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II. O contexto – o cânone literário-ideológico vigente e a ruptura

1. A revista de arte e cultura – veículo (privilegiado) de comunicação

1.1. A Presença: herança literária e ruptura

Importa dizer, desde já, que alguns autores e teorizadores neo-realistas mantiveram com os elementos ligados à revista coimbrã, Presença95, e, em particular, com José Régio, o seu principal mentor, acesa polémica em muitas páginas das publicações (revistas, sobretudo) circulantes na altura96. De facto, os últimos eram acusados do delito artístico de se refugiarem no culto da forma97, qual arte pela arte dos tempos modernos (arte inútil, no sentido de Théophile Gautier), e de se alhearem dos problemas sociais, ou seja, das injustiças sofridas pelo homem português, no contexto político-social e cultural instaurado na sequência do Golpe militar de 1926.

Reconhecidamente, os presencistas preocuparam-se com o indivíduo98, com o mundo interior do ser99, em detrimento da análise do colectivo, da quotidiana vida social, de que verdadeiramente (propositadamente) se

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Foi relativamente longa a vida editorial desta revista. Iniciada a sua publicação em 1927, virá a desaparecer apenas em 1940, nos alvores do Neo-Realismo.

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Afinal, um movimento (acentuemo-lo), escola ou geração tende a afirmar-se, regra geral, por oposição à situação anterior. E, frequentemente, de forma polémica, revolucionária – pelo menos, numa fase inicial. A título de mero exemplo, lembremo-nos da já citada questão (conflitualidade artística) entre clássicos e românticos ou, pouco depois, entre românticos e realistas-naturalistas, ou, ainda, já no séc. XX, por exemplo, entre a Renascença saudosista de Teixeira de Pascoais e a Geração de Orpheu. Agora, surgia a acusação de que os presencistas se haviam refugiado numa estética torre de marfim, isolados da realidade social, cultivando a arte pela arte.

97 Contraria-o, de forma peremptória, Eugénio Lisboa: “Foi em vista deste ideário aberto, tão

aberto quanto possível, que os presencistas rejeitaram com indignação as acusações de “esteticismo” ou de “formalismo” que, mais para diante, os neo-realistas quiseram grudar-lhes (…)” (LISBOA, E., 1988: 30).

98 Reconhece-o o regiano Eugénio Lisboa: “Fundamentava [José Régio] todo o seu leque de

exigências na revelação de um caso humano autêntico e fundamente vivido e aprofundado” (LISBOA, E., 1988: 28).

99 Vide, de Régio, do soneto “Narciso”: “Dentro de mim me quis eu ver. Tremia, / Dobrado em

dois sobre o meu próprio poço… / Ah, que terrível face e que arcabouço / Este meu corpo lânguido escondia!”.

48 alhearam, como que encerrando-se numa estética “torre de marfim”100

. É assim que, no primeiro número da Presença101, Régio faz a defesa de uma literatura viva, original102, no seio de um movimento não doutrinário, não ideológico e não politicamente filiado. O que, contudo, segundo Eugénio Lisboa103, “nunca quis dizer (…) que excluísse de publicar nas suas páginas textos de autores acreditados numa doutrina, numa ideologia ou numa política” (LISBOA, E., 1980: 51) – nisto, indo ao encontro das palavras do próprio Régio, que transcreve:

“Que na obra de um artista, dum crítico, dum pensador, se reflictam as suas tendências políticas, sociais, éticas, religiosas, etc, não tem a Presença a cegueira de o contestar; nem a ingenuidade de o combater (…). Quanto mais viva é a obra dum homem, mais nela se reflecte (embora muito indirecta ou subtil às vezes) o homem inteiro. Em nada, porém, a aceitação deste facto embaraça a posição da revista Presença. Quando as tendências ou atitudes políticas, sociais, éticas, religiosas, em vez de naturalmente se reflectirem nas obras dum artista, dum crítico, dum pensador, grosseiramente alugassem a máscara da arte, da crítica, do pensamento, para melhor realizarem impunes a sua verdadeira intenção de divulgação e propaganda – claro que a arte desses

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É sobejamente conhecido o poema “Cântico Negro”, de José Régio, da obra Poemas de

Deus e do Diabo, em que lapidarmente afirma um assumido auto-isolamento artístico: “Vem

por aqui” – dizem-me alguns com olhos doces / (…) / Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém. / (…) / Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou, / - Sei que não vou por aí!”.

