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4 MULHERES – PECADO E SALVAÇÃO

4.1 Eva O pecado

Eva é um nome citado em apenas três livros bíblicos, Gênesis, Tobias e Timóteo, no entanto, ela é a responsável por inúmeras condenações sofridas pelas mulheres ainda hoje. Em Gênesis o mito de Eva começa a ser desenhado, fruto da costela de Adão, é a maior pecadora, a que não se submeteu às ordens divinas e sucumbiu às tentações satânicas. Por essa história, a Igreja e a Bíblia se apoderaram desse mito como um meio de submeter a mulher. Essa condenação está expressa na epístola de São Paulo aos Coríntios ‘Porque o homem não foi feito da mulher; e, sim, a mulher do homem. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher; e, sim, a mulher por causa do homem’(Cor 11:3-16). Por essa citação, a submissão feminina é legitimada, ‘na Igreja, nós, mulheres, continuamos sendo costela; uma costela que serve para negar nossa capacidade vital originária, manter o medo que têm de nós e o medo que nos fazem, ameaçando-nos com punições e humilhações’ (GEBARA, 2006, p.143).

No livro de Timóteo, é relembrada a origem pecaminosa de Eva, como se isso justificasse e desse a redenção a Adão, já que foi a mulher que o enganou, e tornou-se culpada de sua transgressão. Eva, dentro do imaginário religioso, é o símbolo do que uma mulher não pode ser e fazer. Porém, um traço foi esquecido dela, o da mulher que busca a inteligência, o conhecimento, como é citado na Bíblia: ‘A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente’ (Gn 3, 6, sublinhado nosso).

E dentro dessa história do perfil de mulher transgressora, a Igreja Católica orienta que as mulheres devem se manter caladas e submissas à família, pois pela escritura bíblica, foram condenadas ao silêncio, como São Paulo se pronuncia, em sua carta aos Coríntíos ‘Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres estejam caladas nas assembléias: não lhes é permitido falar, mas devem estar submissas, como também ordena a lei’ (I Cor, 14-34). ‘O cristianismo as admite na fé e na prece, mas no silêncio do arrependimento’ (PERROT, 2005, p.318).

Eles [os cristãos] usaram a história de Adão e Eva para apoiar o casamento tradicional e provar que as mulheres, sendo por natureza facilmente enganadas, não se prestam a qualquer outro papel a não ser o de criar filhos e cuidar da casa (ver, por exemplo, I Timóteo 2:11-15); assim, a história do Éden serviu para reforçar a estrutura patriarcal da vida comunitária (PAGELS, 1992, p.22).

Segundo Foucault, os conceitos normais são gerados através do que é considerado como anormal. E através desses desvios sociais, também se estabelece a disciplina a ser seguida. Portanto, a Igreja ao produzir a figura de uma mulher pecadora, que não se submete aos homens, que anseia pela cultura, pela inteligência, determina a elas um destino condenado à vida privada. As mulheres para terem a salvação não podem ser sagazes, ter interesse pelo poder e/ou pelo conhecimento proporcionado pela inteligência, não podem desbravar o mundo, devem seguir o conceito imposto a elas pelo clero, serem submissas, restringirem-se à vida privada, serem mães, donas-de-casa, tornarem-se pessoas com esta identidade feminina demarcada pela sociedade. ‘O plano de Deus é reabilitar a dignidade da sexualidade humana: a beleza de ser mãe, conceber, gerar, dar à luz, educar os filhos para este mundo e para Deus!’ (AQUINO 2002, p.25).

