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C APÍTULO 2 A PARÓDIA DO TESTAMENTO AMOROSO


B. O EXÓRDIO
DO
PEQUENO
TESTAMENTO

B. O
EXÓRDIO
DO
PEQUENO
TESTAMENTO

No
exórdio
do
Pequeno
Testamento,
Villon
inscreve
a
sua
composição
no
interior
 da
sua
experiência
amorosa,
segundo
o
gênero
do
testamento
amoroso
da
época.
Depois
 de
 sua
 apresentação
 no
 papel
 de
 testador
 no
 início
 do
 Pequeno
 Testamento,
 a
 personagem
de
François
Villon
eclode
de
raiva
contra
a
sua
amada
na
segunda
estrofe.
 Interrompendo
a
frase
iniciada
na
primeira
estrofe
com
um
brusco
anacoluto,
o
testador
 afirma
a
sua
intenção
de
romper
o
serviço
amoroso:

 Neste
referido
momento
 Pelo
natal,
morta
estação,
 Quando
os
lobos
vivem
de
vento
 E
ficamos
na
habitação
 Pelo
frio,
junto
ao
tição,
 Me
deu
vontade
de
quebrar
 A
tão
amorosa
prisão
 Que
o
peito
soía
quebrantar263 Na
lírica
amorosa
da
época,
a
contemplação
da
dama
representa
o
nascimento
do
 sentimento
amoroso
do
poeta.
Reconhecendo
por
meio
do
olhar
a
sua
beleza,
o
poeta
se
 enamora.
Essa
cena
freqüentemente
acontece
na
primavera,
a
estação
do
renascimento,
 quando
 
 os
 amantes
 se
 enamoram
 ao
 som
 dos
 pássaros
 e
 das
 fontes,
 segundo
 o
 lugar
 comum
do
“lugar
ameno”
(locus
amoenus).
Em
um
poema
de
Bernard
de
Ventadourn,
a
 contemplação
da
amada
é
associada
à
natividade:
“Pois
parece
a
natividade
o
dia
em
que
 seus
olhos
espirituais
me
contemplam;porém
faz
ela
assim
tão
raras
vezes
comigo,
que
 um
dia
parece
cem”.264



Na
 Bela
 dama
 sem
 misericórdia,
 o
 carvão
 em
 brasa
 é
 utilizado
 como
 metáfora
 para
o
sentimento
do
jovem
amante
pela
sua
dama.265
Na
primeira
estrofe
do
Pequeno


Testamento,
a
natividade
e
o
carvão
em
chamas
são
retomados
para
descrever
uma
cena


de
desolação:
enquanto
os
lobos
agonizam
de
fome,
o
poeta
está
preso
dentro
de
casa
 







263

“En ce temps que j’ay dit devant/ Sur le Noël, morte saison/ Que le loups se vivent du vent/ Et qu’on se tient

en sa maison/ Pour le frimas, pres du tison/ Me vint ung vouloir de briser/ La tres amoureuse prison/ Qui faisoit mon cuer debriser” (VILLON, F. Le Testament Villon. I: texto, II: comentarios, Ed. Jean Rychner e Albert

Henry, Genebra, Droz, 1974, XI. Tradução nossa).

264 “C’aicel jorns me sembla Nadaus/ C’ab sos bels olhs espiritaus/ M’esgarda mas so fai tan len/ C’us sols dias me dura cen” (VENTADOURN, B. In: SPINA, S. Lírica trovadoresca, São Paulo, Edusp, 1991, p. 134). 265 “Qu’aprochier le feu du tyson” (CHARTIER , A., La belle dame sans mercy, XXII, v. 176).

