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6 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

7.3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS PROFISSIONAIS

7.3.2 Representações sobre as famílias atendidas

7.3.2.1 Famílias normais e empobrecidas

A princípio, e, em geral, os profissionais do CERCA não enxergam como diferentes as famílias atendidas das demais que compõem a sociedade. As famílias ditas “normais” são

percebidas também com seus problemas, conflitos e “dificultores” (sic), não havendo, portanto, solução de continuidade entre umas e outras.

Essa certeza é fortalecida com a reflexão de que a violência é um fenômeno que perpassa todo o corpo social, não deixando nenhum grupo imune à sua virulência. Um profissional argumentou que, “de certa forma, todos nós somos vítimas de alguma forma de

violência. Ou física ou psicológica ou em algum momento da vida da gente, né?” (E10as).

De acordo com outra profissional: “não há referência social, não há referência

cultural (...). Porque pode acontecer como acontece em qualquer situação socioeconômica, independente do quesito raça-cor, independente de grau de instrução, de religiosidade”

(E2ps). Esta profissional ilustrou a sua convicção com o caso de uma mãe que era uma

“pessoa tão esclarecida, uma pessoa inclusive da área e que, né... permitiu o constrangimento dela, em todos os depoimentos dela é que ela percebia, mas não tinha coragem (...) Uma pessoa com esse perfil, com este tipo de visão foi negligente nesta situação” (E2ps). Neste caso, a convicção no caráter “democrático” (sic) da violência vem

mais de experiências anteriores de trabalho de uma profissional no Conselho Tutelar, onde frisa que já conheceu casos de violência em famílias bem situadas socialmente.

É digno de nota que uma psicóloga, quando questionada em virtude daquela categorização entre famílias ditas normais e aquelas com dinâmica de violência instaurada, refletiu que o que introduz certa diferenciação entre elas é justamente o fato de que estas últimas têm que sofrer um processo de intervenção psicossocial no Centro. Tal situação significaria expor a intimidade daquela família ao olhar invasivo dos profissionais. As famílias reagiriam adotando uma atitude defensiva no atendimento, muito fechada. Na opinião dela não deixa de ser normal e demanda um cuidado especial por parte dos profissionais (E6ps).

Pode se arrematar este raciocínio com o argumento de que a resistência e a diferenciação destas famílias decorrem do fato que a aceitação do atendimento significa para elas o reconhecimento público de que precisam de ajuda, e de que fracassaram no desempenho do papel de cuidadoras. Tal aceitação produziria um sofrimento extra nestas famílias, que chegam nos serviços com a auto-estima muito baixa:

...elas terminam tendo alguma particularidade porque elas próprias já começam a se diferenciar. Elas mesmas, por si só, já começam a se colocar como..., muitas vezes se diminuir. A se diminuir, a se rebaixar, né? e se esconder. Porque qual é a mãe, por exemplo. Por exemplo, qual é a mãe que gostaria de expor seu filho, que esse filho foi vítima de violência física? Qual é a mãe que gostaria de comentar com seus vizinhos e amigos que seu filho, que seu filho ou filha, foi vítima de violência sexual.

(...)

Mas este tipo de situação. Quer dizer, muitas vezes ela tem esta particularidade porque? Porque de repente não quer se expor (E5es).

Apenas uma profissional considerou que as famílias que sofrem violência se diferenciariam do restante das famílias por apresentar “alguma coisa mais profunda, alguma

coisa mais, mais anterior, que foi vivida (...), que ficou lá, que foi mal resolvida” (E4ps).

Significativamente, tratava-se de uma psicóloga.

Contudo, há um reconhecimento geral de que “a maioria das famílias que vem a ser

atendidas aqui no Centro, elas são pobres, né?”. Esta realidade, se admite, é reflexo do fato

que no Sistema Único de Saúde (SUS) apenas chegam as famílias de menor poder aquisitivo ou que não têm como ter acesso aos planos de saúde (E1co). Já outra profissional colocou que, eventualmente, pessoas “com condições socioeconômicas até melhores” chegam no Centro procurando atendimento27 (E10as).

27

O único caso relatado de atendimento no CERCA de uma família mais abastada refere-se a uma situação de conflito e separação conjugal, na qual havia disputa pelo filho, num contexto que levava a uma violência psicológica e manipulação da criança. Assim mesmo, nas palestras de prevenção, percebeu-se que algumas famílias com maior status social demonstrariam maior consciência sobre o problema da violência: “têm mais orientação, não

sei o que... de acordo com o seu aprendizado, sabe, mas no geral...” (E7es).

Mas em todas as outras famílias, a situação socioeconômica, junto com o “nível

cultural, deixa muito a desejar”. E o álcool (e, em menor medida, outras drogas) aparece

quase sempre como “rotulando a situação” (...) “nas entrelinhas, ali, para justificar” a ação violenta (E2ps).

