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Pontos de partida sobre o género: conceitos e orientações

IV. Sentidos e vivências do sexo: tornar-se género na cultura da reflexividade

1. Pontos de partida sobre o género: conceitos e orientações

As vivências do género na transição da infância para a idade adulta, na mudança da modernidade para a pós-modernidade, entre a erupção dos movimentos feministas, a sua saída de moda e o retorno do conhecimento dos estudos de género, num contexto de rápida

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e profunda transformação das famílias, das práticas e dos papéis sociais, dos valores e dos discursos, só podem ser, decerto, uma matéria de elevada complexidade.

Se a identidade sexual influencia todas as vivências e dimensões do desenvolvimento, e o género a impregna dos seus sentidos, constituindo, ainda, um dos fundamentos mais poderosos, senão o mais poderoso, da identidade dos indivíduos, e da organização da vida social (Kimmel, 2000), podemos pensar que a sua construção neste contexto complexo poderá espelhar incoerências, dúvidas, problemas por resolver, entre o legado que o jovem recebeu e a liberdade reflexiva de se auto-determinar. Por esta razão os conceitos de identidade de género e identidade sexual são centrais neste capítulo.

Usámos a palavra ‘construção’, e definimos desde já a utilização deste conceito, uma vez que é sobejamente usado ao longo deste trabalho e que exprime a nossa visão teórico- epistemológica na abordagem do género. Entendemos que o conceito, aplicado ao processo de constituição de uma identidade, traduz um sentido mais profundamente psicossocial, mais activo do ponto de vista do sujeito, e mais continuado no tempo, do que os conceitos de incorporação ou de interiorização, respectivamente usados na antropologia e na psicologia. Sendo a noção de construção mais abrangente, pode integrá-los, nomeadamente postulando que uma parte do processo de identificações de género é mimética e inconsciente, iniciando-se antes da existência da autoconsciência corporal, e muito antes de uma autoconsciência reflexiva (Álvarez, 2012), face às acções e estímulos que se encontram disponíveis no seu meio. Por outro lado, este conceito por inerência transporta uma visão construtivista dos processos de diferenciação do género, que inclui a consciência autorreflexiva que se insinuou a partir dos valores da modernidade e se instalou com a pós-modernidade (Alvarez, 2012; Giddens, 1994) e cujo uso pleno se torna cognitivamente possível a partir da adolescência (Ivey, 2000).

A distinção entre os conceitos de ‘diferença’ e ‘desigualdade’ tem implicações teóricas importantes pelo que tentamos aclará-la, também, previamente. Manuela Ivone Cunha (2007), referenciando-se em San Román (1996), esclarece a confusão criada quando se opõe, erradamente, ‘igualdade’ a ‘diferença’, sublinhando que o termo ‘igual’ se opõe não a ‘diferente’ mas a ‘hierarquizado’ e que o termo ‘diferente’ se opõe a ‘semelhante’ ou ‘idêntico’, e não a igual (p. 1). Assim, quando usamos a designação de desigualdade referimo-nos à definição de Cunha (2007, p. 1) implicando noções de classe ou de estratificação social, uma vez que se faz “referência a direitos, à repartição de poder e de riqueza, ao acesso a recursos e recompensas, materiais ou simbólicas.” Mas se esta definição não parece polémica, já as designações das semelhanças e das diferenças, neste

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campo, podem sê-lo, uma vez que alguns autores supõem que as diferenças de género são apenas uma consequência da desigualdade, e assentam em percepções distorcidas da realidade (Kimmel, 2000). Hare-Mustin e Marecek (1994, como citado por Nogueira, 2001) defendem explicitamente que o dualismo ‘diferença versus desigualdade’, tal como ‘sexo versus género’, são “armadilhas” no terreno da Psicologia Social (p. 19). No entanto, considerando que a ‘similaridade’ também não implica ‘igualdade’, pois “a experiência das mulheres também não é uniforme, divergindo conforme inserções de classe” (Cunha, p. 6), e ainda que “nem todas as diferenças geram desigualdade” (idem, p. 1), escolhemos usar ambas as designações, assumindo o conceito de ‘diferenças de género’ para exprimir as percepções dos sujeitos sobre elas, quer estas se verifiquem, quer não se verifiquem, na ‘realidade objectivada’ nos estudos extensivos sobre as características dos homens e das mulheres.

Da mesma maneira consideramos ser útil definir as expressões ‘sexo’ e ‘género’, tendo sido usadas sob diferentes definições, nem sempre concordantes. Baseamo-nos numa distinção de Deaux (1985): quando dizemos ‘sexo’, feminino ou masculino, referimo-nos à pertença dos indivíduos a cada uma das categorias demográficas, em virtude das suas características biológicas; quando dizemos ‘género’ referimo-nos às categorias sociais que aglomeram inferências e significações a partir das características biológicas e que são formadas por percepções e atribuições, julgamentos e expectativas que incluem elementos identitários, papéis e estereótipos de género.

Se esperamos com a investigação das vivências específicas de género produzir alguns elementos de compreensão sobre as condutas adictivas do comportamento alimentar e do uso de drogas, dada a sua assimetria de distribuição pelos dois sexos, também pensamos que o estudo daqueles comportamentos pode espelhar aspectos específicos da construção do género na adolescência contemporânea.

No capítulo anterior aflorou-se a importância da identidade de género na construção da adolescência, e na forma como esta identidade, fornecida pelas sociedades, ordena a relação com o corpo e a sexualidade que desponta nesta fase. Sublinhou-se, ainda, a tendência da diferenciação universal do género, observada nos ritos iniciáticos femininos e masculinos de diversos contextos culturais, e a sua relação com os sistemas de aliança e a reprodução social, para se concluir que as determinações das características de género são fundamentalmente sociológicas e culturais, aliando-se à criação de significados sociais de maternidade e paternidade.

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Tentando aprofundar e reflectir estas abordagens, a revisão teórica que fazemos neste capítulo, longe de ser exaustiva, é um recorte de vários olhares sobre o género que nos permita o exercício de aproximação a diferentes contextos e mecanismos psicossociais produtores de vivências e de sentidos. Dividindo a investigação sobre o género em dois grandes grupos, a que se dedica à descrição das suas diferenças e das suas condições desiguais, e a que procura a origem e os processos de produção dessas diferenças, à partida focamo-nos mais neste segundo grupo, em que se inclui o desenvolvimento, a socialização e o discurso. Os dados do primeiro grupo interessam-nos na condição de estereótipos e narrativas sobre o género que afectam e influenciam as vivências individuais, não enquanto ‘realidades’. O debate sobre o género como categoria social multidimensional é lançado no primeiro ponto e depois vai-se entrosando ao longo do capítulo.