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II. O contexto – o cânone literário-ideológico vigente e a ruptura

5. Carlos de Oliveira: adesão à estética neo-realista

5.2. Evolução literária

O título que aqui propomos não é isento de polémica, bem o sabemos, na medida em que o mesmo parte do pressuposto de que a obra de Carlos de Oliveira reflecte a adesão inicial a uma corrente estético-literária, o Neo- realismo, e o posterior afastamento (progressivo) face às suas premissas. Não seria caso inédito, de resto, na literatura portuguesa coeva de Oliveira – afinal, Vergílio Ferreira (autor de que já nos ocupámos) procedeu a uma significativa revisão da sua orientação literária, a partir de Mudança (1949), vindo a enveredar pelas propostas existencialistas - bem patentes em obras como

Aparição165. Terá acontecido semelhante percurso com Carlos de Oliveira?

Renunciou (também ele) ao cânone vigente, que tão empenhadamente havia abraçado? E, assim sendo, como explicar o sentido da dissidência?

Qualquer que seja a resposta, analisando tão-só a narrativa ficcional de Oliveira, parece-nos correcta a afirmação de que houve, se não ruptura, pelo menos, evolução estético-literária deste autor da Gândara166. Com efeito, entre

Casa na Duna (e Alcateia) e a última obra narrativa que deu a lume, Finisterra, Paisagem e Povoamento, há nítida evolução artística, no que, mais

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Motivou-a a publicação de uma antologia de contos populares, em 1957, em parceria com José Gomes Ferreira, intitulada Contos Tradicionais Portugueses: “José Gomes Ferreira prefaciou e anotou nos passos mais difíceis a antologia de contos populares que organizámos ambos. (…). O nosso grande objectivo era outro: reunir, seleccionar e estruturar literariamente a novelística tradicional” (OLIVEIRA, C., 2004-b: 89).

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A reflexão sobre a condição humana, na esteira, entre outros, de André Malraux, não significou, apesar de tudo, um alheamento da temática social, nem qualquer transigência face ao regime e à cultura oficial. Bem pelo contrário, Vergílio acabou vítima da sua liberdade de pensamento: agnóstico, despertou animosidades em forças de cariz conservador; esteticamente independente, suscitou a incompreensão de alguns pensadores de esquerda.

166 Não é ele que afirma, em Finisterra, “desisti de perseguir a realidade ou, melhor, cansei-me”

(OLIVEIRA, C., 2003: 77) - embora referindo-se à pirogravura, arte alternativa de fixação da realidade?

78 visivelmente, à técnica narrativa e aos processos de representação da realidade diz respeito – aparecendo-nos Pequenos Burgueses e Uma Abelha

na Chuva (nas respectivas edições definitivas, ressalvemo-lo!) como obras de

transição, em que é já manifesta a influência de outras propostas, como sejam as decorrentes do “Nouveau roman” francês dos anos cinquenta167

. Senão, vejamos: em Uma Abelha na Chuva (sobretudo nesta), merece especial enfoque o convulsionado mundo interior das figuras principais (o recalcamento, o inconsciente finalmente irreprimível), que vem a traduzir-se pela conduta (aparentemente) ilógica, porque irracional, de Silvestre e pela explosão de atitudes e de palavras ácidas de Maria dos Prazeres. Ou seja, a personagem não se apresenta como agente consciente da acção, movida por um desígnio ou um objectivo facilmente identificável. Que move Álvaro Silvestre? A confissão do pecado? A busca do equilíbrio interior? A vingança? E Maria dos Prazeres? A conservação das aparências? A expressão da superioridade da sua linhagem? Ou ambos (também eles), para usar a esclarecida e feliz expressão do Dr. Neto, não passam de “abelhas cegas, obcecadas” (OLIVEIRA, C., 1977: 170), porque “fabricam fel” (Ibidem)?

Por outro lado, nesta obra, sobre a qual numerosos estudos críticos se pronunciaram já, a intriga principal, quanto a nós, tende a desvanecer-se ou a reduzir-se em termos de complexidade. De resto, a história conta-se em duas palavras. E entende-se: afinal, ali, mais do que a narração, predomina a pintura de quadros, a descrição do comportamento humano, por vezes incendiado e incendiário168. A história, com efeito, quase chega a ser acessória, parecendo que ao narrador-autor importava mais a fixação de uma incompatibilidade congénita entre duas classes sociais, dois quadros de valores, o burguês e o aristocrata - em suma, duas atitudes mentais face à vida e ao mundo.

