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II. O contexto – o cânone literário-ideológico vigente e a ruptura

4. O Neo-realismo e o quadro ideológico

4.2. Realismo e Neo-realismo

Dentro deste quadro ideológico-filosófico, à criação literária restavam dois caminhos: ou se abstraía (consciente ou inconscientemente) da realidade social (como deliberadamente haviam feito os presencistas) ou nela tentava intervir – de forma consciente, informada, como decidiram os neo-realistas.

Ora, é precisamente neste ponto que poderá entrever-se uma certa linha de ruptura com o Realismo-naturalismo do século precedente: enquanto este pretendeu a descrição objectiva (fotográfica) da realidade (física, humana e social) e a análise (com pretensões científicas) do comportamento do indivíduo, seguindo uma perspectiva estática da existência social (de forma crítica, mas distanciada - por vezes irónica e fidalga, numa atitude burguesa de quem, sendo burguês, teme, no fundo, a revolução126), o Neo-realismo adopta uma atitude dinâmica, porque se funda nos princípios do materialismo dialéctico, aplicados ao estudo do curso da História, e porque, declarada e empenhadamente, tenta intervir na transformação das condições (sociais, culturais, entre outras) que afectam o quotidiano do ser humano. Em termos

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Fernando Luso Soares, numa brochura de carácter pedagógico-didáctico, caracteriza-o da seguinte forma: “(…) um sistema integral de concepções filosóficas, económicas e político- sociais, uma concepção cabal do mundo que assenta na fundamentação do papel histórico da classe operária como criadora da sociedade sem classes” (SOARES, F. L., 1975: 150).

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Encontramos eco desta ideia nas afirmações (aparentemente) contraditórias de António José Saraiva e Óscar Lopes: “Eça de Queirós conseguira ver as camadas sociais médias e superiores com uma precisão de traço e um desapego de preconceitos que ficariam modelares (…) formas oitocentistas de hipocrisia moralizante” (SARAIVA, A. J. e LOPES, Ó., 1975: 1003).

63 ideológico-filosóficos, aqueles fundavam-se no positivismo comtiano e no socialismo utópico de Proudhon127, enquanto estes seguem o socialismo científico preconizado pelo materialismo da filosofia marxista128.

Mas a questão deve colocar-se em termos mais precisos. O Neo- realismo não pretendeu ser „novo‟, no sentido de que tenha pretendido retomar ou actualizar as premissas (temático-ideológicas e estético-formais) do Realismo oitocentista. Foi novo porque foi, acima de tudo, diferente – e não apenas em termos ideológico-filosóficos, como antes se disse. Ou seja, se o Realismo-naturalismo visara a transformação da sociedade pela via (pacífica) da revolução lenta das mentalidades (de cada um dos indivíduos que a compunham, particularmente das elites, porque a elas cabia um papel importante na direcção do destino colectivo – e Eça trabalhou muito nesse sentido), acreditando-se que a sociedade poderia regenerar-se (melhor: reformar-se), aperfeiçoando-se, evoluindo por dentro, o Neo-realismo, pelo contrário, assentava a necessidade imperiosa de um corte absoluto com o modelo de sociedade burguesa, de matriz capitalista. Ou seja, preconizava a revolução (para que, evidentemente, importava criar as condições ideológico- culturais que permitissem essa cisão). Assim, também ao nível da praxis se assistiu a opções próprias129.

127 Diz Alexandre Pinheiro Torres, no estudo que temos vindo a citar: “A geração de 1870 era

ainda sensível às grandes injustiças sociais, preconizando uma forma de Socialismo que se bebia em Proudhon (o qual acabaria por se tornar num dos inspiradores do Fascismo) e nada queria com Marx. Repudiava (…) toda e qualquer acção revolucionária. Os seus componentes eram anti-comunistas convictos e apaixonados. O seu Socialismo burguês dissolvia-se e dissolveu-se num vago humanitarismo cristão (…). Nunca foi intenção do Socialismo burguês destruir o Capitalismo. Sempre quis viver com ele, em alegre conúbio, limadas as arestas mais irritantes, as injustiças sociais de todo em todo insuportáveis. (…). A Geração de 1870 acreditava, aliás, que a Revolução seria conseguida sem se mexer uma palha. O mundo das “injustiças sociais” desmoronaria por si” (TORRES, A. P., 1977: 26-27).

128 Ambos, contudo, pretendiam “ligar a literatura à sociedade, fazendo dela um instrumento de

activa intervenção social” (REIS, C., 2005: 16).

129 Retemos a crítica esclarecida de João Pedro de Andrade: “[A] nova visão da realidade não

podia, porém, ser desinteressada. Nisso se distinguiria da visão do outro realismo. Era preciso implantar a nova escola no seio mesmo da realidade, e observar aí as contradições internas em que a sociedade evoluía. O desenvolvimento histórico ia-se produzindo na base de factores económicos com uma acuidade há muito não sentida. Era para esses factores que urgia voltar as atenções, não já com a impassibilidade dos primeiros realistas, que no seu ódio ao burguês eram no fundo uns bons burgueses, nem mesmo com o naturalismo do velho Zola, cujo experimentalismo pseudo-crítico nada trouxera afinal de válido e de durável, mas sim com a intenção deliberada de usar a literatura como uma força que agiria no conjunto de forças que transformam as sociedades. Este seria o único caminho, o método fundamental da literatura e da crítica” (ANDRADE, J. P., 2002: 24).

64 Se, em todo o caso, quisermos fazer um esforço de aproximação, ressalvando, contudo, repetimos, o que acima dissemos, poderemos reconhecer que, em ambos casos, a questão cultural foi colocada de forma particularmente aguda – embora tomada em acepções ou entendida sob prismas diferentes; que a discussão sobre os problemas sociais foi sentida como premente; que houve a consciência da concomitante necessidade de mudança do rumo social (nos termos antes referidos); que não se tratou da dispersa acção individual – antes, houve alguma forma de organização da mesma (o Cenáculo ou a reunião clandestina - por exemplo, em casa de Cochofel); que importava agir junto da opinião pública, difundindo uma mensagem pela via comunicacional mais expedita (as Conferências Democráticas do Casino ou, por exemplo, a conferência de Redol intitulada “Arte”, em 1936, e as múltiplas iniciativas culturais nos anos quarenta e cinquenta); que os poderes instituídos, sentindo ameaçados os seus alicerces, ou seja, a própria estabilidade do regime político, reagiram prontamente (o encerramento das Conferências, pela polícia, na sequência daquela portaria do marquês de Ávila e Bolama ou a perseguição e a prisão, às mãos da PVDE / PIDE, dos artistas novo-realistas); que existiu alguma consciência geracional (a conhecida Geração de 70 ou o sentimento de pertença a um grupo e/ou partido, no caso do movimento neo-realista); que o ambiente académico-universitário foi importante no despertar de consciências (embora se reconheça que o citado grupo de Vila Franca escapou, em boa medida, a esta circunstância); que, ontem como em meados do século XX, foi sentida a necessidade de reagir contra e de polemizar com a escola literário-artística precedente130; que, finalmente, em ambos períodos artísticos, entre a intenção projectada e a realização possível, houve significativo „fracasso‟ (“Os Vencidos da Vida” ou, no caso dos neo-realistas, a reflexão – a discussão - sobre Neo-realismo ideal e Neo-realismo real, que parece apontar semelhante tomada de consciência).