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Evangelização dos índios e sua administração

2. Missionário: evangelização dos índios e assistência espiritual dos colonos

2.1. Evangelização dos índios e sua administração

Perante o insucesso do sistema de capitanias hereditárias na administração das terras de Vera Cruz, D. João III implementou em 1548 um Governo-Geral que se sobrepunha às capitanias com o fim de assegurar a unificação territorial, concedendo ao Governador os poderes militares e administrativos de todo o território e a direção do projeto de colonização, baseado no desenvolvimento da economia açucareira, na exploração do tráfico de escravos e no povoamento e defesa das terras do pau-brasil. No contexto da reorientação da política administrativa voltada para os interesses mercantis da coroa e a crescente procura dos europeus pela exploração da cana-de-açúcar, os religiosos tiveram um papel essencial na legitimação da posse dos territórios ocupados pelos portugueses. Ainda que não fossem os primeiros a experimentar a missionação cristã no Brasil – sabendo-se que os franciscanos haviam acompanhado as caravelas lusas que aportaram em terras da América e iniciado por então os primeiros ensaios de evangelização dos gentios –, desde que chegaram à Baía, acompanhando o primeiro Governador-Geral, Tomé de Sousa, em março de 1549, os jesuítas, como outras ordens

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religiosas57 empenhadas na empresa espiritual, obtiveram da coroa amplos benefícios e privilégios económicos58 para defender e aumentar a fé católica, assim se legitimando o processo de colonização configurado no «Regimento» entregue a Tomé de Sousa em 1548, declarando o monarca que a razão principal para o «povoamento do Brasil foi sempre a conversão dos seus habitantes à nossa fé católica»59.

Estabeleceu-se assim uma sólida aliança entre o poder colonizador e a ação missionária dos seguidores de Santo Inácio, na medida em que, através da redução dos gentios pela catequese e a instrução elementar, colocaram-se os primeiros inacianos ao serviço dos interesses do rei na conquista e ocupação de terras e na exploração da mão de obra autóctone para cultivo da cana-de-açúcar. Ao mesmo tempo, legitimavam os inacianos a sua ação missionária e civilizadora com a amoralidade, inumanidade e ignorância da verdade divina entre os indígenas, integrando-se os numerosos relatos de práticas de canibalismo, a denúncia dos escandalosos comportamentos sexuais e o combate aos rituais supersticiosos tanto numa justificação da doutrinação e aculturação dos nativos, como numa estratégia destinada a exaltar os resultados da missionação desenvolvida pelos jesuítas em terra tão estéril e inóspita, fazendo uso de detalhadas cartas e relações para informar os irmãos religiosos de outras províncias e em simultâneo atear novas vocações para as missões na América. Num segundo momento, os jesuítas contribuíram para o fortalecimento do poder colonizador através da criação de aldeamentos que, tendo por objetivo principal a educação cristã e a integração dos

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Cf. Paulo de ASSUNCÃO, «“O acrescentamento de nossa Santa Fé”: As ordens religiosas no Brasil Colonial», in Brotéria, 162, 2006, pp. 109-129. Ver também José Adriano de Freitas CARVALHO, «La prima evangelizzazione del Brasile (1500-1550). Gli anni del silenzio», in Atti de l’Europa e l’evangelizzazione del Nuovo Mondo, Fondazione Ambrosiana Paolo VI, Villa Cagnola, Gazzada (Varese), Italia, 3-10 settembre, 1992, pp. 213-232.

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Em recompensa pelos serviços prestados na execução do projeto catequético de conversão, dentro do processo de colonização, as ordens religiosas, e em particular os jesuítas, foram agraciados com dotações reais e a cobrança de dízimos. De acordo com Paulo de ASSUNÇÃO, «Ao realizar a conversão espiritual, os jesuítas ordenavam o espírito indígena e a sociedade colonial. Cabia ao rei favorecê-los para que pudessem pôr em execução o projecto catequético de conversão, controlando e evitando desvios» («“O acrescentamento de nossa Santa Fé”: As ordens religiosas no Brasil Colonial», p. 115). Para compreender o envolvimento dos jesuítas – sempre ad maiorem Dei gloriam – em atividades comerciais e na posse e exploração de propriedades, práticas a que se entregaram também no Brasil para assegurar o funcionamento e a subsistência das suas missões, leia-se ainda de Paulo de ASSUNÇÃO, Negócios Jesuíticos: O Cotidiano da Administração dos Bens Divinos, São Paulo, EDUSP, 2004. A reputação dos inacianos como «Comerciantes habilidosos» e «Proprietários obstinados» acabou por constituir um dos antecedentes na formação do mito que esteve na origem das perseguições pombalinas à Ordem de Loyola, como demonstra José Eduardo FRANCO em O Mito dos Jesuítas I: Em Portugal, no Brasil e no Oriente, Lisboa, Gradiva Publicações, 2006, pp. 145-152.

