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6 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

7.4 ETHOS INSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO ÀS CRIANÇAS

Na análise do material coletado nas entrevistas surgiram elementos que levaram o pesquisador a esboçar uma nova hipótese interpretativa: a de que existe no espaço do CERCA um ethos institucional, gerado a partir da ação social criadora dos seus profissionais, destinado a converter o Centro em um âmbito de proteção para as vítimas atendidas, primando

como uma força reguladora, balizada na forma de conceber a função do Centro, pautando o modo como os profissionais devem se comportar e relacionar no lugar de trabalho.

Convergiram para esta perspectiva construtivista a percepção de certas medidas e iniciativas levadas a termo pelos profissionais, às quais permitiram traçar os contornos normativos do contexto institucional do Centro. Seriam as seguintes:

a) A capacitação para o sigilo das vítimas. No início do funcionamento do CERCA, a equipe técnica “teve uma preocupação muito grande (...) da questão do sigilo” das vítimas. Essa preocupação foi traduzida na realização de uma capacitação com toda a equipe, incluindo especialmente o pessoal de apoio do Centro, que é composta por uma recepcionista, uma assistente de serviços gerais, dois seguranças e um motorista. Pretendia-se com isso conscientizar os mesmos da importância de ter uma postura de trabalho correta e em sintonia com as especificidades do funcionamento de um Centro que atende a crianças e adolescentes vítimas de violência.

A capacitação tratou sobre a questão dos tipos de violência e do sigilo e da discrição na recepção com relação às pessoas presentes no ambiente. Procurou-se, com isso, que não houvesse verbalização diante do público sobre os tipos de violência que cada criança sofreu, visando que as mesmas não sejam estigmatizadas. Concretamente, a recepcionista do Centro foi orientada a perguntar com discrição, quando as pessoas chegavam pela primeira vez no Centro, qual era o motivo da sua vinda.

...tem que ter este ponto de vista para perguntar a pessoa na recepção porque que o Conselho Tutelar encaminhou, para que a pessoa sinta uma segurança em dizer para ela e que as outras pessoas não escutem na recepção. Entendeu? Porque se a pessoa chega assim e diz: “– não porque eu fui vítima de violência sexual”, escutou na recepção, todo mundo fica querendo saber, querendo perguntar, não é? (E3as).

Outro ponto trabalhado naquela capacitação foi a necessidade de manter em sigilo a especialidade dos profissionais que atendem casos de violência no Serviço Sentinela, como também a daqueles que atuam no Programa de Saúde Mental. Quer dizer, procura-se não propagar entre os pacientes e visitantes do CERCA a identificação de quem atende violência e de quem é da saúde mental. Para que as pessoas que chegam ao Centro não possam relacionar que crianças atendidas por determinado profissional foram vítimas de que tipo de violência.

Para não dizer. Porque até as salas de atendimento ficam bem ali. Então, quando [nome de uma psicóloga do Sentinela] chama uma criança é, se todo mundo soubesse, todo mundo vai dizer: “– olha, essa daí foi vítima de violência”. Aí vai querer justificar o que fez, especular: que violência? né? Vai ter esta história. Tem toda esta história do sigilo. (E3as)

b) A mudança de nome do Centro. Quando o CERCA iniciou as suas atividades de atendimento, em 2002, chamava-se “Centro de Referência para Atendimento às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência”. Entretanto...

...algumas pessoas mais experientes disseram que isso não era bom porque isso expunha as crianças que aqui vinham, que... os adolescentes que vinham, que aí as pessoas iam fazer, “ah! Vão para aquele Centro porque já foram vítimas de violência”. Então a gente começou a chamar de CERCA. Só: Centro de Referência da Criança e do Adolescente. Aí a gente atualmente chama de CERCA (E1co).

Interpreta-se que a mudança de nome do CERCA deu-se para evitar a estigmatização social das crianças/adolescentes atendidas como “vítimas da violência”. No artigo de Ferreira e colaboradores (1999), informa-se que no Ambulatório de Atendimento à Família (AFF), no Rio de Janeiro, que também atende crianças/adolescentes vítimas de violência, a palavra ‘violência’, estrategicamente não aparece no nome do ambulatório porque se considera que

“uma denominação que não explicita a violência pode evitar a estigmatização dessas

crianças e suas famílias” (p. 124).

Essa medida, portanto, vai de encontro com a capacitação sobre a questão do sigilo, anteriormente mencionada. A única nuance que as diferenciaria seria que a capacitação pretendia evitar a estigmatização por parte dos profissionais e do público interno (pacientes e visitantes), enquanto que a mudança de nome visava mais alcançar à sociedade como um todo.

Cabe salientar que, no tocante à violência sexual, a etiqueta de criança abusada na família (“as meninas abusadas pelo pai”) tem ainda uma carga, um tabu moral muito grande na sociedade. E como vimos nos casos de abuso de meninos (masculinos) é agravado por conta do tabu da homossexualidade. Não há dúvida que a denominação inicial do CERCA era contraproducente e a sua mudança, então, pertinente.

c) A preocupação com o motorista. Atualmente, há uma atenção especial do Sentinela para que quando uma criança/adolescente tenha que ir/voltar no transporte do Serviço, não vá sozinha com o motorista. Categoricamente são colocadas duas possibilidades para o uso do transporte do Centro: ou a adolescente vai com um familiar ou responsável (adulto) ou vai junto com uma pessoa da equipe técnica (educadores sociais, psicóloga, coordenador ou assistente social). Mas, nunca sozinha com o motorista.

