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C APITULO 4 A AUTORIDADE POÉTICA DE VILLON

A. O NOME
DO
AUTOR

II. AS
IMITAÇÕES
DA
POESIA
DE
VILLON


“Maistre
Françoys
Villon
jadis,
 a
farcer
se
delectoit”
 (Éloi
d’Amerval,
Grant
Deablerie)
 
 Neste
item,
estudamos
a
recepção
do
corpo
poético
atribuído
a
François
Villon
no
 final
 do
 séc.
 XV
 e
 na
 primeira
 metade
 do
 séc.
 XVI
 na
 França.
 Segundo
 a
 concepção
 de
 autor
como
autoridade
no
gênero,
a
poesia
de
Villon
se
tornou
um
modelo
poético.
Os
 testamentos
 e
 as
 formas
 fixas
 esparsas
 foram
 imitadas
 não
 apenas
 por
 diversas
 composições
burlescas,
como
o
Testamento
de
Pierre
Pathelin,
As
Refeições
Gratuitas
de


François
 Villon
 e
 seus
 companheiros,
 etc.,
 mas
 também
 por
 diversos
 poetas
 líricos
 da


época.
 
 


A. O
NOME
DO
AUTOR


Na
 conferência
 intitulada
 O
que
é
um
autor?
 (1969),
 Michel
 Foucault
 realizou
 a
 arqueologia
 da
 noção
 moderna
 de
 “autor”
 como
 criador
 da
 obra
 e
 garantia
 da
 sua
 autenticidade.
Quando
foram
editadas
as
regras
estritas
sobre
os
direitos
do
autor,
sobre
 as
 relações
 entre
 autores
 e
 editores
 e
 sobre
 os
 diretos
 de
 reprodução
 no
 final
 do
 séc.
 XVIII
 e
 início
 do
 XIX,
 a
 obra
 passa
 a
 constituir
 um
 produto,
 um
 bem,
 uma
 coisa.
 É
 indissociável
 dessa
 concepção
 de
 autor
 a
 transformação
 da
 obra
 em
 uma
 mercadoria
 cuja
“propriedade
intelectual”
pertence
ao
seu
autor
empírico.532



Antes
 de
 surgir
 essa
 noção
 moderna
 de
 “autor”,
 o
 nome
 do
 autor
 desempenha
 uma
função
de
classificar
um
certo
modo
de
discurso,
distinguindo‐o
de
outros
tipos
de
 discurso
destituídos
da
“função
do
autor”.533
Mas
os
discursos
dotados
dessa
função
não










532

FOUCAULT, M. “Qu'est-ce qu'un auteur ?” (1969), in Dits et Écrits, 1954-1988, Paris, Gallimard, 1994, p. 789.

533 “Enfin, le nom d'auteur fonctionne pour caractériser un certain mode d'être du discours: le fait, pour un discours, d'avoir un nom d'auteur, le fait que l'on puisse dire 'ceci a été écrit par un tel', ou 'tel en est l'auteur', indique que ce discours n'est pas une parole quotidienne, indifférente, une parole qui s'en va, qui flotte et passe, une parole immédiatement consomable, mais qu'il s'agit d'une parole qui doit être reçue sur un certain mode et qui doit, dans une culture donnée, recevoir un certain statut. Le nom de l'auteur n'est pas situé dans l'état civil des hommes, il n'est pas non plus situé dans la fiction de l'oeuvre, il est situé dans la rupture qui instaure un certain

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são
 os
 mesmos
 em
 todas
 as
 sociedades
 nem
 permanecem
 constantes
 ao
 longo
 da
 história,
 mas
 dependem
 das
 concepções
 próprias
 de
 autor,
 obra
 e
 público
 de
 uma
 determinada
 organização
 social.
 Como
 afirma
 o
 filósofo
 francês:
 "A
 função
 do
 autor
 é,
 assim,
característica
do
modo
de
existência,
de
circulação
e
de
funcionamento
de
certos
 discursos
no
interior
de
uma
sociedade”.534



Em
Autor
(1993),
João
Adolfo
Hansen
retoma
essa
conferência
de
Michel
Foucault,
 procurando
 distinguir
 diferentes
 concepções
 de
 autor
 encontradas
 desde
 a
 antigüidade.535
Ele
 chama
 a
 atenção
 para
 o
 papel
 decisivo
 da
 retórica
 na
 definição
 do


que
 é
 o
 autor
 nas
 organizações
 sociais
 anteriores
 à
 revolução
 burguesa.
 Desde
 a
 antigüidade
greco‐latina,
o
autor
designa
uma
“autoridade”
(auctoritas)
no
seu
gênero,
 segundo
 a
 própria
 raiz
 do
 termo.
 Na
 Instituição
 Oratória
 (95
 d.c.),
 por
 exemplo,
 Quintiliano
 qualifica
 cada
 autor
 do
 gênero
 elegíaco
 por
 meio
 da
 suas
 características
 estilísticas:
Ovídio
é
lascivo,
Tibulo
é
terno
e
elegante,
Catulo
é
erudito
e
Galo
é
duro.536

Não
são
os
homens
eles
mesmos
que
são
considerados
como
tais,
mas
a
marca
de
sua
 “autoridade”
na
própria
tessitura
da
elegia,
que
é,
assim,
caracterizada
pela
elocução
de
 cada
 poeta.
 Portanto,
 o
 nome
 do
 autor
 é
 apenas
 uma
 “etiqueta”
 com
 a
 função
 classificatória
de
agrupar
composições
pertencentes
ao
mesmo
gênero.


