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ETNICIDADE, EXCLUSÃO E RACISMO

Entende-se por grupo étnico, um conjunto de indivíduos que se identificam uns com os outros e que, eventualmente, partilham um conjunto de características culturais (Fernandes, 1995). As especificidades culturais que unem os indivíduos de um determinado grupo e os identificam uns com os outros são, com frequência, utilizados para delinear as fronteiras entre aqueles que pertencem ao grupo étnico e aqueles que não lhe pertencem. A diferenciação étnica constitui “uma seleção social de traços culturais considerados significantes que, em determinados contextos, são manipulados pelos indivíduos (…) para marcar a diferença entre os que pertencem ao grupo e os que lhe são exteriores” (Marques, 2001, p. 118). Contudo, sabe-se hoje que os grupos étnicos existem para além da cultura partilhada e que a cultura partilhada por uma determinada categoria de indivíduos não é suficiente para que estes constituam um grupo étnico e para que se fale em “etnicidade” (idem, p. 117).

A etnicidade, ou a identificação e a mobilização social e política em torno da ideia de pertença a um grupo étnico, é um processo contínuo que emerge das interações sociais e é atravessado pelas dinâmicas de poder e dominação que existem entre os diferentes grupos em presença numa mesma sociedade política. A etnicidade designa então a “relevância que a pertença a determinados grupos étnicos pode adquirir no plano das desigualdades sociais, das identidades culturais e das formas de ação coletiva” (Almeida, 1994, p. 159). Em Portugal, contudo, ao contrário do que tem acontecido em vários outros países da Europa, as desigualdades sociais e as diferenças culturais entre os grupos étnicos presentes na sociedade ainda não têm significado suficiente para desenvolver processos de politização da etnicidade. Estes processos de politização da etnicidade parecem ainda não ter sido suficientemente desencadeados devido à fraca mobilização associativa das minorias étnicas (Machado, 1993).

Apesar das diversas tentativas de assimilação cultural de que têm sido objeto, os ciganos portugueses têm conseguido manter as suas fronteiras étnicas bem definidas relativamente à restante população (Marques, 2007b, 2013). As características comuns à maioria dos ciganos portugueses são, genericamente, a capacidade de resolução de conflitos com recurso a um conjunto de normas intra-étnicas (a comummente designada “Lei Cigana”), a extrema valorização da endogamia, a definição estrita dos papéis de género, a forte coesão familiar e de grupo, a intensidade na vivência do luto, bem como, a importância que é dada à socialização no seio da família (Moreno, 2004; Mendes, 2005; Bastos, 2007; Marques, 2007b; Casa-Nova, 2002, 2009).

Na base da identidade cigana está, portanto, uma organização social, centrada na forte coesão familiar, que contrasta, por exemplo, com a restante população portuguesa que tende a construir a identidade através do estatuto alcançado através da profissão ou do rendimento. Por isso mesmo, a insistência no casamento endogâmico a que se associam as marcadas desigualdades de género e o forte controlo social relativamente ao comportamento das mulheres e raparigas,

Investigação em Educação Social – prática e reflexão

desempenham um papel preponderante na manutenção da identidade deste grupo. O estudo realizado por Bastos (2007) sobre os ciganos de Sintra refere precisamente que a etnicidade cigana é preservada através do controlo masculino das relações interétnicas que envolvem as mulheres ciganas, na escola, na venda ou, mais raramente, em qualquer forma de trabalho ou de convívio. O objetivo claro tem a ver com a manutenção da endogamia e, associada a esta, está em causa a honra do grupo como um todo, a honra de cada família e a honra masculina de cada pai, marido ou irmão, em particular (p. 162).

Contudo, é necessário que se afirme que os ciganos portugueses, embora partilhem uma forte identidade étnica, constituem uma categoria culturalmente significativamente heterogénea, não se podendo, em regra, generalizar relativamente aos traços de cultura partilhada por todos os indivíduos, pois as realidades sociais e territoriais nas quais se situam são muito diversas entre si.

Não há atualmente em Portugal estudos que indiquem, com rigor, o número de pessoas que se autoidentificam como ciganos, nem em que condições vivem ou quais as suas ocupações, onde se localizam, entre outros aspetos. Alguns estudos permitem todavia estimar que se situa por volta de 40.500 o número de ciganos portugueses (Castro, 2012, p. 56), sendo que a maioria “está confrontada com uma situação difícil em muitos aspetos, situação que conduz a uma marginalização e mesmo a uma exclusão social das comunidades ciganas em Portugal” (Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância, [CERI] 2007, p. 29). A questão da integração social dos ciganos tem vindo, por isso, nos últimos anos a constituir-se como um verdadeiro imperativo na sociedade portuguesa.

Apesar dos seus modos de vida terem recentemente sofrido grandes transformações – ao nível dos costumes, do estilo de vida, das formas e tipos de trabalho, das estruturas familiares, entre outros – os ciganos continuam a ser o grupo étnico mais estigmatizado e segregado no país (Magano & Silva, 2002; Bastos, 2007; Marques, 2007a). As profissões a que alguns ciganos tradicionalmente se dedicavam (cesteiros, comerciantes ambulantes de artefactos e de gado, tra- balhadores agrícolas à jorna, entre outros) realizavam-se sobretudo nas regiões rurais, onde estes tinham um modo de vida itinerante e andavam pelas feiras e mercados. A modernização da socie- dade portuguesa obrigou-os ao desenvolvimento de novos estilos de vida, como a seden tarização nos meios urbanos ou a mobilidade temporária (Castro, 2012). Atualmente, o comércio ambulante está a sofrer os efeitos do desaparecimento de muitas feiras e mercados, com a concorrência das grandes superfícies e das novas formas de comércio (Bastos, 2007). No entanto, um dos objetivos da estratégia nacional para a integração dos ciganos, até 2020, é proporcionar oportunidades de criação do próprio emprego, por exemplo, através do microcrédito (Comissão Europeia, 2012). Todas estas mudanças levaram mesmo, nalguns casos, a situações de margina lização social, à dependência de trabalhos pontuais e até de atividades ilícitas (CPESC, 2009).

