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2. CONSTRUINDO O ARCABOUÇO TEÓRICO

2.1. Letramento

2.1.2. Práticas de letramento

As práticas de letramento podem ser consideradas as bases de análise do modelo de letramento, isto é, através da observação delas pode-se inferir o modelo de letramento. Como o próprio conceito já diz, são a parte observável em relação ao que é realmente feito no processo de letramento, e mesclam e constituem os eventos.

Para Kleiman (2001), as práticas de letramento estão determinadas pelas condições efetivas de uso da escrita, pelos seus objetivos, e mudam conforme mudam essas condições. Essa concepção pode ser considerada a partir do modelo ideológico, pois procura incorporar e discutir não só a cultura, mas também as estruturas de poder da sociedade na qual está inserida.

A autora coloca que a prática escolar ainda predominante revela uma situação de desigualdade, uma separação polarizada entre oralidade e escrita, uma concepção de ensino voltada para o desenvolvimento das habilidades necessárias para a produção de uma linguagem abstrata. Diferentemente dessa prática, Kleiman propõe a transformação da concepção de letramento, com práticas sensíveis à realidade advinda do aluno.

As práticas de letramento não são exclusividade da escola. As crianças têm sua iniciação ao letramento em instituições como a família. Segundo Kleiman, as práticas de letramento na família geralmente são coletivas e colaborativas, numa relação quase que

tutorial, ou através de participação em pequenos grupos, que discutem, por exemplo, o que um texto jornalístico realmente quis dizer.

Heath (2001) pode ser considerada pioneira na discriminação de diferentes práticas de letramento e na instituição do conceito de “evento de letramento”, que ela descreve como “ocasiões em que a linguagem escrita integra a natureza das interações dos participantes e seu processo e estratégias interpretativas (das interações)” (Heath, 2001, p. 319) 15 . Em seu estudo, realizado nos arredores de uma cidade na região sudeste dos Estados Unidos, ela descreve três comunidades letradas, Maintown, Roadville e Trackton, com orientações diferentes de letramento no convívio familiar (pré-escolar), e relaciona cada orientação com o desempenho escolar das crianças.

A autora mostrou que, em algumas comunidades, a maneira aprendida em casa pode ser similar à da escola, como é o caso das crianças de Maintown, cujos pais são mais letrados e, com seis meses, a criança já “dá atenção a livros e informações relacionadas a livros”, conforme Heath ( 2001, p. 320) . As crianças de Roadville são filhos de operários brancos de fábrica têxtil que são letrados e se preocupam com o sucesso escolar dos filhos, pois vêem nele um futuro melhor. De semelhante modo como em Maintown, as crianças entram em contato desde cedo com eventos de letramento.

Há, porém, segundo Heath, uma diferença marcante nas interações entre as duas comunidades. Enquanto os adultos de Maintown fazem constantes relações entre o mundo real e algum evento similar num livro, e continuam a fazê-lo durante o período escolar, os adultos de Roadville não o fazem constantemente. O tipo de perguntas empregado na interação também difere de um grupo para outro. O modelo de letramento familiar de Maintown proporciona estruturas participativas e perguntas semelhantes à prática escolar, enquanto que o modelo de Roadville valoriza a prática escolar, mas não ensina as crianças a

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distinguirem, por exemplo, entre narrativas reais e imaginárias ou a questionar a razão dos fatos narrados.

Já o modelo de letramento familiar presente em Trackton, comunidade de operários negros, é totalmente diferente do modelo escolar, chegando a ser conflitante. Desde o ambiente em que vivem, onde não há decorações nos quartos das crianças relacionadas a histórias, até o material de leitura especial para crianças, é diferente, ou melhor, isso não faz parte da realidade das crianças dessa comunidade..