Essa
 concepção
 de
 autor
 remonta
 aos
 filólogos
 alexandrinos
 que
 reuniram
 os
 autores
 gregos
 nas
 primeiras
 bibliotecas
 antigas.
 Nos
 elencos
 de
 autores,
 o
 autor
 designava
 a
 excelência
 em
 um
 determinado
 gênero,
 sendo
 considerado
 como
 um
 modelo
 digno
 de
 ser
 imitado.
 Nesse
 sentido,
 o
 autor
 é
 ele
 mesmo
 um
 gênero
 que,
 composto
 conforme
 os
 preceitos
 da
 arte,
 representa
 uma
 posição
 socialmente
 autorizada.
Essa
concepção
antiga
de
autor
também
pode
ser
encontrada
nos
elencos
de
 








groupe de discours et son mode d'être singulier. On pourrait dire par conséquent qu'il y a dans une civilisation comme la nôtre un certain nombre de discours qui sont pourvus de la fonction 'auteur', tandis que d'autres en sont depourvus” (“O nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso: o fato, para um discurso, de ter um nome de autor, o fato que se possa dizer ‘este foi escrito por um tal’ ou ‘tal é o autor dele’ indica que este discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que parte, que flutua e que passa, uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de um certo modo e que deve, em uma dada cultura, receber um certo estatuto. O nome do autor não está situado no estado civil dos homens, nem tampouco está situado na ficção da obra, ele está situado na ruptura que instaura um certo grupo de discurso e o seu modo de ser singular. Poder-se-ia dizer, conseqüentemente, que há em uma civilização como a nossa um certo número de discursos que são providos da função do autor, enquanto outros são desprovidos”) (FOUCAULT, Ibidem).

534 “La fonction auteur est donc caracteristique du mode d'existence, de circulation et de fonctionnement de certains discours à l'intérieur d'une société” (FOUCAULT, M. Ibid.).

535 HANSEN, J. A. “Autor”. In: JOBIM, José Luís. (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro, Imago, 1993, 11- 43.

164

autores
das
gramáticas
ensinadas
nas
universidades
medievais,
onde
os
autores
latinos
 são
considerados
como
um
“tesouro”
cuja
memória
é
guardada
pelos
clérigos.



Nessa
 época,
 o
 conhecimento
 dos
 autores
 antigos
 funda‐se
 essencialmente
 no
 conhecimento
 do
 latim.
 A
 “tradução
 em
 vernáculo”
 (mise
 en
 roman)
 de
 diversas
 composições
 latinas
 é
 desde
 o
 séc.
 XII
 (quando
 começam
 a
 surgir
 as
 primeiras
 obras
 compostas
 em
 vernáculo)
 realizada
 pelos
 clérigos
 com
 o
 objetivo
 de
 perpetuar
 a
 herança
recebida
dos
autores
antigos,
segundo
o
lugar
comum
da
“transmissão
do
saber”
 (translatio
 studii).
 O
 Romance
 de
 Tebas,
 por
 exemplo,
 é
 tradução
 em
 vernáculo
 da


Tebaida
 de
 Estácio.
 No
 exórdio
 desse
 Romance,
 a
 tradução
 é
 apresentada
 como
 a


transmissão
de
um
saber
recebido
dos
autores
antigos,
como
Platão,
Homero,
Virgílio
e

 Cícero:
 
 O
sábio
não
deve
dissimular
 Mas
o
saber
deve
sempre
mostrar
 Pois
quando
tiver
do
século
partido
 Ele
não
será
jamais
esquecido
 Se
Homero
e
Platão
 Virgílio
e
Cicerão
 Tivessem
dissimulado
o
saber
 Nada
haveria
deles
pra
dizer
 Também
não
quero
o
saber
omitir
 Nem
minha
sabedoria
engolir
 Pois
me
agrada
contar
 O
digno
de
lembrar537 

 Nesse
contexto,
a
“tradução”
não
deve
ser
entendida
como
uma
atividade
de
mera
 transposição
 do
 sentido
 da
 composição
 “original”,
 mas
 como
 uma
 das
 modalidades
 de
 imitação
 das
 autoridades
 antigas.
 A
 “imitação”
 era
 considerada
 como
 o
 processo
 de
 invenção
poética
que,
envolvendo
a
escolha
dos
modelos
do
gênero
e
das
partes
do
seu
 discurso,
procedia
à
sua
seleção,
à
sua
interpretação
e
à
sua
amplificação
com
base
nos
 preceitos
retóricos
que
orientavam
a
invenção
poética
na
época.