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Citado por Aécio FEITOSA, «De Portugal ao Brasil: algumas considerações em torno dos motivos da instalação da Companhia de Jesus no Brasil», Revista Portuguesa de Pedagogia (2ª Série, Ano XVIII), vol. 18, 1984, p. 167.

índios na sociedade colonial, visando a salvação das suas almas, na prática acabaram por funcionar como instrumento de dominação, por entregarem os indígenas convertidos à fé de Cristo para o serviço dos senhores60, e instrumento de conquista e expansão territorial, promovendo o «descimento» dos índios para aldeias fundadas junto das povoações de colonos e penetrando nos sertões e florestas que permaneciam inexplorados61. Deste modo, no âmbito da instituição do Padroado Régio, e de numa evidente conjugação de interesses, económicos para a Coroa e espirituais para os religiosos62, a propensão missionária dos jesuítas constituiu um elemento fundamental na consecução do projeto colonial, fortemente estribado num modelo económico escravocrata, origem de uma acentuada clivagem social entre o português (o branco, o colonizador, o alto clero) e o escravo (o índio e o negro).

A obra escrita e a atuação governativa do P.e Alexandre de Gusmão, até pelos múltiplos cargos que assumiu na Companhia, devem ser contextualizadas neste movimento de interpenetração entre a Religião e a Coroa, entre o projeto evangelizador e o projeto colonizador, constituindo a educação e a doutrinação um meio implícito de submissão dos colonos e dos indígenas ao poder régio: «la Corona reconocía la influencia de la religión como mecanismo de dominación y subordinación de los indivíduos. En el fondo, tal vez sin este grado de formalización, en el centro político se entendia que a partir de un sistema central de creencias, creado y reproducido por una institución dominante — en este caso la Iglesia — seria más fácil imponer su autoridad y ejercer el mando». De resto, e de forma muito adequada aos princípios fundadores do instituto inaciano, podemos transpor as considerações de José Pedro Paiva para o contexto do Brasil, ao observar que «la Iglesia promovía un sistema cultural y religioso en el cual, tanto en el plano doctrinal como en las prácticas rituales y de comunicación,

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Eduardo HOORNAERT, et al., História da igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo, II, 4.ª ed., Petrópolis, Vozes, 1992, pp. 43-77.

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Cf. Beatriz Vasconcelos FRANZEN, «Os colégios jesuíticos no Brasil: educação e civilização na colónia (1549-1759)», Brotéria, Lisboa, 2002, v. 155, n.º1, pp. 88-89. Também Pedro Ignácio SCHMITZ procura demonstrar de que modo as missões contribuíram para apaziguar, organizar e incorporar os indígenas nos quadros da colónia, em «Índios missionados pelos jesuítas nos séculos XVI a XVIII na colónia do Brasil», Revista Portuguesa de Humanidades, Universidade Católica – Faculdade de Filosofia de Braga, III, 1999, pp. 401-419.

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Paulo de ASSUNCÃO, «O acrescentamento de nossa Santa Fé», p. 116: «A prática missionária aproximava-se dos interesses da colonização e tinha objectivo particular: a conversão das almas, o ensino e o controle da fé, elementos fundamentais para a consolidação do poder monárquico e da expansão do catolicismo». Para compreender o papel da Igreja na dinâmica do projeto colonial, leia-se de Charles BOXER, A Igreja e a expansão ibérica: 1440-1770, trad. Maria de Lucena Barros e Sá Contreiras, Lisboa, Edições 70, 1990.