87 para
se
proteger
do
frio
do
inverno;
aquecendo‐se
junto
à
lareira
por
volta
do
Natal,
ele
 evoca
a
“morta
estação”
que,
nos
“poemas
de
separação”
(congés
d’amour),
metaforiza
o
 fim
do
amor.266

 Na
exódio
do
Pequeno
Testamento,
o
testador
assume
a
personagem
do
“amante
 mártir”,
do
“amante
santo”
da
lírica
amorosa
do
ciclo
da
Bela
dama
sem
misericórdia,267 explorando
a
figura
da
hipérbole
nas
locuções
“quebrar
o
coração”,
“por
ela
morro”,
etc.
 A
 amada
 o
 seduzira
 por
 meio
 de
 “tão
 doce
 olhar
 e
 belo
 semblante”
 (v.
 26),
 segundo
 a
 referência
às
personificações
do
Romance
da
Rosa
“Doce
Olhar”
e
“Belo
Semblante”,
que
 foram
 retomadas
 pela
 poesia
 amorosa
 da
 época.268
Caracterizada
 como
 a
 protagonista


do
poema
de
Alain
Chartier,
a
dama
é
descrita
como
uma
mulher
indiferente
ao
colapso
 amoroso
do
poeta:269
 
 Todo
venceu­me
o
olhar
daquela
 Que
se
mostrou
traidora
e
dura:
 Sem
que
eu
haja
faltado
a
ela,
 Quer
e
ordena
que
eu
tenha
escura
 Morte,
e
que
cesse
a
minha
dura.
 Assim,
só
me
resta
fugir.
 Quer
partir
nossa
soldadura
 Sem
os
lamentos
meus
ouvir270O
poeta
não
está
em
luto,
como
o
testador
da
Confissão
e
Testamento
do
amante
 morto
de
dor
de
Pierre
de
Hauteville.
Mas
o
sofrimento
amoroso
do
poeta
é
tal
que
ele


decide
 romper
 o
 serviço
 amoroso:
 “Para
 esses
 perigos
 obviar/
 Creio
 que
 partir
 é
 o


melhor/
 Adeus!
 Para
 Angiers
 vou
 rumar”.271
O
 poeta
 decide
 exilar‐se
 em
 Angers
 para










266 Cf. La departie d’Amours en balades. In: D’ORLÉANS, C. Ballades et Rondeaux, tradução, apresentação e notas, Paris, Librairie Générale Française, 1992, p. 241).

267 “Prisonnier suis, d’Amour martir” (D’ORLÉANS, C. Op. cit., ballade 40, v. 33, p. 146) “Au fort martyr on me devra nommer/ Se Dieu d’Amour fait nuls amoureux saints” (Ibidem. ballade 10, v. 13, p. 80); “Des amoureux sera moult haut assis/ Comme martir et treshonnoré saint” (Ibid. ballade 27, v. 23-4, p. 118);

268

“Par le regart d’abusement” (La dame loyale en amour In: CHARTIER, A. et al., Op.cit., v. 620, p. 220) 269 VILLON, F. Op. cit., p. 62.

270 “Le regart de celle m’a prins/ Qui m’a esté felonne et dure/ Sans ce qu’en riens aye mesprins/ Veult et

ordonne que j’endure/ La mort et que plus je ne dure/ Si n’y voy secours que fouïr/ Rompre veult la vive souldure/ Sans mes piteux regretz ouïr” (VILLON, F. Op. cit., p. 62).

271 “Pour obvier a ses dangers/ Mon mieulx est je croy de partir/ A Dieu! Je m’en vois a Angers” (VILLON, F.

88

evitar
 o
 “perigo”
 de
 morrer
 (literalmente)
 de
 amor
 por
 causa
 da
 amada,272
como
 o


amante
 da
 Bela
 dama
 sem
 misericórdia,
 que
 foi
 incapaz
 de
 suportar
 as
 duras
 provas
 submetidas
pela
dama
ao
seu
serviço
amoroso.