A caracterização das famílias atendidas no CERCA como pobres está imbrincada com uma teia de circunstâncias que vêm a complexificar o sucesso do atendimento. Em primeiro lugar, há o reconhecimento de que as condições financeiras das famílias constituem um grande “dificultor” que atrapalha e compromete o trabalho dos profissionais. A maioria das famílias atendidas tem dificuldade para se deslocar para o Centro e não dispõe de dinheiro ou vales-transporte suficientes para garantir um atendimento com regularidade. Além disso, outra característica das famílias mais pobres atendidas, associada às suas condições de vida, é que elas não dispõem de telefone convencional. Senão que utilizam telefone celular, de cartão. Tais circunstâncias vêm à tona porque interferem nas estratégias de atendimento num

no enfrentamento da violência, com apoio jurídico e atendimento psicoterápico focado no problema, que o setor privado não tem, seja por despreparo ou por preconceito e rechaço emocional dos profissionais do setor privado a trabalhar com o tema:

– É. Porque para eles assim, ou há uma dificuldade de encontrar um profissional que queira trabalhar com questões ligadas à violência. Que existe um certo despreparo em geral nas pessoas que vão trabalhar com a violência.

– No setor privado?

– É. E existe também uma, uma, um certo preconceito também. De trabalhar questões ligadas à violência. Ainda tem muita gente. Não é? Mexe também com o psicológico da pessoa, com o individual, remontam algumas questões também, né? (E1co0)

contexto de restrição gerencial dos recursos. Assim, em períodos passados, o CERCA já dispôs de mais vales-transporte para distribuir entre as famílias assistidas, bem como de uma linha telefônica com possibilidade de ligação a celular. Desde que os cortes administrativos em tais itens foram efetivados28 o Centro vem enfrentando maior dificuldade para manter uma boa comunicação com aquelas famílias mais necessitadas e garantir a sua acessibilidade. Pois, “a gente não tem vale-transporte (...) O ideal seria que a gente tivesse vale-transporte para

dar, pelo menos, para a maioria delas” (E1co).

Em segundo lugar, como a maioria da clientela é de um perfil socioeconômico muito baixo também foi percebido que isso demanda, sobremaneira, uma dependência da mulher em relação ao cônjuge para sobreviver. O que pode interferir decisivamente na hora de denunciá- lo ou, inclusive, de manter os filhos em atendimento. Aqui vale lembrar dois casos bem ilustrativos a respeito. O primeiro refere-se a um episódio narrado por uma profissional relativo a algumas mães que abandonaram o atendimento após uma sessão em grupo-família na qual se explicaram algumas questões de violência de gênero contra a mulher, bem como os desdobramentos judiciais pertinentes ao seu enfrentamento (E6ps). O segundo caso foi expresso, de modo genérico, na situação em que, por vezes, o “agressor sexual”, figura masculina por excelência, “por estar morando próximo ou então morando bem embaixo do

mesmo teto” com a vítima, termina propiciando o abandono do atendimento:

...o pai, por exemplo, que mora junto, né, pai e mãe e a criança, o pai realmente vê aquela situação, mas a criança sente constrangimento, e a mãe vai fraquejando – se é que eu posso dizer assim –, para trazer para o atendimento, aí vai largando aos poucos, largando, até que deixa de vir, entendeu?

(...)

28

De acordo com um profissional do CERCA, “houve uma época que a gente tinha 150 vales-transporte aqui,

baixou para 100, baixou para 50 e este mês vieram 20 vales-transporte. Então isso é um problema” (E1co).

Infelizmente, entendeu? Infelizmente muitas vezes larga o atendimento, às vezes passa aí alguns dias, alguns meses para uma... aí volta a acontecer de novo, aí termina sendo um ciclo vicioso, uma bola de neve (E5es).

Em terceiro lugar, num cenário de pobreza e desemprego, uma profissional do programa de saúde mental chegou a perceber a alta ocorrência de famílias chefiadas por mulheres nas comunidades carentes de onde vem a maior parte da clientela do CERCA. E observou que esse é um importante empecilho para a organização de grupos terapêuticos semanais para as mães:

É muito grande o número de famílias que não tem a figura do pai presente. E quando tem, às vezes este pai não trabalha, é um bêbado que fica lá como mais um filho, mais um, um peso para aquela mulher cuidar. Essa é a nossa realidade. Quando não são famílias que estão sustentadas pelos avôs, pelo avô, pela avó e muito a avó.

(...)

É porque mães elas não têm a disponibilidade sempre. Algumas têm outras não de estar semanalmente aqui. (...) Porque tem mãe que trabalha [ênfase] o dia inteiro. Tem mãe que deixa o filho ou trancado dentro de casa ou no mundo. Não sabe nem onde é que está. Porque não tem como pegar e segurar a mãe às rédeas. Porque ela tem que trazer comida para dentro de casa (E8ps).

E às vezes aquele pai ou a mãe, que é tão fundamental, que é a origem de toda a história da criança, às vezes não se dispõe muito a vir, por questões de trabalho, ou porque está separado. Aí é deixar de mão... (E10as).