537 “Qui sages est nel deit celer/ mais pur ceo deit son sen monstrer/ que quant serra del siecle allez/en seit puis toz jours remembrez/ si danz Homers et danz Platons/ et Virgiles et Citherons/ lor sapience celasant/ ja ne fust d’els parlé avant/ por ce ne voil mon sen taisir/ ma sapience retenir/ ainz me delite a conter/ chose digne de remembrer” (LE ROMAN DE THÈBES. Tradução, apresentação e notas de Francine Mora-Lebrun, Paris, Librairie Générale Française, 1995, v. 1-12, p. 44-45. Tradução nossa).

165

Depois
 de
 estudar
 o
 sentido
 do
 nome
 do
 autor
 “François
 Villon”
 nas
 primeiras
 edições
de
seu
corpo
poético,
veremos
na
última
parte
deste
item
como,
no
séc.
XV,
essa
 concepção
 de
 imitação
 não
 se
 reduzirá
 mais
 aos
 autores
 antigos,
 mas
 também
 se
 aplicará
aos
autores
em
vernáculo,
como
demonstram
as
imitações
de
Villon
no
fim
do
 séc.
XV
e
na
primeira
metade
do
séc.
XVI.



 


B. A
ETIQUETA
“FRANÇOIS
VILLON”


Como
 é
 comum
 nas
 edições
 antigas,
 a
 edição
 Levet
 é
 uma
 coletânea
 de
 composições
 poéticas.
 Na
 primeira
 edição
 do
 corpo
 poético
 atribuído
 a
 Villon,
 ele
 foi
 reunido
 com
 dois
 outros
 testamentos
 burlescos,
 uma
 farsa
 e
 uma
 arte
 de
 segunda
 retórica.538
Villon
foi
publicado
por
Levet
com
a
Farsa
de
Pierre
Pathelin,
o
Testamento


de
 Testa
 Vinhos,
 rei
 dos
 bêbados,
 o
 Testamento
 de
 Barreiz,
 capitão
 dos
 Bretões
 e
 um


manual
 de
 retórica
 chamado
 Arte
 Retórica
 para
 se
 rimar
 vários
 tipos
 de
 rima.
 Em
 sua
 edição,
todas
as
composições
pertencem
ao
teatro
burlesco
da
época,
exceto
o
manual
 de
retórica.



Villon
 foi
 freqüentemente
 incluído
 em
 coletâneas
 de
 composições
 burlescas
 da
 época.
 Além
 da
 edição
 Levet,
 a
 edição
 Galliot
 Pré
 (1532)
 publicou‐o
 com
 outras
 três
 composições
burlescas:
As
Refeições
Gratuitas
de
François
Villon
e
seus
companheiros,
O


Monólogo
do
franco
arqueiro
de
Baignollet
com
o
seu
epitáfio
e
O
Diálogo
dos
Senhores
de
 Mallepaye
 e
 de
 Baillevent.539
O
 Monólogo
 do
 franco
 arqueiro
 de
 Baignollet
 com
 o
 seu


epitáfio
é
um
monólogo
dramático
da
época
representando
o
“tipo
do
fanfarrão
valentão,


intrépido
 soldado
 que,
 como
 mais
 tarde
 Panurge,
 não
 tem
 medo
 de
 nada,
 exceto
 do










538 Anotado sob a forma de um índice no exemplar da BNF estão os títulos destas obras reunidas na coletânea de Levet: “Pièces de ce recueil: 1) Pierre Pathelin, 1490; 2) Villon, 1489; 3) Testament de Barreiz, capitaine de

Bretons; 4) Testament de Taste Vins, roi de Pions; 5) L’art de Rhétorique pour rimer en plusiers sortes de Rimes”) (“Peças dessa coletânea: 1) Pierre Pathelin, 1490; 2) Villon, 1489; 3) Testamento de Barreiz, capitão dos Bretons; 4) Testamento de Testa Vinhos, rei dos bêbados; 5) Arte Retórica para se rimar vários tipos de rima”) (VILLON, F. Le grant testament Villon et le petit. Son codicile. Le jargon et ses balades. Edição de

Pierre Levet, Paris, 1489).

539 Les Oeuvres de Maistre François Villon; Les Repues Franches de François Villon et ses compagnons; Le

monologue de Franc Archer de Baignollet, avec son epitaphe, Le dialogue des Messieurs de Mallapaye et de Baillevant (VILLON, F. Les Oeuvres de Maistre Françoys Villon. Edição de Galliot Du Pré, Paris, 1532).