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2. CONSTRUINDO O ARCABOUÇO TEÓRICO

2.1. Letramento

2.1.1. Eventos de letramento

Prática e evento de letramento, na verdade se entrelaçam no processo de letramento e se co-constituem. Segundo Jung (2003, p. 62), os eventos de letramento são a parte concreta observável. Uma mudança espacial e temporal caracteriza, em princípio, uma mudança no evento. Uma mudança de prática é observável nos modos de interagir com a leitura e a escrita, ou seja, a mudança de modos culturais de interagir com o texto escrito caracteriza uma mudança de prática. Ler uma historinha para uma criança é um evento de letramento, a criança ter de ouvir em silêncio ou poder cooperar, bem como o tipo de perguntas feitas durante a leitura pode caracterizar diferentes práticas.

Segundo Barton e Hamilton (2000, apud Marcuschi, 2001 p.37) os eventos são episódios observáveis que emergem de práticas e são por elas moldados. O fato de ser um evento frisa seu caráter de ser situado. Os eventos de letramento são eventos comunicativos mediados por textos escritos, isto é, as pessoas usam a escrita, no seu dia-a-dia com determinados objetivos. Na realidade, trata-se de usos da leitura e da escrita em contextos contínuos, reais, etnograficamente desenvolvidos e não isolados.

O caráter primordial da interação das crianças antes de ingressarem na escola é oral, visual e sensitivo. É corrente e perceptível que o primeiro ano escolar angustia pais, por estarem entregando, por assim dizer, seus filhos para uma outra instituição social, a escola, na qual é privilegiada a escrita.

Da mesma forma, as crianças sentem medo por terem de lidar com um novo contexto social. Mesmo assim, ouve-se sempre que as crianças têm ansiedade em aprender a ler e escrever, e isso é, também, esperado pelos pais. Tal situação foi percebida na primeira reunião da professora do presente trabalho com os pais, em 29 de março de 2005. Ela precisa explicar que o processo é lento e que as crianças vão, primeiramente, aprender a fazer “trabalhinhos” em folhas soltas e só mais tarde farão uso do caderno.

Percebe-se que o que, provavelmente, foi vivido pelos pais, é esperado para seus filhos, e o medo do fracasso escolar é inerente a essa preocupação. É comum, também, ouvir em muitos espaços escolares que os alunos não sabem ler, escrever e nem expressar adequadamente suas idéias.

Nesse contexto é importante uma transição e adequação do evento de letramento familiar para o evento de letramento escolar. Evento, em si, ou evento social é, segundo Garcez e Ostermann (2002, p. 261), definição social da atividade da fala que se desenvolve na situação, dependendo das oportunidades e das restrições à interação proporcionadas pela mudança de participantes e ou objeto da interação. Os eventos se desenvolvem ao redor de um tópico ou no máximo de um âmbito limitado de tópicos e se distinguem por suas estruturas seqüenciais. Eles são marcados por rotinas de abertura e fechamento estereotipadas e, portanto, reconhecíveis.

Os eventos de letramento, segundo Kleiman (2001), são situações em que a escrita constitui parte essencial para fazer sentido da situação, tanto em relação à interação entre participantes como em relação aos processos e estratégias interpretativas. Ela não os restringe à escola, mas dá, também, assim como Heath (2001), o enfoque de que o letramento trazido de casa influencia na construção de significados para os eventos de letramento que são apresentados pela escola.

Bortoni (1994) analisou como a conversa, as práticas de letramento e os processos intelectuais se influenciam mutuamente em sala de aula e quais as implicações dessa influência para a educação. Examinou, prioritariamente, como os padrões de mudança de código na fala dos professores em uma escola bilateral14 estão relacionados a práticas de letramento.

Esta escola é considerada um ambiente bidialetal, porque todas as crianças são falantes de variedade rural do português do Brasil e a linguagem da escola, ao menos em nível pragmático, é a língua padrão, isto é, supõe-se que na escola seja falado o português padrão. No estudo de Bortoni verifica-se, porém, que praticamente só quando há o uso do texto escrito, ocorre o português padrão.

A importância do estudo de Bortoni para a presente pesquisa se deve ao fato de ter sido realizada em um ambiente bidialetal e na identificação e especificação dos eventos de letramentos que encontrou. No seu estudo, ela identificou quatro tipos recorrentes de fala ao longo da aula.

Bortoni (1994, p.84) utilizou a conceituação de evento de acordo com a tradição da Etnografia da Comunicação, isto é, eventos são percebidos como unidades com início, meio e fim. O primeiro tipo de evento, quase sempre curto, é altamente sensível ao contexto e oral. Consiste de respostas, explicações curtas, repreensões, brincadeiras ou observações destinadas a controlar a fala dos alunos e as atividades de sala de aula em geral. O segundo tipo de evento consiste em exposições institucionais mais longas, como a explicação de um problema de aritmética ou comentário de um texto. É de caráter oral com presença do texto escrito em plano secundário.

Já o terceiro caracteriza-se como um evento de oralidade secundária. O falante está lendo um livro, manuscrito ou do quadro negro, ditando ou falando com base em um texto

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escrito ou, então, falando e escrevendo simultaneamente. O quarto tipo de evento segue a estrutura tripartite típica de sala de aula, proposta por Sinclair e Coulthard (1975), e se compõe de um turno de iniciação pelo professor- geralmente uma pergunta- seguido sucessivamente da resposta dos alunos e da avaliação ou correção do professor: iniciação – resposta – avaliação (IRA). Apresenta primordialmente aspectos orais, com suporte de textos escritos.

Tabela 1.Classificação de tipos de eventos a partir de Bortoni (1994) Evento 1 quase sempre curto altamente sensível

ao contexto

somente oral.

Evento 2 exposições institucionais mais longas oral com presença de texto escrito

Evento 3 leitura, ditado, fala e escrita simultâneas evento de oralidade secundária Evento 4 IRA estrutura tripartite típica de sala de

aula

primordialmente aspectos orais, com suporte de textos escritos.

Bortoni (1994, p.92) constata que os padrões de mudança de código e de intervenções dos professores observados estão associados a estratégias intuitivas que estes desenvolveram com base em seu sistema de crenças sobre o letramento. Segundo ela, as estratégias intuitivas usadas pelos professores para lidar com a complexa questão da variação lingüística podem contribuir para a implementação de uma pedagogia culturalmente mais sensível. Ao seu ver, para que isso se torne mais efetivo, recomenda que se lhes proporcione acesso a informações sistemáticas de sociolingüística.

Para fins de análise das cenas de sala de aula neste trabalho e delimitação dessas cenas em eventos, conceituo evento de letramento como um episódio observável, que emerge da prática social (Barton e Hamilton, 2000, apud Marcuschi, 2001, p. 37), em que uma peça escrita ou uma prática que se refere ao conhecimento da escrita e sua interpretação envolvam a interação dos participantes. A mudança de evento de letramento será caracterizada pela troca de tópico, do objeto ou da estrutura social da interação.

O presente trabalho analisa o que acontece em relação ao uso da língua em alguns eventos de letramento presentes na sala de aula e descreve como eles se constituem. Da mesma forma, são tópicos de estudo as diferentes formas de participação e interação que predominam nos eventos e como tal os caracterizam e moldam.