• Nenhum resultado encontrado

O sexo do corpo e da mente: adolescência e identidade

IV. Sentidos e vivências do sexo: tornar-se género na cultura da reflexividade

8. O sexo do corpo e da mente: adolescência e identidade

A passagem à idade adulta depende, do ponto de vista psicológico, da construção da identidade sexual, tornando a consolidação deste processo, segundo vários autores da psicanálise, a tarefa mais importante da adolescência (Freud, 1905/n.d.; Matos, 2000; Grinberg, 1998). Os mesmos consideram também que a escolha implicada nesta construção implica a renúncia à bissexualidade para a consolidação de uma identidade sexual firme, que oriente o indivíduo na escolha de um objecto de amor, “dada a importância do casal que for capaz de construir como organizador da vida mental” (Matos, 2000: XVI).

A capacidade de adaptação individual à sociedade, implicando a interiorização de um modelo cultural de passagem à idade adulta, subentende uma possibilidade de satisfação de necessidades psicológicas de afecto e de intimidade em relações que substituem a relação “materna”, e que fornecem à vida adulta um suporte emocional, e um enquadramento das necessidades sexuais que no modelo ocidental moderno se lhe ligam idealmente e consistentemente. Ora do ponto de vista psicanalítico esta capacidade de estabelecer relações amorosas fora da família de origem, ligadas à sexualidade a partir da adolescência, subentende uma diferenciação anterior, supostamente adquirida na infância: a capacidade de sair do domínio exclusivo das relações duais e íntimas – de dependência emocional - para penetrar na rede social a partir das relações triádicas – de diferenciação individual face ao casal parental (real ou simbólico) - exigindo uma certa capacidade de emancipação e de individuação. É sobre esta emancipação – pela escolha do objecto de amor (íntimo e dual), e escolha do objecto de identificação (social e triádico) – determinando, entre outros aspectos, a orientação sexual - que se funda a identidade sexual (Matos, 2000). Esta assume uma organização psicológica individual, que por via do processo de modelagem relacional e dentro da margem de manobra da liberdade individual, menos reduzida nas sociedades contemporâneas auto-reflexivas, a afasta ou aproxima em maior ou menor grau dos referentes culturais das identidades de género, masculinidade ou feminilidade.

92

Na adolescência esta identidade, com as transformações do corpo e da libido, confirma- se, reforça-se e amplia-se, modelando-se em torno da fantasia sexual central e processo de a pôr em prática: a experiência afectiva – sexual do par amoroso. Esta experiência ensaia e permite a entrada na vida adulta, e correspondentes funções conjugais e parentais, atingindo o objectivo nuclear do adulto, a transmissão da herança cultural, na formação de novos homens e novas mulheres, a quem fornecer identificação, assegurando a sua imortalidade simbólica (Matos, 2000, Figueiredo, 1993).

A autonomia decorrente destas aquisições, por via do limite familiar, não se desenvolve, falhando a formação de uma identidade social na procura de um lugar na sociedade. Este vazio que se cria entre o indivíduo e a sociedade abre caminho para uma substituição deste processo por uma identificação a uma subcultura masculina, com contornos iniciáticos, a entrada na toxicodependência (idem).

Esta substituição da identidade sexual masculina pela toxicodependência, encontrando- se elementos simbólicos da socialização típica masculina, assim como a substituição da identidade sexual feminina pela anorexia nervosa, fornecendo-lhe também esta um conjunto de elementos simbólicos da socialização típica da feminilidade, constitui uma hipótese clássica de Olivenstein (1990) nas dependências de drogas.

Na relação entre as pressões sociais e o indivíduo, a família pode exercer um efeito determinante, a começar pela relação entre os adolescentes e os pais, nas suas condições de género. Estes são observados pelos filhos enquanto casal, homem e mulher, pai e mãe, e as suas identificações, pela positiva ou por oposição, são mediados pelo desejo de agradar – ou agredir -, sendo alvos de “ensaio” dos seus papéis sexuais relacionais. Considerando a relação de uma jovem com o seu corpo, na construção da sua identidade sexual, Coimbra de Matos (1983, p. 201) comenta este sentimento, introduzindo a importância da relação com os pais nesta construção:

O interesse pelo corpo, mais rigorosamente o investimento da sua imagem, é fenómeno saliente na adolescente. A adolescente vê-se e revê-se ao espelho, aprecia-se, avalia-se, aquilata da sua qualidade estética, do valor da sua forma, dimensões e volume, como estímulo da atracção sexual e amorosa do outro sexo – e acha-se bem ou mal, consoante a moda ou o padrão cultural em voga, os modelos de identificação que teve e escolheu, o ideal que forjou, e conforme foi investido e idealizado pelos objectos anteriores, designadamente os pais, sobretudo o pai heterossexual.

O desejo de agradar, tratando-se de um mecanismo poderoso de aprendizagem na relação com uma figura de referência, torna-se, no caso feminino, extremamente reforçado

93

pela diferença de estatuto de género face ao progenitor do sexo oposto. No caso de um filho rapaz, esta relação hierárquica inverte-se, podendo isto traduzir-se numa desvalorização desta necessidade.

Um dos aspectos que mais se destaca nos estudos comparados é a diferença transversal sobre o controlo social do corpo e da sexualidade: mais acentuado e universal do corpo feminino. Na sociedade ocidental essa preocupação, por exemplo pela parte dos pais, reflectindo entre outras coisas o receio da gravidez das filhas após a puberdade, continua a verificar-se. Por outro lado, a importância da aparência física torna-se uma determinação social muito mais severa para as raparigas do que para os rapazes. Na adolescência, se os rapazes “trabalham” a relação com o corpo, as raparigas podem sentir que a sua vida depende disso (Serrato, 2000).

Também Singly (1987a) o indica com a sua investigação sobre os capitais de género, demonstrando, à data dos seus estudos, como a beleza permanece como um capital feminino e a posição social um capital masculino.

Questiona-se, neste ponto, a relação entre a coerência destas aquisições na adolescência, nomeadamente a identidade sexual, a identidade de género e a adesão a papéis sociais de género, e o desenvolvimento de patologias na transição para a idade adulta, como a toxicodependência a e anorexia nervosa.