Segundo
a
metáfora
do
amor
como
uma
prisão,273
o
poeta
afirma
que
decidiu
se


libertar
de
“tão
amorosa
prisão”.
O
rompimento
do
serviço
amoroso
é
um
lugar
comum
 da
 lírica
 cortês
 desde
 os
 trovadores
 provençais.
 Na
 canção
 de
 Bernart
 de
 Ventadorn
 iniciada
 por
 “Misericórdia
 está
 sem
 dúvida
 perdida”
 (Merces
 es
 perduta
 per
 ver),
 o
 amante
 rompe
 o
 serviço
 amoroso
 com
 sua
 dama
 sem
 misericórdia.274
No
 anônimo
 A


Dama
 leal
 no
 Amor,
 Bela
 dama
 é
 defendida
 diante
 do
 tribunal
 do
 amor
 por
 meio
 da


referência
 à
 sua
 lealdade
 a
 outro
 amante.275
Retomando
 esse
 tema
 do
 “outro
 amante”,


Villon
colérico
de
ódio
acusa‐a
de
traição,
afirmando
que
outro
amante
é
objeto
dos
seus
 “favores”.
Segundo
o
lugar
comum
do
exílio
como
remédio
ao
amor,
o
amante
afirma
que,
 traído,
só
lhe
resta
partir:
 
 Por
dura
que
a
partida
seja,
 Porém,
é
força
que
me
ponha
 E
julgue
o
que
a
razão
deseja,
 Pois
há
quem
dela
já
disponha;
 Jamais
o
arenque
de
Boulogne
 Teve
mais
sequioso
humor.
 E
há
bem
de
que
eu
me
envergonhe:
 







272 “Par elle meurs, les membres sains/ Au fort, je suis amant martyr/ Du nombre des amoureux saints” (“E em membros sãos, morro, um dos tantos/ amantes mártires a vir/ no rol dos amorosos santos”) (VILLON, F. Op. cit., p. 62).

273 “Au povre prisonier, ma dame/ Donnez l’aumosne de liesce/ (...) C’est par trop craindre et doubter blame/ Que si dure prison m’y blesce” (CHARTIER, A. La Belle Dame sans Mercy et les poésies lyriques, ediçao de Arthur Piaget, Genebra, Droz, 1949, Rondel XV, p. 57)

274 “Merces es perduta per ver/ Et eu non o saubi anc mai/ Car cilh qui plus en degr’aver/ No.n a ges; et on la querrai?/ A! can mal sembla qui la ve/ Qued aquest chaitiu deziron/ Que ja ses lois aura be/ Laisse morir que no l’aon// Pus ab midons no.m pot valer/ Precs ni merces ni.l dreihz qu’eu ai/ Ni a leis no ven a plazer/ Qu’eu l’am, ja mais no.lh o dirai/ Aissi.m part de leis e.m recre/ Mort m’a, e per mort li respon/ E vau m’en, pus ilh no.m rete/ Chaitius , en issilh, no sai on// Tristans, ges no.n auretz de me/ Qu’eu me’n vau, chaitius, no sai on/ De chantar me gic e.m recre/ E de joi e d’amor m’escon” (Trad.: “Não há dúvida, a misericórdia está perdida – e eu sempre o ignorei; se nela, onde havia razões para encontrá-la, não encontro, onde a buscarei? Ah! Como é difícil crer, depois que a viu, ser ela capaz de deixar morrer sem recurso a este pobre cativo que sem ela não pode viver! Desde que com minha dama não me podem valer as minhas solicitações, nem sua misericórdia, tampouco os direitos que tenho, nem lhe apraz o amor que lhe voto, mais nada lhe direi. E a ser assim, separo-me dela e ao seu amor renuncio; matou-me, e como morto lhe respondo; visto que ela não me detém, irei, miserável, em exílio, pelo mundo e sem rumo. Tristão, não tereis mais nada de mim, porque me vou desgraçado, não sei para onde; não mais haverei de cantar, à alegria e ao amor renunciarei” (VENTADORN, B. V, 6-8. In: SPINA, S. Lírica

trovadoresca, São Paulo, Edusp, 1991, p. 147).

