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Marcas das correntes existencialista e surrealista

II. O contexto – o cânone literário-ideológico vigente e a ruptura

5. Carlos de Oliveira: adesão à estética neo-realista

5.3. Marcas das correntes existencialista e surrealista

A escrita de Oliveira acaba, assim, por reflectir a abertura ao diálogo com outras propostas, incluindo, julgamos, a existencialista170 (atendendo a alguma reflexão sobre a condição humana, donde resultará o tratamento de temas como a vida, a morte e o lugar que ao homem cabe ocupar no mundo) e a surrealista (mercê da significativa importância concedida ao irracional, ao ilógico e desordenado mundo interior, à exploração do psiquismo do ser, em que a componente onírica – algumas vezes também a fantasia e a imaginação - ocupa um espaço significativo), embora, em ambos casos, as marcas sejam pouco evidentes ou, melhor, não sejam facilmente identificáveis numa primeira abordagem.

Exemplifiquemos o primeiro vector. Que sentido terá a questão lançada pelo Dr. Neto (figura secundária da intriga principal de Uma Abelha na Chuva), que calará tão fundo na consciência de Álvaro Silvestre, senão o de suscitar a reflexão do outro sobre a fragilidade da condição humana e, logo, a descoberta da sua situação no mundo?

- Mas pensando bem, vida e morte o que são?

A pergunta inesperada ecoou em Álvaro Silvestre, de fibra em fibra e nervo em nervo, até lhe ressoar no mais íntimo da consciência. Ficou espantado, como alguém que é ferido a uma esquina, de surpresa, e balbuciou sem querer: - Vida e morte o que são?

A conversa continuava:

- Para nós, católicos, vida e morte são o que são. Um dia, a vontade criadora de Deus resolveu-se e criou…

- Pois sim, mas tomemos para exemplo as abelhas. Partir do simples para o complexo. Sabe-se que após a fecundação o destino dos machos é a morte. Ora, como fecundar é criar, pergunto eu…

As coisas em redor, o grande candeeiro de petróleo, a mesinha holandesa, as cadeiras, o relógio esmaltado, os móveis de nogueira velha, a tenaz caída no tijolo do lar: um abandono sem remédio” (OLIVEIRA, C., 1977: 56).

O Dr. Neto surge, portanto, não apenas como homem de ciência, preocupado com o positivismo da análise, mas, sobretudo, como voz esclarecida de uma consciência iluminada. Incendiária também, na medida em que pretende acordar os presentes para a necessidade da sua “desalienação”, sejam eles o casal Silvestre ou o padre Abel e D. Violante (já que D. Cláudia parece escapar a tal desiderato). Com efeito, os primeiros afiguram-se-lhe

170 “a) o surrealismo, o neo-realismo e certo existencialismo, é ele [José Gomes Ferreira] que

83 seres alienados, no sentido de que são figuras obcecadas pelo ódio inconfessado, condenados à destruição mútua; já os segundos reduzem os seus dias à acomodação no seio de uma verdade dogmática, imutável – quando não também ao fel, como D. Violante.

Em relação à vertente surrealista (sem se pretender desenvolver, também por agora, reflexão aprofundada), atentemos na seguinte passagem de Pequenos Burgueses:

Luar e neve, árvores como as das garrafas de anis escarchado, lagos coagulados. Uma terra polar, a perder de vista. Ela foge, foge quanto pode, a um monstro de felpo escuro que a persegue há horas com horríveis ganidos de cio. Apesar da correria, está gelada. Os pés prendem-se-lhe na neve, o monstro não tarda a alcançá-la. De repente, porém, a luz branca da lua alaranja-se, ganha um ardor de tijolo. Fecha os olhos e, quando torna a abri-los, tem diante de si o Delegado, a sorrir, com a pistola na mão. (…). Repara então na pistola do Delegado e um ataque de riso dobra-o pela cintura. Os olhos de madrepérola caem-lhe no chão, apanha-os e torna a metê-los nas órbitas. (…). As árvores de anis escarchado tremem, o açúcar solta-se dos ramos. O vidro do céu toma a forma duma garrafa, aprisiona as árvores, frias e lisas como ossos, até que o sangue sobe, enche a garrafa e as árvores tornam-se também vermelhas” (OLIVEIRA, C., 2005: 36-37).

Trata-se, como é de ver, do mundo do sonho (experimentado por Cilinha), irracional, bruto, desordenado, aparentemente caótico - mas simbólico, carregado de sentidos, a carecer do esforço interpretativo do leitor.

Repare-se que, estas “derivas”, dificilmente as encontramos nas obras iniciais, Casa na Duna e Alcateia, onde a mensagem neo-realista é mais consistente e domina a textualidade. Em todo o caso, sobre aquela “apropriação” da orientação existencialista, a nossa percepção é a de que, em Carlos de Oliveira, nem sempre é fácil deslindar onde acaba a reflexão sobre os problemas existenciais do ser, por vezes de difícil solução (e o concomitante convite à reflexão sobre a sua situação no mundo), e começa o intuito iluminador no que à sua inserção no colectivo e na História diz respeito. Diremos, tão-só, que, se o Neo-realismo pretendeu ser um novo Humanismo, também o Existencialismo visou semelhante objectivo. Ou seja, ambos orientaram as suas preocupações para o Homem, embora diversas fossem as premissas e as perspectivas adoptadas. Afinal, seria a base filosófica existencialista conflituante com a plataforma marxista? Cremos que não – pelo menos, seguindo esta linha de raciocínio171. Contudo, importa dizer, em abono da verdade, que, no terreno da criação artística, a orientação filosófica marxista

171

A reflexão filosófica de Jean-Paul Sartre assentou, aliás, em grande medida, na tentativa de conciliação do marxismo com o existencialismo. Daí (talvez) o facto de Vergílio Ferreira ter encontrado em A. Malraux a sua fonte preferencial de inspiração.

84 foi conflituante com as nóveis propostas existencialistas. Disso mesmo dá conta Viviane Ramond, referindo o posicionamento de alguns colaboradores de

Vértice e vultos maiores do pensamento neo-realista:

“Jofre Amaral Nogueira, historiador e ensaísta, escreve um artigo no número consagrado à França – A Filosofia ao Serviço do Renascimento Francês – no qual deplora a crise da filosofia, e mais particularmente da filosofia francesa. Condena (…), o existencialismo de Jean-Paul Sartre, fortemente influenciado pela filosofia de Heidegger (…). Nesse mesmo número, Rodrigo Soares assina um artigo ditirâmbico sobre o livro de Georges Friedman, La crise du progrès (…). Aproveita para acusar vivamente o existencialismo de Jean-Paul Sartre (…). Rodrigues Martins rejeita a filosofia existencialista e pronuncia-se a favor da ciência moderna que privilegia a experiência (…). Por seu turno, Rui Gradim faz uma crítica muito severa das filosofias que considera anti-racionalistas. No artigo “Significado Filosófico da Física Moderna”, condena (…) o desespero existencial de Kirkegaard, de Sartre e de Heidegger, em suma, tudo o que não é materialismo e positivismo. (…) contestam primeiro os filósofos idealistas e atacam a metafísica e o existencialismo. Não apreciam senão os filósofos que consideram progressistas” (RAMOND, V., 2008: 174-185).