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CAPÍTULO 4 – CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E A CONTEMPORANEIDADE

4.1 EXPLICAÇÕES FILOSÓFICAS, SOCIOLÓGICAS E PSICOLÓGICAS SOBRE

4.1.1 O existencialismo de Blaise Pascal

Blaise Pascal (1623-1662) admite o homem como centro ou objeto do pensamento filosófico por excelência. Entretanto, em uma das frases célebres do filósofo, é possível compreender a natureza humana por completo: “O homem não passa de um caniço, o mais frágil da natureza; mas é um caniço que pensa” (PASCAL apud FISICHELLA, 2006, p. 114). Percebe-se, pelo conceito de Pascal, que o homem possui uma natureza paradoxal, ou seja, ao mesmo tempo em que possui uma

fragilidade, possui também uma fortaleza. Esta se relaciona à capacidade racional. Aquela, à marca do nada ou da miséria ontológica que todo o homem carrega consigo. Nesse sentido, é pela capacidade de pensar que o homem se reconhece mísero na vastidão do universo. Contudo, mesmo utilizando sua grandeza, jamais conseguirá compreender a si próprio e nem encontrar um significado duradouro para sua existência. Pascal denomina isso de realismo trágico. Tal fato ocorre porque o homem se sente como uma criatura despojada de sua posição. Assim, vive buscando, de diversas maneiras, reencontrar-se, curar sua miséria e a morte, mas sem sucesso. Uma vez que não consegue preencher as lacunas existentes em seu ser, procura sempre um meio de esquecer seus problemas, a fim de buscar a felicidade. A palavra utilizada por Pascal para denominar esse fenômeno é

divertissemant que consiste em o homem criar estratégias para tentar fugir de sua

condição de miséria. Entretanto, Pascal, citado por Reale e Antiseri (2006a) admite que o divertissemant, da mesma forma que promove essa fuga de si, também impede o homem de pensar que é uma condição essencial para ele se reconhecer mísero.

É interessante pensar na discussão feita por Gilliard (2009). Nela o autor faz uma releitura sobre a condição miserável do homem preconizado por Pascal, acrescentando que na verdade o homem para suprir seu vazio, busca reconhecer-se importante para si e, principalmente, para os outros, anda vacilante no

divertissemant. Em suma, ele vive numa busca incessante pelo “eu verdadeiro”.

Durante muito tempo os filósofos clássicos e os cientistas modernos ocuparam-se em valorizar o estudo do cosmo, seus elementos e objetos materiais, tentando entender seu funcionamento e suas propriedades. Isso teve notoriedade e importância. Mas, de certa forma, não trazia o resultado esperado ou deixava lacunas sobre a investigação pretendida. Um dos primeiros, no período moderno da filosofia a observar essa deficiência e a tentar buscar as razões para isso, segundo Reale e Antiseri (2006a), foi Immanuel Kant (1724-1804). Em sua obra Crítica da

razão pura (2010), o filósofo inova ao estabelecer aquilo que chamou de “Virada

copernicana”. Assim como para Copérnico o fato admitido pela Igreja de que o sol girava em torno da Terra (héliocentrismo) não explicava certos fenômenos observáveis.

Para Kant o fato de o homem girar em torno do objeto tentando achar explicações, também ocasionava o mesmo problema. Dessa forma, para Kant a busca do conhecimento não se baseia em o homem procurar entender o objeto, mas é este que gira em torno do universo do pensamento categórico do homem se adequando a ele. A “virada copernicana” de Kant serve para entendermos a importância que se passou a dar ao ser que pensa em detrimento ao objeto que é pensado (REALE e ANTISERI, 2006a).