4.1.1 Três mitos transgressores

Em A Dominação Masculina, Bourdieu relata uma fabula da tradição Cabila, referida por Yacine-Titouh, no seu livro,

Foi na fonte (tula) que o primeiro homem encontrou a primeira mulher. Ela estava apanhando água quando o homem, arrogante, aproximou-se dela e pediu de beber. Mas ela havia chegado primeiro e ela também estava com sede. Descontente, o homem a empurrou. Ela deu um passo em falso e caiu por terra. Então o homem viu as coxas da mulher, que eram diferentes das suas. E ficou paralisado de espanto. A mulher, mais astuciosa, ensinou-lhe muitas coisas: ‘Deita-te, disse ela, e eu te direi para que servem teus órgãos’. Ele se estendeu por terra. Ela acariciou seu pênis, que se tornou duas vezes maior, e deitou-se sobre ele. O homem experimentou um prazer enorme. Ele passou a seguir a mulher por toda a parte, para voltar a fazer o mesmo, pois ela sabia fazer mais coisas que ele, como acender o fogo, etc. Um dia, o homem disse à mulher: ‘Eu quero te mostrar que eu também sei fazer coisas. Estende-te, e eu me deitarei sobre ti’. A mulher se deitou por terra, e o homem se pôs sobre ela. E sentiu o mesmo prazer. E disse então à mulher: ‘Na fonte, és tu (quem dominas); na casa, sou eu’. No espírito do homem são sempre estes últimos propósitos que contam, e desde então os homens gostam sempre de montar sobre as mulheres. Foi assim que eles se tornaram os primeiro e são eles que devem governar (BOURDIEU, 2002, p.28).

Ainda podemos nos atentar à tradição judaica, que conta que a primeira mulher de Adão não foi Eva, mas Lilith, a que não se submete à dominação masculina. Ela iniciou a igualdade com a recusa da forma sexual com o homem por cima.

Segundo uma velha tradição, Lilith seria uma figura sedutora, de longos cabelos, que voa à noite, como uma coruja, para atacar os homens que dormem sozinhos. As poluções noturnas masculinas podem significar um ato de conúbio com a demônia, capaz de gerar filhos demônios para a mesma. As crianças recém-nascidas são as suas principais vítimas. A crença em Lilith, durante muito tempo, serviu para justificar as mortes inexplicáveis dos recém-nascidos. Uma forma de proteger as crianças contra a fúria da bela demônia é escrever na porta do quarto os nomes dos três anjos enviados pelo Senhor. Outra maneira é a de afixar no berço do recém-nascido, três fitas, cada uma delas com um nome dos três anjos. (LARAIA, 1997, p.152).

Após a expulsão de Lilith, Eva faz a mesma rebelião que sua antecessora. E dentre as várias interpretações desse mito, uma delas é que na urgência de se vingar de Adão, a demônia se transforma em serpente.

Em um artigo de um livro da canção Nova, escrito por Dunga, que também é cantor, ele explica que pede aos músicos de sua banda para rezarem todas as noites pedindo que a polução noturna seja apenas um meio natural de escoamento do esperma, não como uma forma de ejaculação por sonhos eróticos.

[...]por causa das revistas e filmes pornográficos, a polução noturna desse rapaz provavelmente será acompanhada de sonhos ‘pornográficos’.

[...]

Tenho colegas e amigos que estão buscando equilíbrio na sua sexualidade, que antes de dormir clamam ao Senhor: ‘Senhor, estou

há anos sem ter uma relação sexual, sinto que meu corpo já fabricou muitos espermas. Concede-me, durante esta noite, a polução noturna. Não permita, Senhor, que seja acompanhada de sonhos eróticos. Nem dormindo desejo pecar contra minha castidade’ (DUNGA, 2003,

p.56-7, itálico do texto, e negrito nosso).

Dessa forma, a Comunidade cuida, de forma indireta, para que Lilith não ataque seus homens, e busca controlar os pensamento e sonhos deles.

Nas três versões femininas, na tradição Cabila, na judaica e na cristã, é possível se estabelecer um paralelo. Todas as expressões femininas são personagens inicialmente fortes, desbravadoras, que não aceitam condições subjugadas; no entanto, apenas Lilith permaneceu sem freios, ainda com a capacidade de despertar a sexualidade nos homens. A mulher da lenda Cabila, perde suas forças quando está longe de seu território. Eva desafiou a Deus, e pela transgressão foi a responsável pela mácula do pecado original à humanidade, e também ao ser expulsa do Jardim do Éden, condenou as mulheres a sofrerem as maldições divinas por culpa de sua subversão: ‘Disse [Deus] também à mulher: Multiplicarei os sofrimentos de teu

parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio’ (Gen 3,16).