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se introducían y difundían nociones muy evidentes de jerarquia, orden y obediencia»63. Ao desígnio da Igreja de «dilatar a Fé», assumido também como dever do Rei, acrescia o projeto de «dilatar o Império», igualmente conveniente ao desígnio da hierarquia eclesiástica, uma vez que aumentava o espaço para a difusão da fé católica e proporcionava a oportunidade de libertar um enorme número de gentios das trevas da ignorância. Na busca contínua de um compromisso entre os interesses da Igreja e o poder político, a questão da administração dos índios revelou-se desde o princípio da colonização um assunto complexo, resultando numa oscilação de posições mais favorecedoras ou mais redutoras da liberdade dos indígenas conforme a conjuntura económica e política que se vivia e a teologia moral em vigor64.

Se a Companhia de Jesus se revelou um instrumento decisivo na política colonial de conquista do território e de civilização e cristianização dos gentios da terra brasílica, a sua ação foi igualmente importante na preservação da «unidade cultural» ameaçada pelos conflitos resultantes de um encontro de diferentes raças e culturas. Desde que os colonos chegaram a terras de Vera Cruz movidos pela ambição de riquezas provenientes da exploração açucareira, dos labores agrícolas, da criação de gado ou de outras fontes de lucro, foram constantes as tensões entre os brancos colonizadores, os indígenas e os negros, naturalmente orientados por um quadro de valores, costumes, crenças, línguas e sentimentos religiosos distintos ou mesmo inconciliáveis. Nesta conjuntura, atuando os jesuítas como elemento de conciliação e pacificação, servindo na maior parte das vezes de defensores dos interesses dos nativos, foram recorrentes as situações em que os colonos portugueses e os padres inacianos se incompatibilizaram, resolvendo-se a pendência através da autoridade do Governador-Geral ou do próprio Rei.

Sem termos necessidade de evocar todas as disputas entre os colonizadores e os religiosos de Santo Inácio, ou recordar todas as controvérsias que desde o século XVI se desenvolveram em torno da escravização dos indígenas – desde a questão da escravidão voluntária, que opôs o P.e Manuel da Nóbrega ao jesuíta espanhol Quirício Caxa, ao

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José Pedro PAIVA, «El estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado», Manuscrits, 25, 2007, p. 52.

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Cf. S. LEITE, «As raças do Brasil perante a ordem teológica, moral e jurídica portuguesa nos séculos XVI a XVIII», in Brotéria, 75, 1962, p. 26: «Perante a ordem jurídica portuguesa, colocaram-se as raças do Brasil numa balança com o fiel em Lisboa, em cujos pratos, ora preponderava o sentido patriarcal da justiça, representado pelo elemento religioso dos missionários, ora a pressão económica dos moradores». Acerca das numerosas tensões entre os colonos e os jesuítas na questão do governo dos índios, a bibliografia é ampla. Referimos apenas, pelo contexto em que a questão é analisada, José Eduardo FRANCO, O Mito dos Jesuítas. I: Em Portugal, no Brasil e no Oriente, Lisboa, Gradiva, 2006.

apresamento dos gentios nas chamadas guerras justas65 –, cingimo-nos ao momento histórico em que decorreu a intervenção de Alexandre de Gusmão no governo da Província brasileira da Companhia de Jesus. Na verdade, se desde cedo Gusmão, em resultado dos cargos desempenhados em diversos colégios, contactou com as missões e os seus agentes e teve conhecimento do difícil relacionamento dos jesuítas com os senhores das terras contíguas aos aldeamentos, assim que assumiu pela primeira vez a direção da Companhia de Jesus teve a responsabilidade de procurar uma solução que aquietasse as manifestações de desagrado dos moradores de S. Paulo para com os inacianos, na sequência da promulgação da Lei da Liberdade dos Índios de 1 de abril e da Carta Régia de 26 de agosto de 1680, ambas respondendo à vontade do P.e António Vieira66, então visitador da província, de entregar a administração espiritual e temporal dos índios aos padres da Companhia e ordenar a formação de aldeias e missões no sertão67. Numa sociedade organizada com base em atividades escravocratas, com estrutural dependência da força de trabalho servil na exploração dos engenhos de açúcar e na criação de gado, agravaram-se os tumultos originados pelos paulistas, incomodados pela resolução dos religiosos em não absolver em confissão os proprietários de índios aprisionados de forma injusta ou retirados com violência dos aldeamentos em que viviam de acordo com a fé cristã, assim se impedindo uma grande parte dos colonos de beneficiar do sagrado Sacramento do Altar. Perante as manifestações de desagrado de muitos populares que no dia 28 de março de 1682 invadiram a Câmara reivindicando a desobediência da lei publicada, temeram os padres do Colégio a repetição dos motins que em 1640 conduziram ao desterro dos inacianos da vila, na sequência da divulgação do breve de Urbano VIII contra o cativeiro dos índios68. Informado do sucedido, o

