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Etiologias das diferenças de género: história breve e debate de fundo

IV. Sentidos e vivências do sexo: tornar-se género na cultura da reflexividade

2. Etiologias das diferenças de género: história breve e debate de fundo

A teoria psicanalítica sobre a diferenciação dos géneros a partir da simbolização dos dois tipos de características anatómicas da espécie coloca nos ombros de Sigmund Freud, na sua pioneira procura de luz para o mistério das diferenças de género, a responsabilidade de ter criado uma visão de desigualdade numa certa leitura do corpo como ponto de partida: a falta do falo, na menina, o medo da perda do falo, no menino. Duas formas de insegurança emocional que poderíamos ler como um sentimento básico de inferioridade feminina e um medo primário masculino de perda da superioridade. Se entre uma e outra condenação tendemos a avaliar a primeira como pior, sem grandes hesitações, a segunda pode nem sempre ser boa, ao contrário dos postulados antigos da superioridade natural masculina. Mas não pretendendo aprofundar esta linha de abordagem teórica, e sabendo que o tratamento científico das questões de ordem valorativa tem feito evoluir o debate questionando a clássica ideia de que as desigualdades sociais de género se fundam nas naturezas complementares do feminino e do masculino, gostaríamos de partir de um texto de referência de Freud, escrito em 1905, cujo entendimento da determinação social das diferenças de género se opõe à desvalorização do feminino que impregnava a ideia antes exposta:

É tomando-os no sentido biológico que os termos “masculino” e “feminino” se prestam a definições claras e precisas. “Masculino” e “feminino” indicam então a presença, num indivíduo, quer de glândulas espermáticas, quer de glândulas ovulares, com as diferentes funções que dali derivam. O elemento “activo” e as suas manifestações secundárias, tais

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como o desenvolvimento muscular acentuado, uma atitude de agressão, uma libido mais intensa, estão ordinariamente ligadas ao elemento “masculino” tomado no sentido biológico, mas não é necessário que assim seja. Num certo número de espécies verificamos efectivamente que os caracteres que acabámos de enumerar pertencem às fêmeas. Quanto ao sentido sociológico que atribuímos aos termos “masculino” e “feminino”, é ele fundado sobre as observações que fazemos todos os dias sobre os indivíduos dos dois sexos. Provam- nos estas que, seja do ponto de vista biológico, seja do ponto de vista psicológico, os caracteres de um dos sexos num indivíduo não excluem os do outro. De facto, todo o ser humano apresenta, do ponto de vista biológico, uma mistura de caracteres genitais próprios do seu sexo, e de caracteres próprios do sexo oposto, da mesma forma que uma mistura de elementos activos e passivos, quer estes elementos de ordem psíquica e dependam ou não dos caracteres biológicos (Freud, 1905/ n.d., p. 158-159)

Poderíamos resumir este texto numa ideia que ainda hoje é tida como radical: a ausência de diferenças naturais que justifiquem as diferenças sociais de género, ou, por outras palavras, a redução das diferenças “mínimas obrigatórias” ao sexo, e mesmo ele contendo uma mistura, tratando-se o género de uma variável exclusivamente social, que determina o psicológico. Desenvolvendo melhor, o autor expõe de forma clara a ideia de que as diferenças entre masculino e feminino se reduzem, no limite biológico, às glândulas reprodutoras, cuja relação com os caracteres observados nos dois sexos passa por uma atribuição sociológica. Este limite é tanto mais reduzido, quanto o autor identifica, no plano biológico, tomado com um todo, uma mistura de caracteres, sem que se observe uma distinção biológica clara entre seres (apenas) femininos e seres (apenas) masculinos – o que corresponde à sua teoria da bissexualidade primordial.

Esta ampla margem de indiferenciação primordial no plano biológico, sugerida por Freud neste texto, tem-se vindo a confirmar na investigação científica, aferindo as hipóteses da interactividade dos genes e do sistema hormonal com o ambiente e o comportamento (Hampson & Moffat, 2004), apesar da aparição recorrente de correntes redutoras ligadas às neurociências que observam certos estados da psiconeurologia do cérebro como se este não fosse plástico e as estruturas observadas não se tratassem de efeitos cumulativos de interacções da pessoa (Oliva, 1997). Quanto à sua continuidade no plano psicológico, com toda a plasticidade que lhe é característica, só poderia resultar numa diferenciação ontogénica que se organiza essencialmente em função de restrições e orientações sociais, incorporadas através de uma construção mental progressiva. De facto, todo um corpo de investigação sobre a etiologia das diferenças de género tem vindo a pôr

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em questão as teses mais deterministas sobre a biologia e psicologia da diferenciação de géneros (Amâncio, 1998, Héritier, 1996, Kimmel, 2000).