Desta forma, no caso da intriga principal, as categorias espaço e tempo deixam de ser enquadradoras de uma acção com progressão linear, avançando inexoravelmente para um desfecho. Até porque, efectivamente, não há desenlace - para Álvaro Silvestre e D. Maria dos Prazeres, o conflito continua:

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Com este, assiste-se a uma subversão do romance dito “tradicional”. Isto, na medida em que a intriga é progressivamente desvalorizada e outras categorias da narrativa são objecto de reformulação: a personagem tende a desagregar-se, a linearidade temporal tende a esbater-se ou, mesmo, a dissolver-se e o espaço físico deixa de ter uma função de referencialidade, nos termos que lhe eram conferidos até então.

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Assim designa José Manuel da Costa Esteves o comportamento de Mariano Paulo, figura de Casa na Duna, num estudo justamente intitulado “Casa na Duna de Carlos de Oliveira: os olhos incendiados de Mariano Paulo ou a impossibilidade de compreensão da História” (in Revue Les Langues Néo-latines. “Journée de Réflexion sur les auteurs des programmes des Concours d‟Agrégation et du Capes de Portugais”, supplément du nº 315, Paris, 2000).

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“Tinha ainda vestida a samarra que levara a Corgos e, afundando a mão no bolso, encontrou o papel amarfanhado à pressa no escritório do Medeiros (…). E ferido pela compreensão confusa mas brutal de que tinha voltado ao ponto de partida, traçando um círculo vão com o sofrimento daqueles dias, ergueu-se de repente com a garrafa vazia na mão” (OLIVEIRA, C., 1977: 172-173).

Não esquecemos, contudo, a história secundária. Em boa verdade, esta ganha interesse na medida em que as personagens se cruzam (tragicamente) com a história da família Silvestre. Falamos do par amoroso Jacinto / Clara, que, curiosamente ou talvez não, evocam outro par, também ele vítima de circunstâncias alheias ao singelo sentimento que os une – Simão e Teresa, de

Amor de Perdição. Ali, duas classes debatem-se entre si; aqui, digladiam-se

duas famílias. Em ambos casos: o desfecho trágico a penalizar os inocentes. Neste contexto, questionamo-nos: é uma narrativa de raiz neo-realista? É. Mas apenas na medida em que é evidente o interesse pela representação de um conflito mais amplo, entre duas classes sociais, historicamente bem definidas – a aristocracia decadente e a burguesia rural ascendente. Com efeito, a primeira acabou por encontrar na segunda o esteio económico que lhe faltava, na sequência do movimento histórico que a conduziu à penúria financeira. Ou seja, em última instância, é ainda o ensinamento marxista, a visão materialista, dialéctica, da História que explica o interesse de Carlos de Oliveira por estas figuras.

Quanto a Pequenos Burgueses, obra anterior àquela, julgamos que os sinais da “evolução” literária a que fazemos referência são mais notórios ao nível da técnica narrativa, de que são exemplos a polifonia discursiva (formando uma teia em que se combina, com frequência, a voz do narrador com a voz interior da personagem) e a adopção do monólogo interior (a atestar a cedência à exposição de zonas recônditas da personagem). Mas também a abertura à (tardia) influência surrealista.

Estas (necessariamente) breves considerações sobre as novidades estéticas introduzidas na prosa narrativa do autor da Gândara ganham mais sentido se tivermos em mente o testemunho do Autor sobre a importância de cultivar a originalidade (a autenticidade), “encostando” a forma ao conteúdo:

“Disse-me há dias um amigo que a generalidade da literatura portuguesa actual (estamos em 1952) lhe sabe pouco a portuguesa. Os novos romancistas, por exemplo. Encontraram numa realidade inexplorada a matéria das suas obras, mas as técnicas empregadas, a caracterização da linguagem, trouxeram-nas de fora e usaram-nas quase tal e qual (…) não será possível descobrir na nossa tradição literária uma tonalidade própria? (…). Agora, é talvez uma questão de estudo, instinto, personalidade. E a língua em que se escreve mais aprofundada, por muito que certa teorização postule o desprezo da forma e exija mesmo em detrimento dela verdades como punhos ao romance, ao poema. Sim senhor. Mas o que vem a ser uma obra de arte sem qualidade e

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independência artísticas? Sem o equilíbrio difícil, criador, entre as verdades e as palavras que as dizem?” (OLIVEIRA, C., 2004-b: 61).

Ainda que se possa ler nestas afirmações alguma reflexão auto-crítica, a verdade é que a atenção do autor vai para a denúncia de uma tendência literária (neo-realista!) importada, atenta ao conteúdo (feito de “verdades como punhos” – leia-se ideológica e politicamente comprometida), mas pouco preocupada com a qualidade da linguagem. Contrapõe Oliveira a busca do equilíbrio entre forma e conteúdo (“equilíbrio difícil, criador, entre as verdades e as palavras que as dizem”), sem o que a literatura será coisa bem diversa. Mais claro não poderia ser quanto à sua posição estética no seio do movimento neo-realista – defensora da “qualidade e independência artísticas”. Eis, em síntese, dois termos extremamente importantes (“qualidade” e “independência” – repetimo-los), se se quiser compreender cabalmente o lugar de Carlos de Oliveira no panorama literário neo-realista português.