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Sobre as políticas de povoamento e administração colonial e a intervenção dos missionários jesuítas nas relações entre os colonos e os indígenas, tratando das questões da liberdade dos índios, veja-se de Maria Beatriz Nizza da SILVA, História da colonização portuguesa no Brasil, Lisboa, Colibri, 1999; José EISENBERG, «A escravidão voluntária dos índios do Brasil e o pensamento político moderno», Análise Social, Lisboa, 170, 2004, v. 39, pp. 7-35; e Zulmira C. SANTOS, «Em busca do paraíso perdido: a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil de Simão de Vasconcellos, SJ», in José Adriano de Freitas Carvalho, dir., Quando os Frades Faziam História. De Marcos de Lisboa a Simão de Vasconcellos. Porto, CIUHE, 2001, pp. 145-178.

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S. LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, IV, p. 63.

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S. LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, VI, pp. 310-312.

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Perante o cativeiro dos índios que tinham a seu cargo tanto na qualidade de administradores civis como de párocos, recorreram os padres a El-Rei e ao Sumo Pontífice, obtendo em resposta o breve pontifício Commissum Nobis, de 22 de abril de 1639, que proibia os cativeiros futuros, e a lei régia de 31 de março de 1640, que ordenava a restituição da liberdade dos índios aprisionados. Publicitado no Brasil em 1640, o breve de Urbano VIII esteve na origem de uma revolta dos moradores da capitania, liderados pelos representantes do partido escravista, desterrando os religiosos da Companhia de Jesus das suas casas e do

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provincial da Companhia, P.e António de Oliveira69, após ouvir um grupo de padres e consultores da Província, decidiu-se pelo encerramento do Colégio de Santo Inácio e a saída dos jesuítas da capitania de S. Vicente, escrevendo ao Geral Charles de Noyelle as Causas para os Nossos largarem e abandonarem o Colégio de Santo Inácio ou Piratininga na Vila de S. Paulo70.

Arrastando-se a situação de indefinição durante o restante período de governo do P.e Oliveira, assim que foi nomeado para a direção da Companhia, em dezembro de 1684, Alexandre de Gusmão, depois de reunir uma nova junta em consulta, impediu o P.e Manuel Correia, reitor do Colégio de S. Paulo, de cumprir a decisão anteriormente estabelecida. Em carta enviada do Rio de Janeiro ao Geral Noyelle, com data de 18 de maio de 168571, expôs Gusmão as razões fundamentais para não admitir o encerramento do Colégio de Santo Inácio. Começa por referir que num primeiro momento, descontentes com a decisão do Superior precedente, os paulistas procuraram por todas as formas impedir que se cumprisse a resolução do P.e Oliveira: em edital público, a Câmara proibiu a compra dos bens do Colégio e, através de uma carta datada de 2 de novembro de 1684, subscrita por cinquenta dos homens mais distintos, rogava ao reitor e ao provincial que não abandonassem os moradores e os escravos da vila, tão

Colégio de S. Paulo na tentativa de obter a suspensão da decisão papal. Frustrada a pretensão dos paulistas, somente em 1653, após atribulados processos civis e canónicos, os jesuítas regressaram à vila de S. Paulo e reabriram as portas do Colégio. Cf. S. LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, VI, pp. 245-279 (transcrição do breve acerca da liberdade dos índios da América no tomo VI, pp. 569- 571). Ver também de Beatriz Vasconcelos FRANZEN, Os jesuítas portugueses e espanhóis e sua ação missionária no Sul do Brasil e Paraguai (1580-1640). Um estudo comparativo, São Leopoldo, UNISINOS, 1999.