A definição de género, como a de adolescência, varia de acordo com diferentes contextos culturais e históricos. A diversidade cultural do que se entende distinguir e caracterizar os homens das mulheres é um dado que a antropologia confirma há um século de estudos etnológicos, mas a esta acrescenta-se a diversidade dentro de cada cultura (Kimmel, 2000), e também dentro de cada grupo específico, ou ainda na mesma pessoa em diferentes situações (Maccoby, 2000). Não obstante invariavelmente em todas as épocas e culturas são construídos, a partir da existência de dois sexos, sistemas de significações diferenciadores de duas classes de género, as quais excedem em muito as diferenças biológicas (Amâncio, 1998).

A questão principal centra-se, então, no sentido sociocultural da existência desta diferenciação. Uma revisão histórica sobre alguns discursos mais influentes pode ajudar- nos a num caminho de pensamento.

Conceição Nogueira (2001) recorda que o pensamento grego, fundador da cultura ocidental, veiculava a ideia do “homem como o criador da ordem e da lei, enquanto a mulher estaria associada ao desejo e à desordem”, um ser inferior na sua natureza (p. 2). A “sua inferioridade sexual e intelectual”, ligar-se-ia, mais tarde, no iluminismo, ao “seu papel natural na reprodução da espécie e no cuidado com os filhos, decorre naturalmente de uma definição de ‘função’, e de ‘papel’ (...) a mulher é essencialmente esposa e mãe”, reduzindo a sua cidadania “ao facto de serem esposas de cidadãos”, assim reduzidas à esfera privada (Foucault, como citado por Nogueira, p. 3). Também os discursos médicos tendiam a reforçar o discurso da fragilidade feminina, devida “às desordens provenientes dos seus órgãos reprodutivos” (Berriot-salvatore, ibidem, p. 3), enfatizando o lugar da maternidade.

A psicologia diferencial, como a psicologia social, produziram um corpo de conhecimento sobre as diferenças de género que veio a ser fortemente criticado no sentido de consolidarem algumas crenças, dando-lhes um suporte empírico (Nogueira, 2001). Trata-se de abordagens tendencialmente positivistas, como as que descrevem padrões de feminilidade e masculinidade como traços de personalidade estáveis, que transmitiriam a ideia do “indivíduo como entidade auto-contida (...) elevando as acções individuais acima da influência do contexto onde as acções decorriam. A independência, a autonomia e as fronteiras de um ego bem delimitadas, tornaram-se objectivos de desenvolvimento saudável.” (ibidem, p. 12).

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Estas críticas, provenientes de autoras feministas, vieram a dar origem à criação de novas teorias que colocavam os “traços femininos” ou “traços masculinos” como resultados de processos de socialização numa lógica de maior flexibilidade psicológica. No entanto, parece-nos que aqueles estudos são sujeitos, neste olhar, a uma redução questionável. Em primeiro lugar porque podem ter um valor intrínseco enquanto “retratos instantâneos” de formas de funcionamento que representam adaptações a certos contextos e a certas épocas. Por definição a psicologia estuda a conduta individual e as suas regularidades tendo sempre em conta que estas resultam de um processo de adaptação ao ambiente, embora nem sempre esta explicitação seja clara. Por outro lado, a psicologia diferencial e a psicometria têm demonstrado que se verificam padrões consistentes e estáveis de funcionamento psicológico, ou de personalidade, precisamente a partir da adolescência para a idade adulta, que resulta de uma síntese de soluções e de aprendizagens que se foram realizando e estruturando (e.g. Garcia, Aluja & Garcia, 2004). Parece haver, neste caso, um pensamento crítico que confunde a plasticidade psico lógica, como a cerebral, com que nascemos, com os limites desta plasticidade, nomeadamente a partir de se ser adulto: se o ser humano é capaz de fazer adaptações toda a vida, isso não quer dizer necessariamente que possa mudar toda a sua auto-organização em qualquer ponto do seu percurso de vida. Ou talvez a preocupação da corrente feminista se foque simplesmente nos discursos produzidos a partir destes dados, sendo esta a justificação essencial para o escrutínio dos dados que podem ajudar a cimentar estereótipos ou aquelas que podem contribuir para as transformações desejadas no sentido da igualdade – uma visão da psicologia crítica (Nogueira, 2005).

A teoria dos papéis sociais de Eagly (1987) fundamenta a ideia de que as diferenças de género encontradas nos homens e nas mulheres decorrem da diferenciação dos papéis sociais, sendo desde crianças socializadas no sentido de ajustarem as suas competências aos papéis tradicionalmente femininos ou masculinos. Esta determinação sociológica acentuava-se com certos modelos familiares, como aquele que se instalou na sociedade ocidental no pós-guerra como ideal, denominado pelos sociólogos da família como ‘família nuclear moderna’.