quando estamos sob estresse, liberados durante o treinamento. Esses resultados sugerem que os níveis de estresse durante a aprendizagem emocional atuam como um interruptor, determinando o destino e a qualidade da memória. O estresse moderado criará uma memória detalhada, enquanto um treinamento altamente estressante irá desenvolver uma memória genérica ou aversiva (PEDRAZA et al., 2016).

A memória, como forte determinante da capacidade criativa, é um interessante foco a investigar em coreógrafos de dança. Muitas questões de pesquisa em arte podem emergir do estudo da memória nas áreas básicas ou aplicadas. Por exemplo: uma vez que a criatividade está ligada à capacidade de aceitar a novidade, terá mais habilidade em coreografar aquele que recupera memórias facilmente, ou aquele que não as recupera? Em outras palavras: será mais fluente coreógrafo aquele que “lembra mais” ou aquele que “esquece mais”? Os sentimentos aversivos, como o medo, parecem ter efeito indesejado sobre a memória, mas, supondo que representem uma ativação do sistema límbico, não

ensejariam a criação de uma coreografia mais densa e consistente em termos de significado?

Estas e outras questões que conectem a memória ao gerenciamento dos afetos e dos sentimentos parecem pertinentes quando pensamos em investigar coreógrafos. Em suas obras estarão significados, decisões, preferências e complacências. Izquierdo (2011, p. 128) nos deixa com este pensamento:

Geralmente o artista é um ser que se irrita com a uniformidade e a massificação cultural ou estética da sociedade que o rodeia. Mistura suas memórias e cria suas obras para se refugiar ou para se afastar de uma realidade com a qual não compactua. [...] Talvez no início do século XXI todos sejamos um pouco artistas porque precisamos disso para viver.