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Sentidos da idade: o desenvolvimento à luz da psicologia cultural

III. Sentidos e vivências da idade: tornar-se adulto na época da adolescência

1. Sentidos da idade: o desenvolvimento à luz da psicologia cultural

A idade constitui o esqueleto do grande edifício da psicologia do desenvolvimento, sobre o qual se organizam os dados e teorias acerca das mudanças que ocorrem nos indivíduos ao longo da vida. Com grande destaque para a infância e a adolescência, a gradação das idades na identificação de fases distintas da aquisição das competências humanas e da progressiva diferenciação de padrões de relação com o mundo ocuparam os clássicos Freud, Piaget, Wallon, Erickson, Gesell ou Kolberg, entre muitos outros. Barbara Rogoff, uma referência da Psicologia cultural, observa criticamente que esse corpo teórico assenta em estudos com crianças e jovens de classe média da Europa e América do Norte31,

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Entre estes autores há que destacar a excepção de Erik Erickson: além de assumir como aspecto essencial da sua teoria das “oito idades do homem” o carácter psicossocial do desenvolvimento, realizou estudos em crianças Sioux e Yurok, divulgados na obra Childhood and Society ( Erickson, 1950).

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generalizando os dados encontrados em conclusões do tipo “as crianças de certa idade têm determinado desempenho”, em vez de limitarem as suas descrições a “estas crianças” (Rogoff, 2003, p. 4).

A autora refere-se ao grande investimento conceptual da psicologia sobre as competências esperadas das crianças e jovens com certas idades – estádios de desenvolvimento - como algo que precisa de ser revisto enquanto culturalmente relativo.

Constatando que a expectativa da comunidade sobre a idade em que as crianças e jovens podem ser capazes de certos desempenhos varia amplamente, a hipótese de fundo desta abordagem é a de que os estádios de desenvolvimento são em grande parte determinados por essas expectativas e acções sociais consonantes. Rogoff (2003) exemplifica com a “responsabilidade” para tomar conta de bebés, que nas nossas sociedades poder-se-á atribuir apenas a um adolescente32 médio de 16 anos, e se constitui noutras comunidades bastante mais cedo: por exemplo, numa criança de 6 anos entre os Maias guatemaltecos. No entanto surgem algumas invariâncias etárias, transversais a diversas culturas, na mudança de ciclo ou de etapa de vida, ou de categoria social, quando é o caso, correspondentes aos períodos críticos do desenvolvimento, mesmo quando a interpretação de cada sociedade sobre a possível aplicação de novas competências é muito variada – a idade de 6-7 anos é um desses pontos de viragem (Rogoff, 2003).

Se por um lado alguns invariantes encontrados permitem identificar nas interacções indivíduos-cultura alguns limites das estruturas biopsicológicas, na senda desta perspectiva têm sido desafiadas, através de contraexemplos, assunções básicas de teorias assumidas como universais, como o complexo de Édipo de Freud e o estádio das “operações formais” de Piaget - dois casos amplamente debatidos (ibidem, Dasen & Heron, 1981). Saltando a eterna e inconclusiva discussão acerca da existência do complexo de Édipo, cuja universalidade já em 1927 era questionada por Malinowski, debruçamo-nos brevemente sobre o polémico desenvolvimento do pensamento abstracto, não só porque ilustra um debate actual que se insere na linha deste trabalho, como, tratando-se de uma competência que se adquire na adolescência que conhecemos, segundo Piaget (1967) por volta dos 15 anos33, transforma naturalmente todas as vivências a partir daí.

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Por ex. no Reino Unido é crime deixar uma criança menor de 14 anos sem supervisão (Rogoff, 2003) 33

A disciplina de Filosofia, bem como certos níveis da matemática, que apenas surgem no 10º ano de escolaridade, são exemplos de adaptações do sistema de ensino que contemplam a condição necessária à sua compreensão o raciocínio formal, que inclui as operações hipotético-dedutivas.

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A evidência encontrada para o facto de em certos contextos culturais os adolescentes não atingirem o estádio das “operações formais” levou Piaget a rever o seu pressuposto de que todos os jovens humanos nesta fase seriam capazes de testar hipóteses sistematicamente (Dasen & Heron, 1981), podendo intelectualmente distanciar-se do “mundo do real” para (se) projectar (n)o “mundo do possível”. Mas se este último estádio de diferenciação da inteligência – que nos traz a reflexividade - não se encontra em certas comunidades humanas, isto não significa necessariamente, no nosso entender, nem que a teoria de Piaget esteja errada – dada a confirmação do aspecto invariante de toda a sequência dos processos do desenvolvimento da inteligência e períodos críticos (ibidem) até esse patamar -, nem que esses seres humanos sejam qualitativamente diferentes dos outros, do ponto de vista da sua natureza. O núcleo da questão pode colocar-se na interacção entre um potencial genético e a cultura enquanto condição necessária para que se produzam certos padrões de funcionamento psicológico, diferentes ordens de auto- organização que podemos ver como padrões circunstancialmente adaptativos.

Se a constatação do carácter não universal desta competência cognitiva não invalida a epistemologia genética, por outro lado reforça o peso da sua componente social, por via da determinação cultural. A hipótese construcionista que se coloca, no prisma de Rogoff (2003), é, pois, a da natureza cultural destes processos de desenvolvimento intelectual, cuja maturidade e diferenciação se tornam, assim, dependentes das circunstâncias sociais. Se a teoria piagetiana se baseava numa interactividade com o social centrada no indivíduo, esta abordagem reduz a maturação individual a uma condição necessária34 mas não suficiente. As explicações sobre o não desenvolvimento do raciocínio formal numa comunidade terão de se centrar, então, em processos sociais: por exemplo, numa perspectiva funcional, a hipótese da ausência da sua necessidade naquela forma de vida em sociedade; numa perspectiva sociopolítica, a ausência deliberada de estímulo, limitando o poder individual pela restrição da reflexividade, mantendo a consciência ao nível do “real” vivido e não questionado; numa perspectiva sistémica, a impossibilidade lógica desse tipo de pensamento num sistema homeostático fechado ao exterior, eventualmente pela percepção de um risco de mudança35.

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O inverso também se verifica, a condição necessária mas não suficiente da determinação cultural, uma vez que uma criança com uma debilidade mental também não atinge esta etapa, mesmo sendo socialmente muito estimulada

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Desconhecendo estudos que apliquem estas provas a populações iletradas do interior de Portugal, poderíamos colocar a hipótese de que se encontrariam sujeitos adultos que não demonstrariam aptidões de raciocínio formal, como o hipotético-dedutivo, que tendencialmente todos os adolescentes escolarizados nos meios urbanos atingem.

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Assumindo o poder dos sistemas sociais sobre o desenvolvimento individual, a necessidade de ordenação cultural dos sujeitos capazes de questionar as suas normas – a partir da adolescência – associa-se à ideia de que o poder individual do pensamento e capacidade criativa pode ser visto como ameaçador, ou, ao contrário, como promessa de uma mudança que se deseja, levando à sua inibição ou estimulação através de mecanismos sociais. As ciências sociais, e também a psicologia social, produziram algumas propostas de compreensão destes processos, que adiante analisamos. Deixamos a nota do valor da juventude, da mudança, e do indivíduo, como impregnando discursos que caracterizam a época sobre a qual nos debruçamos, exercendo expectativas sociais sobre as capacidades que devem ter os indivíduos que estão em idade de se tornarem adultos. E retemos, por ora, que os diferentes níveis de inteligir o mundo, que incluem sentidos culturais, correspondem decerto a diferentes vivências na idade da adolescência.