Note-se, contudo, que o autor da Gândara não desdenha o contacto com o que, em cada momento, se vai produzindo mundo fora. A sua posição não se caracteriza por qualquer forma de isolamento artístico. Bem pelo contrário:

“Ler os autores estrangeiros parece-me evidentemente necessário, indispensável. (…). Mas que não sirvam apenas de pretexto à nossa tendência imitadora, à nossa mentalidade de colonizados pressurosos” (Idem: 62).

O que questiona é, como vemos, a secular tendência portuguesa para a importação de modelos. Assim foi, de facto, ao longo da nossa história literária: Almeida Garrett zurziu tal propensão (em obras como Viagens na Minha Terra) e Eça de Queirós, no seu peculiar tom irónico, corrosivo, deu-lhe contornos magistrais, pela voz das personagens d‟ Os Maias:

“Isto é fantástico, Ega!

Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! (…) sem originalidade, sem força, sem carácter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro – modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha…” (QUEIRÓS, Eça, 2002: 703).

O Professor Carlos Reis, por seu turno, constata-o, justificando-o com o carácter periférico da cultura portuguesa:

“O Neo-Realismo português deve muito da sua identidade periodológica à sua

condição transnacional. Ou seja: não constituindo uma ocorrência endógena ao

sistema literário português, ele alimenta-se sobretudo do exemplo e da doutrina de movimentos afins e precedentes, reiterando aquela que tem sido uma tendência característica da história cultural e literária portuguesa, em várias épocas: a forte atracção por modelos estrangeiros, uma atracção que corresponde a um impulso de internacionalização próprio das culturas que vivem a consciência aguda da sua condição periférica” (REIS, C., 2005: 13-14).

81 Por outro lado, o posicionamento de Carlos de Oliveira é avesso a qualquer forma de lirismo saudosista (passadismo doentio) ou de cepticismo primário perante qualquer nova aventura estética:

- “Também não sofro da doença do passado nem vou de barbas brancas para o Restelo malsinar os que partem” (Ibidem).

Bem pelo contrário, a sua inquietação tem raízes fundas no presente português, no hic et nunc, embora tenda a projectar-se no futuro, de acordo com uma certa perspectiva futurante de que comungaram os restantes autores neo-realistas. A emergência do presente (a realidade física e a realidade social, humana) oferecia-se-lhe como inadiável (e, logo, também o quotidiano da Gândara):

“a) o meu ponto de partida, como romancista e poeta, é a realidade que me cerca; tenho de equacioná-la em função do passado, do presente, do futuro; e, noutro plano, em função das suas características nacionais ou locais” (Idem: 65).

E concretiza o seu pensamento quanto à preocupação com o tratamento da realidade (atinente ao espaço e ao tempo presente - português), ou seja, faz a defesa de uma literatura de cariz nacional, no que isso significa de autêntico e de indissociável, portanto, dos problemas da sociedade portuguesa:

- “d) não concebo uma literatura intemporal nem fora de certo espaço geográfico, social, linguístico; quer dizer, não a vejo inteiramente desligada das condições de tempo, de lugar; e quando digo inteiramente atendo já ao desenvolvimento específico da literatura;

e) o processo para ter alguma validez necessita portanto de atender às circunstâncias de época e de país, precisa de ser actual e português” (Ibidem).

Sintetizando, podemos afirmar que Carlos de Oliveira procedeu a uma leitura crítica da matriz neo-realista, evoluindo para uma posição de algum distanciamento face às orientações mais dogmáticas169. Ou seja, trilhou caminho autónomo, embora não estivesse completamente desacompanhado. Com efeito, Mário Dionísio, como vimos, adoptou semelhante postura crítica – o mesmo acontecendo com João José Cochofel.

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A leitura de João Pedro de Andrade parece ajustar-se perfeitamente a tal rumo ficcional escolhido por Carlos de Oliveira: “Mas para as exigências da escola não bastava descrever, por um lado, as vicissitudes e aspirações dos pobres, por outro, os abusos e a cupidez dos ricos, embora a esse desenho esquemático se tenham cingido muitas páginas da fase experimental. Era preciso estudar as contradições da organização social nas suas fontes históricas, seccionar os problemas analisando as condições de vida do camponês e do operário e a sua projecção emocional, denunciar os dramas do progresso industrial na sua marcha inexorável, ressuscitar o regionalismo alargando o seu alcance, para além da mera descrição de costumes, a um significado universal” (ANDRADE, J. P., 2002: 43-44).

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