89

Queira
Deus
ouvir
o
meu
clamor276

Na
 conclusão
 dessa
 estrofe,
 o
 poeta
 injustiçado
 e
 traído
 amaldiçoa
 a
 amada,
 invocando
 a
 justiça
 divina.
 Ele
 cita
 as
 palavras
 de
 Jó
 –
 exemplo
 do
 homem
 justo
 que,
 depois
 de
 sofrer
 as
 duras
 provas
 da
 Fortuna,
 foi
 recompensado
 e
 os
 seus
 inimigos
 punidos.277
No
 testamento
 amoroso
 da
 época,
 o
 legado
 do
 coração
 para
 a
 amada
 é


metáfora
 da
 renúncia
 do
 amor
 pelo
 poeta
 depois
 da
 morte
 da
 amada.
 No
 início
 dos
 legados
 do
 Pequeno
 Testamento,
 o
 poeta
 deixa
 o
 seu
 coração
 para
 a
 amada
 antes
 de
 partir
para
o
exílio,
segundo
o
lugar
comum
da
renúncia
ao
amor.278




 


C. OS
LEGADOS
BURLESCOS

A
 paródia
 do
 gênero
 do
 testamento
 é
 realizada
 por
 diversos
 poemas
 burlescos
 compostos
em
vernáculo
desde
o
séc.
XII.
Ela
é
muito
comum
nos
testamentos
burlescos
 feitos
 por
 animais,
 como,
 por
 exemplo,
 pelo
 porco,
 pelo
 asno,
 pela
 mula,
 etc.
 No
 “Testamento
 do
 Asno”
 (Testament
 de
 l’âne)
 de
 Rutebeuf,
 o
 asno
 deixa
 um
 saco
 de
 dinheiro
para
o
bispo.279
Rutebeuf
satiriza
a
avareza
dos
bispos,
que
constituía
um
lugar


comum
 na
 época.
 Villon
 retoma
 a
 sátira
 contra
 avareza
 como
 o
 vício
 de
 servidão
 ao
 dinheiro
realizada,
por
exemplo,
no
Romance
da
Rosa.280
A
crítica
à
avareza
é
um
lugar


comum
das
paródias
do
testamentos
na
época,
pois
esse
gênero
caracteriza
os
legatários
 como
 pessoas
 interessadas
 pelos
 bens
 do
 testador,
 cuja
 generosidade
 é
 amplificada
 pelos
diversos
bens
legados.



Mais
do
que
qualquer
outro
testamento
poético
da
época,
os
dois
testamentos
de
 Villon
imitam
a
estrutura
de
testamentos
reais
da
época.
Como
demonstrou
Van
Zoest,
 







276 “Combien que le depart me soit/ Dur si faut il que je l’eslongne/ Comme mon povre sens conçoit/ Autre que

moy est en quelongne/ Dont oncques soret de Boulonge/ Ne fut plus alteré d’umeur/ C’est pour moy piteuse besongne/ Dieu en vueille ouïr ma clameur” (VILLON, F. Op. cit. p. 64).

277 “Domine, exaudi orationem meam, et clamor meus ad te veniat” (apud. VILLON, F., Œuvres. Edição Louis Thuasne, Paris, A. Picard, 1923, t.II, p. 11).

278

“Item, a celle que j’ay dit/ Qui si durement m’a chassé/ Que je suis de joye interdit/ Et de tout plaisir

dechassé/ Je lesse mon cueur enchassé/ Palle, piteux, mort et transy/ Elle m’a ce mal pourchassé/ Mais Dieu lui en face mercy!” (VILLON, F. Op. cit. p. 66).

279

RUTEBEUF, Testament de l’Asne. In : Oeuvres complètes de Rutebeuf, publicado por Edmond Faral e Julia Bastin,Paris, Picard, 1977, p. 104-113.

280 GUILLAUME DE LORRIS e JEAN DE MEUN, Le Roman de la Rose, Paris, Librairie Générale Française, 1992, v. 5067-5226).