Nota-se que, de certa forma, as teorias de Blaise Pascal e Immanuel Kant aproximam-se. Isso porque o primeiro enfatiza a racionalidade do homem colocando-o como centro do pensamento, tanto que por meio dessa racionalidade, pode-se reconhecer mísero e, por esse motivo, lança-se na busca por uma identidade verdadeira que o satisfaça, porém sem nunca conseguir. No mesmo sentido, para Kant o homem também constitui o centro do pensamento filosófico e, por isso, é necessário voltar à ciência para o conhecimento não do objeto, mas desse ser pensante, buscando entendê-lo em todos os sentidos. No entanto, pode- se afirmar, com toda propriedade, que essa busca é infinita.

Queremos, a partir das teorias de Blaise Pascal e das contribuições de Immanuel Kant, caracterizar o protagonista de A ceia dominicana, Graciano Daemon. Observamos que sua trajetória dentro do romance é marcada por problemas existenciais. Inicialmente ele, como narrador de suas aventuras e desventuras, conta a derrocada do seu casamento ainda na noite de núpcias. Ele afirma ter sido enganado por Alice, sua noiva, que até aquele momento fingia ser virgem, quando na verdade o traía. Diante deste fato, sua condição é de desespero e de angústia, perda de estabilidade emocional, perda do rumo na/da vida e perda de sua própria identidade. Percebe-se que essa situação o leva a sair, chegando à praia de Manguinhos (ES). O começo da primeira rapsódia (Neves, 2008, p. 21) é bem esclarecedor:

Cheguei a Manguinhos no meio da tarde de sábado, vindo naufrágio do meu casamento. Nem era arenosa Manguinhos o meu destino: não tinha destino. Na forquilha da estrada, ao toque de um impulso, desviei à esquerda, como bem poderia ter seguido em frente em direção ao polo sul. O que provocou esse impulso? Talvez o dedo de um deus (ou uma deusa); talvez um sopro de viés do vento nordeste; talvez o vislumbre daquela prainha ali a um

passo, traquila e mansa, de alvas areias e suaves marolas. E eu trazia enferma a alma e precisava de um bom lugar onde idônio, pudesse, e aprazível, melhor cuidar, e circunscrito, de sua saúde.

Podemos notar que nesse trecho, Graciano revela sua condição de desorientado. Ele simplesmente deixa a pousada onde passava as núpcias, toma seu carro e sai em busca de algo que pudesse confortar sua alma enferma. Ele encontra na praia de Manguinhos um escape, uma vez que sua aparência significou tranquilidade e mansidão em face do turbilhão que sua vida estava enfrentando.

Embora Graciano estivesse passando por um momento terrível, a condição de narrador e protagonista de sua própria história, faz-nos compreender que ele é consciente de sua miséria, de suas fragilidades. Mas, ao mesmo tempo, essa mesma consciência que denuncia seu estado de fraqueza humana o faz também reconhecer-se forte, pois assume a iniciativa de querer superar as lamúrias, por meio da busca de novas experiências de vida.

Essa força racional o capacita partir em busca de um triunfo, de um rumo para sua vida, da reconstrução de sua identidade fragmentada. Isso acontece de forma instintiva por meio daquilo que Pascal chama de divertissemant. Podemos notar que é no ambiente ameno da praia de Manguinhos que Graciano procura encontrar a tranquilidade para curar suas angústias. Lá ele se depara com pessoas inusitadas e um ambiente rico em festividades orgíacas, especialmente as que aconteciam na casa do anfitrião Domingos Cani. Ele se lançou nessas aventuras e desventuras, que se mostraram recheadas de novidades sem precedentes, sem limites e sem reservas, a fim de esquecer seus problemas. Na verdade, o divertissemant funcionou como uma “válvula de escape”. Contudo, no decorrer do romance, ele traz à tona as lembranças do seu casamento naufragado, mostrando o estado miserável que ainda se encontrava seu ser.

A busca pela satisfação humana é constante e inatingível e, é isso que Gilliard (2009), ao fazer uma releitura de Pascal quis mostrar, quando disse que o homem vive uma busca incessante pelo “verdadeiro eu”. Graciano é caracterizado por essa busca.