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Os factos essenciais do provincialato do P.e António de Oliveira (1681-1684) podem ser lidos em S. LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, VII, pp. 65-66. Para avaliar a personalidade de António de Oliveira e de Alexandre de Gusmão, não deixam de ser relevante as informações fornecidas pelo italiano João António Andreoni em Carta ao P. Geral da Companhia, da Baía, 25 de março de 1685: «nel principio di decembre fini il suo governo il P. Antonio di Oliveyra (...) e com giusta ragione non prorogata dal P. Generale per la massima prudentissima di condescendere all’humana miseria di molti, che desiderano veder nuovi governi à suo tempo, e a lungo andare s’infadano, per dirla con frase portoghese, cosi del mele, come dell’aceto. e nel P. Alexandro di Gusmaõ nuovo Provinciale, che proposi à V.a R.a come uno de megliori soggetti della Provincia, si hiva da infadar dal mele, come nel P. Oliveyra sentiveno l’aceto, che veramente era un agrodolce, espiritoso, che per i Portoghesi e megliore; per che tanto che conoscono, che il Superiore è rimesso e che mette la mano sopra la testa, gli pigliano il braccio, e gli perdeno il rispetto: e per l’altra parte se sentono un huomo, che e huomo retto, forte e costante per la disciplina regolare» (Bras. 3-2, f. 192).

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Esta carta, com data de 20 de julho de 1682, respeita a legislação da Companhia de Jesus que determina que nenhum colégio pode ser fundado ou suprimido sem autorização do Superior em Roma. Cf. S. LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, IV, p. 310.

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Cf. As justificações de Gusmão para contrariar a decisão do provincial António de Oliveira aqui resumidas são demoradamente expostas na Carta ao P. Geral C. Noyelle, do Rio de Janeiro, a 18 de maio de 1685 (Bras. 3-2, ff. 204-205).

necessitados do auxílio espiritual dos «verdadeiros imitadores de Cristo» e «verdadeiros apóstolos», sem a presença dos quais «se criarão os meninos pelos desertos, bebendo o leite da ignorância» e não se prosseguirão as «missões, para aproveitamento do gentio»72. Recebendo ainda uma epístola do capitão-mor com o mesmo pedido, decidiu o P.e Gusmão, em companhia do seu secretário João António Andreoni, deslocar-se a S. Paulo, ouvindo do governador local e do bispo do Rio de Janeiro as razões que o convenceram a assegurar a permanência dos filhos de Santo Inácio na vila. Por outro lado, considerava Gusmão que o P.e António de Oliveira agira sem fundamento legal, uma vez que nenhuma determinação régia alterara a legislação acerca da liberdade dos índios e das práticas missionárias73. Por conseguinte, temendo a repercussão dos tumultos dos paulistas, e a consequente ruína dos colégios de S. Paulo e de Santos, decidiu Gusmão manter o Colégio de Piratininga aberto para educação dos jovens, amparo sacramental dos fiéis e evangelização dos gentios74.

Com as discussões em torno da captura e servidão dos índios sempre presentes, muitos padres revelavam escrúpulos75 intransponíveis em confessar os moradores que insistiam em perseguir, acorrentar e escravizar os índios. Perante as vozes críticas de numerosos discípulos de Santo Inácio acerca desta prática de sujeição dos indígenas, não deixou Gusmão de denunciar tanto doutores como mestres – e ainda religiosos da Companhia de Jesus… – que os adquiriam e usavam nas suas propriedades e serviço doméstico, rejeitando que os jesuítas se instituíssem nesta questão como severos juízes somente dos colonos. Além do mais, sendo os caçadores de índios muito numerosos

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Cartas da Câmara de S. Paulo enviadas ao reitor do Colégio da cidade, Manuel Correia, e ao provincial. S. LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, VI, pp. 312-315.

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Cf. «Praeter quamquod absq Regis licentia Indorum, et Missionum zelantissimi nec licet, nec expedit quidquam innovare: qua quidem conditione Consultores Prov.ae non aliter suas sententias praestiterunt; quamquidem Regis licentiam Pater Antonius de Oliveyra (si forsan petiit) non expectavit» (Bras. 3-2, f. 204).

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Em Carta da Câmara aos Padres do Colégio, enumeram os oficiais e os representantes do povo os ministérios praticados pelos jesuítas na vila de S. Paulo, requerendo que os religiosos não abandonassem o colégio, pois tal dificultaria o proveito espiritual das almas dos moradores e gentios: «se perderão as

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