As políticas públicas de integração dos ciganos iniciam-se quase sempre através do desenvolvi- mento de projetos de realojamento em habitação social, nem sempre bem-sucedidos, diga-se. São exemplo disso a instalação, no mesmo espaço geográfico, de grupos diferentes sem levar em conta as suas características culturais, modos de vida e dinâmicas familiares e não contando com a participação dos novos habitantes no processo de inserção (Magano, 2007; CPESC, 2009). O estudo de Magano e Silva realizado sobre a integração e a exclusão de uma comunidade cigana no Porto concluiu que estes dois processos se sucedem como situações ambíguas. Por um lado, exis- te uma manifestação de integração através do sedentarismo (melhores condições de habitação),

119 por outro lado, a comunidade cigana resiste à mudança e à submissão relativamente aos valores da sociedade dominante, ao preservar os seus traços culturais (Magano & Silva, 2000).

Ao viverem os complexos processos de adaptação às dinâmicas da sociedade contemporânea, os ciganos integram-se em vários domínios da vida, ao “nível da habitação, das relações de vizinhança, da escola, das estruturas de saúde, de alguns aspetos culturais” (Magano & Silva, 2000), mas ao mesmo tempo que se inserem em certos domínios, também entram em conflito com a maioria pelo desejo de continuarem a preservar a identidade. Como explica Magano,

Os ciganos têm resistido às propostas de integração, em que entram, por vezes em rota de colisão com os valores dominantes da sociedade em que vivem. A sociedade, no seu processo de construção de normalização, atribui-lhes um papel de “desviantes” e os ciganos produzem ou reforçam os limites destas fronteiras, marcando as suas próprias fronteiras, fixando limites para os membros do grupo em que os não cumpridores das regras serão considerados desviantes perante o próprio grupo (Magano, 2007, p. 7).

A insistência na preservação de certos traços identitários e diferenciadores constitui, como diz Casa-Nova, uma “forma de proteção-defesa-controlo face ao exterior percecionado como ameaçador” (Casa-Nova, 2009, p. 187).Uma certa oposição à aculturação nos valores da maioria, em conjugação com o desenvolvimento de estratégias de adaptação à modernidade, coloca-os atualmente em situações verdadeiramente dilemáticas. Por exemplo: o benefício do Rendimento Social de Inserção que obriga todas as crianças a frequentar a escola, inclusive as raparigas, constitui frequentemente um dilema entre a sobrevivência material e a preservação cultural.

O Relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (2007) relata situações de discriminação contra os ciganos no acesso à habitação, aos serviços e bens e na procura de emprego. Um estudo da Segurança Social, por sua vez, afirma que a discriminação dos ciganos dificulta o seu acesso ao mercado de trabalho e influencia a sua posição socioeconómica na sociedade o que, consequentemente, os leva a requererem os apoios sociais (MSST, 2002). Atualmente, o termo ciganofobia ou romafobia, está presente em muitos discursos de ativistas para os direitos humanos que tentam denunciar as inúmeras situações racistas e discriminatórias contra os ciganos em vários países. Segundo Gómez (2011),

La romafobia, ignorada y con fuerte arraigo histórico en la cultura popular en forma de estereotipos, frases hechas, bromas, actitudes despectivas y denigrantes continuas, tan comunes y extendidas entre la población que escapan al filtro, convirtiéndose en indetectables incluso para aquellos sectores más comprometidos (p. 55).

Nas últimas décadas, temos assistido a uma nova forma de preconceito que tem vindo a gerar alguma controvérsia política e mediática relativamente aos ciganos: a acusação de dependência relativamente às medidas de política social. O estudo efetuado pela ERRC/Númena (2007) indicou que existe “uma discriminação institucional e uma desconfiança geral em relação aos beneficiários ciganos da parte dos trabalhadores dos serviços sociais” ao serem preconceituosos e ao adotarem uma posição de controlo excessivo à fraude (p. 54). Na perspetiva defendida por este estudo, o argumento “de que os ciganos exploram os benefícios sociais sem terem verdadeiramente necessidade deles” resulta antes de uma insatisfatória aplicação das políticas sociais do país (ERRC/Númena, 2007, p. 54).

Investigação em Educação Social – prática e reflexão

Desta forma, os principais problemas que afetam os ciganos na sociedade portuguesa con- temporânea são a pobreza, o insucesso e o abandono escolar, as carências ao nível habitacional, a deficiente inserção no mercado de trabalho, aliados às situações de racismo e discriminação que alimentam e amplificam os círculos viciosos da exclusão. Os principais obstáculos à inserção social deste grupo étnico devem-se precisamente aos seus baixos níveis de escolaridade, ao desemprego e aos estigmas criados e reproduzidos à sua volta.