Até o momento da realização do trabalho de campo desta pesquisa o CERCA já teve três motoristas. Foi avaliado que o primeiro deles não tinha “postura de trabalhar” no serviço. “Porque quando saía para fazer visita domiciliar, quando ele via meninas na rua, ele

buzinava” (E3as). Podemos inferir que a percepção desse gesto despertou um temor de que,

de repente, o motorista pudesse chegar a assediar sexualmente alguma adolescente.

O segundo motorista que trabalhou no Centro levantou preocupação “porque era

muito jovem” (sic). Então acharam importante ficar atentos “porque as adolescentes podem pensar né que ele possa estar de uma forma ou de outra.” [... disponível/interessado nelas?].

Note-se que aqui a noção de periculosidade sexual aparece associada à figura de um homem pelo fato dele ser jovem, revelando o imaginário social que representa a juventude masculina como impulsiva e perigosa30. Entretanto, este segundo motorista “ele tinha uma postura

profissional muito boa” e era “uma pessoa muito boa, religiosa, gosta de ajudar as pessoas”.

Com relação ao terceiro motorista, ele sabe que “tem que levar as crianças e os adolescentes,

que ele tem a postura de um técnico também” (E3as). A maior confiança no segundo e

terceiro motoristas, contudo, não foi suficiente para permitir situações em que uma adolescente pudesse viajar sozinha com um deles.

d) A participação das psicólogas em audiências públicas. Outra medida encontrada que visa proteger as vítimas e evitar a sua re-vitimização é o acompanhamento das psicólogas às vítimas nos Fóruns de Justiça. Na maioria desses casos trata-se de vítimas de abuso sexual. Essa atividade costuma supor maior dedicação da profissional, extrapolando os limites da jornada de trabalho. Mas isso é percebido como um esforço “em prol do benefício das

crianças, né? que algo seja feito” (E6ps).

A participação das psicólogas em audiências tem dois objetivos. O primeiro é estar junto à vítima, oferecendo apoio emocional e cuidando do seu estado de especial fragilidade (E4ps). Nesse caso, a advogada pede ao juiz que permita que a psicóloga fique ao lado da criança ou do adolescente. E, em alguns casos, também pede para que a psicóloga faça declarações no seu lugar, sendo este o segundo objetivo. Apesar de ser uma estratégia da defesa, a importância do depoimento da psicóloga também se deve ao cuidado para que a vítima não fale de novo sobre o que aconteceu com ela, evitando assim, a sua re-vitimização psicológica:

30

Esta associação entre juventude e periculosidade foi apontada pelo antropólogo Russell Parry Scott no IIIº Seminário sobre Homens, Sexualidade e Reprodução, realizado no Recife em 24 e 25 agosto de 2005. Em sua apresentação, o professor Scott explanou acerca do seu achado em pesquisa em Unidades Saúde da Família do Recife, em que os homens, e especialmente os jovens, evocavam sensação de perigo aos profissionais de saúde. Na sua interpretação os jovens ainda seriam considerados como praticantes de sexo não legítimos pela sociedade,

...têm muitos casos que são revelados no atendimento psicológico. Né, e pela avaliação, é melhor a psicóloga falar do que a própria criança falar. Porque ela vai ter que voltar toda a história de novo, né (E3as).

Além disso, existe uma questão normativa que propicia essa prática também. Se um juiz solicitar laudo ou parecer escrito acerca de determinado caso, a psicóloga só pode escrever se a criança verbalizou a situação de abuso ou não. Mas não pode redigir mais detalhes sobre o que foi revelado no atendimento. Assim, o único local em que o Conselho de Psicologia autoriza os profissionais a quebrarem o sigilo, verbalizando o que a criança falou no atendimento, é na frente do juiz.

Em qualquer caso, o compromisso das psicólogas com as pacientes é reforçado com esta prática, ao demonstrar coerência diante da família e legitimar a estratégia jurídico- terapêutica adotada no Centro de enfatizar a importância de denunciar, visando punir o abusador sexual. Vale lembrar que essa atividade é feita em articulação com a ONG CENDHEC, que promove o apoio jurídico às famílias, cujos casos tenham desdobramento judicial.

e) a determinação de não admitir comportamentos violentos no espaço do CERCA. Para fechar este assunto, reproduzimos a história contada por uma profissional da saúde mental relatando que um pai, nervoso, esperando atendimento, tirou o sapato para bater no filho de três anos. Naquela hora, a profissional, que estava chegando viu a cena e repreendeu o pai, lembrando que aquele era um centro de referência contra a violência e não iria permitir que ninguém cometesse violência no espaço:

Eu impedi! [ênfase]. Eu sou muito assim... Eu cheguei e me identifiquei, ele com a sandália na mão e eu disse a ele: “– Olhe, se o senhor vem procurar este serviço é porque o senhor está vendo que a sua forma de lidar com as dificuldades que vocês estão tendo não está sendo

é um centro de referência contra a violência, a gente não vai admitir que ninguém seja agredido aqui dentro”. Aí ele ficou meio assim, sabe. Era um senhor de um porte físico e ficou meio assim, me olhando meio assim, meio sisudo. Meio aborrecido, mas eu fiquei na minha, mantive. “– Nós vamos conversar calmamente, tudinho, mas a gente pede que as pessoas... aqui é o centro de violência, então, de começo não pode haver violência aqui dentro. A gente não admite” (E10as) [os grifos são nossos].