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No prefácio de Fanga, o insuspeito Joaquim Namorado caracteriza, sintética e incisivamente, a orientação, a acção e o legado da Presença: “No plano literário e artístico, a Presença liquidara de vez o academismo, a “literatice literata” em que descambara quer certo simbolismo dessorado, quer um naturalismo invertebrado e sem informação, não se mostrando, por outro lado, disposta a colaborar com a arte oficial, por mais que esta se mascarasse de vanguarda. A

Presença arvorara a bandeira de uma “literatura viva”, combatera pela liberdade da criação artística, derrubara tabus, destruíra preconceitos, trouxera aos seus leitores o convívio de Proust, de Gide, de Mann, de Joyce, opunha à realidade social, que não aceitava, o isolamento da torre de marfim, o “não vou por aí”, o individualismo mais categórico, a introspecção, o subjectivismo e, como única verdade, em arte, a predominância dos valores estéticos” (in REDOL, Alves, 1976, Fanga, Obras Completas de Alves Redol, s/l, Publicações Europa- América, p. 15).

102 “Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem,

mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade a obedecer-lhe”.

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Na obra Poesia portuguesa: do “Orpheu” ao Neo-Realismo, Eugénio Lisboa (assumindo a defesa dos homens da Presença e, em particular, de José Régio) tenta desmontar a querela, considerando que a revista coimbrã não só teve um papel preponderante na divulgação da obra dos Primeiro-modernistas, como se constituiu em pólo aglutinador da renovação artística em Portugal, ao proclamar uma arte contrária ao academismo (reiterando, de resto, como sabemos, a crítica que já Almada Negreiros e Álvaro de Campos, entre outros, haviam exposto nos seus manifestos).

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pseudo-artistas seria má 104 , a crítica desses pseudocríticos falsa, o pensamento desses pseudopensadores deficiente; e então Presença recusar- lhes-ia as suas páginas: todos os leitores compreenderão que o grupo directivo duma revista se reserve o direito de recusar colaboração que repute inferior”105

.

Do que, apesar de tudo, parece não haver dúvida é de que os presencistas preferiram a expressão subjectiva do eu (muito influenciada, aliás, pelos dados da nóvel ciência fundada por Freud). Estamos a pensar na tendência para o confessionalismo, por exemplo, do próprio Régio106.

Portanto, a fazer fé neste quadro, a afirmação da nova corrente humanista (neo-realista) desenvolveu-se (também desta vez) por oposição a um sistema de valores estético-literários107 até então vigente – o segundo- modernista, presencista. Surgia, assim, um conjunto significativo de autores, como Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Joaquim Namorado, João José Cochofel, Fernando Namora, Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, entre outros, que, ideologicamente informados pela mensagem marxista e em ruptura aberta com o Regime (e, literariamente, com a orientação presencista, como referimos), pugnavam pela transformação do ambiente literário-artístico vigente – e, com ele ou através dele (pelo menos, da parte de alguns elementos politicamente mais alinhados, como Soeiro e Redol), pela alteração das

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Semelhante pensamento evidenciará Vergílio Ferreira, reagindo à incompreensão de que se sentia vítima, ao abandonar a linha neo-realista, em favor do pensamento existencialista.

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Apud LISBOA, E., 1980: 57-58.

106 Atente-se no poema “Demasiado Humano”, da Biografia:

Escancarei, por minhas mãos raivosas, As chagas que em meu peito floresciam. Versos a escorrer sangue eis escorriam Dessas chagas abertas como rosas… Assim vos disse angústias pavorosas Em versos que gritavam… ou sorriam. Disse-as com tal ardor, que todos criam Esse rol de misérias fabulosas!

Chegou a hora de cansar… cansei! Sabei que as chagas todas que aureolei São rosas de papel como as das feiras. Que eu vivo a expor minh‟alma nas estradas, Com chagas inventadas retocadas…

Para esconder bem fundo as verdadeiras.

107 Sobre a questão da inserção literária, diz-nos Eugénio Lisboa: “(…) a presença não

constituiu uma escola literária, nem sequer um grupo ou um cenáculo. Régio mostrará sempre, de resto, directamente ou pelo interposto dos seus personagens de ficção, uma total aversão às escolas e aos “ismos”” (LISBOA, E., 1988: 34).

50 condições sociais, económicas e políticas. Isto, como se disse, num contexto muito particular: o do Estado Novo, regime (sumariamente) fascista, ditatorial (totalitário) - salazarista108.