Outra diferença marcante é a forma do uso da linguagem no cotidiano. O grupo proveniente de classes mais escolarizadas recebe informações permeadas de letramento. Quando os pais, por exemplo, orientam a criança sobre o modo correto de segurar uma bola, usam termos mais específicos como: “coloca o polegar neste lugar e depois abre os dedos”, enquanto que o grupo menos letrado diz: “faz assim ó” (Heath 2001, p. 329).

As experiências de letramento anteriores à escola, isto é, o tipo, a intensidade, as interações envolvidas, devem ser, portanto, consideradas nas práticas escolares. O mundo de onde as crianças procedem, participando em maior ou menor grau de eventos de letramento, influenciam, segundo Heath (2001), as atitudes e a compreensão delas frente às atividades desenvolvidas nos rituais institucionais.

Rojo (2001, p.70) diz que, apesar dos desdobramentos e avanços que o modelo ideológico traz para o enfoque das práticas de letramento, ainda assim, a questão da relação entre escolarização e letramento parece fora de foco. Ela teme a mudança, apenas da nomenclatura, de alfabetização para letramento, mas não da prática de fato, que efetivaria o processo.

Os estudiosos citados anteriormente apontam unanimemente para a necessidade de rever as práticas de letramento, mas, sobretudo, de instrumentalizar o professor. Não basta que o mundo acadêmico estude e se debruce sobre as causas do fracasso escolar se os

orientadores ou mediadores das práticas de letramento (lê-se professores e instituições de ensino) continuarem a seguir o modelo autônomo e, quando muito, sensibilizarem-se com práticas de letramento por intuição (Bortoni 1994, p.92).

Segundo Street (1999, p.1), os usos da leitura e da escrita são socialmente determinados; portanto, têm valor e significado específicos para cada comunidade e dependem do contexto. Não podem ser tratados isoladamente ou como “neutros”. Como já vimos, Street (1999, p. 95), baseando-se em estudos que desafiam o modelo de letramento por ele denominado de “autônomo”, propõe o modelo de letramento “ideológico”.

No modelo autônomo a escrita é considerada um produto em si e o processo é visto como puramente cognitivo. O contexto não é levado em consideração e o texto é completo em si mesmo. O autor amplia seu posicionamento crítico em relação a esse modelo de letramento, por ser, ainda, o mais freqüente nas instituições educacionais e por raramente ser questionado. Ele diz que as pessoas e as instituições educacionais acreditam no processo de letramento autônomo e, ao haver fracassos, atribuem-no à incapacidade individual.

O modelo “ideológico” proposto por Street amplia a responsabilidade da escola como membro da comunidade, sendo que a instituição deve considerar o contexto do letramento. Esse modelo de letramento deve ir além das escolas, observando também outras instituições sociais. Isso significa que o texto adquire significado dependendo do contexto em que está inserido.

Street propõe, com o modelo ideológico, que se preste mais atenção à natureza social das práticas de letramento e sua inserção na estrutura ideológica e social. Isso vem ao encontro de uma pedagogia culturalmente sensível, tema do presente estudo e que será especificada na subseção 2.7.

Marcuschi (2001, p. 37) define as práticas de letramento como modelos construídos para os usos culturais em que produzimos significados a partir da leitura e da escrita. A carta

pessoal é um evento de letramento, mas a sua leitura e comentário entre amigos, familiares, etc. é uma prática de letramento que envolve mais do que interação com um texto escrito, (Street 1999). Neste sentido o letramento não deixa de ser uma prática comunicativa, como sugere Grillo (1989, apud Marcuschi, 2001). Para ele, “as práticas comunicativas incluem as atividades sociais através das quais a linguagem ou a comunicação é produzida.”

Rojo (2000) considera que o domínio do código escrito é algo que se espera em todas as comunidades nas quais os indivíduos sejam reconhecidos como alfabetizados, enquanto as práticas de letramento podem variar de comunidade para comunidade, e até mesmo de grupos sociais para grupos sociais dentro de uma mesma comunidade. As pessoas podem estar mais familiarizadas com certas práticas de letramento do que com outras, dependendo do engajamento delas naquela prática social específica.