• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – A CEIA DOMINICANA: SUAS CARACTERÍSTICAS E A

2.1 PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS E O PROCESSO NARRATIVO

2.2.1 Graciano Daemon: o centauro

Centauro é um mito grego que significa “monstro fabuloso”. Etimologicamente a palavra tem duas versões: ΚένΤαυρς (Kentauros) que significa “matadouro de touros” e ΚένΤαυρІ que significa “guardião do gado”. Esses dois sentidos estão intrinsecamente ligados à existência de uma natureza dual do ser mitológico. O centauro tem o dorso e a cabeça humanos e o corpo de um cavalo (RINK e CAPISTRANO, 2009). Essa criatura mítica é considerada subversiva em relação ao comportamento civilizado, sendo associado à permissividade sexual e à violência (WILLIS, 2007). Dessa forma, para a psicologia, o centauro é uma representação do homem, preso às injunções dos próprios instintos. Vive na dualidade bicho-homem

como escravo das sensações inferiores e preso aos impulsos animalescos do próprio corpo.

Queremos mostrar que essas características sobre o centauro são as mesmas que Martinelli Filho atribui a Graciano no romance As mãos no fogo, no Poema Graciano e finalmente em A ceia dominicana. Nesse sentido, Graciano é um ser dual, noivo em As mãos no fogo, porém dividido entre Júlia e Débora. Igualmente em A ceia

dominicana, após o naufrágio matrimonial com Alice, permaneceu clivado entre duas

mulheres: Eugênia e Fausta. Percebe-se que Graciano vive impulsionado pelos seus instintos, por isso não consegue controlar seu próprio destino. As decisões que toma são em suma desajustadas e incertas. Martinelli Filho justifica essas atitudes ligando-o ao centauro, por exemplo, em As mãos no fogo faz a relação entre o verso da epígrafe10 com a imagem do sagitário, um homem de “dois corações” (NEVES, 1983, p. 99). No Poema Graciano, é possível encontrar um trecho que liga a natureza dual de Graciano e, sustenta a relação dela na trilogia: “Mas você, alfa estrela do centauro, onde está você?” (NEVES, 1982, p. 74). Finalmente, pretendemos focar no resgate do arquétipo do centauro em A ceia dominicana.

No Poema Graciano, encontramos o seguinte trecho: “Ontem, descendo das montanhas, seres dúplices/éramos tão centauros, cúmplices/de nossos músculos, servos de nossos nervos [...]” (NEVES, 1982, p. 78). Esse mesmo trecho pode ser encontrado em A ceia dominicana (NEVES, 2008, p. 144) e é utilizado por Graciano para revelar à Petúnia seu signo. Ao compreender o signo de Graciano, Petúnia revela que, embora seja de escorpião, sagitário é seu signo ascendente.

Graciano caminha com Petúnia, enquanto dialogam sobre assuntos ligados à sexualidade, fazendo versos. Em um deles faz menção ao poema de Jorge de Lima. Vejamos, primeiramente o poema de Lima (1958, p.639) – Invenção de Orfeu – Canto primeiro XVIII:

Éguas vieram, à tarde, perseguidas, Depositaram bostas sob as vides. Logo após borboletas vespertinas, gordas e veludosas como urtigas sugar vieram o estêrco fumegante. Se as vísseis, vós diríeis que o composto

das asas e dos restos eram flores. Porque parecem sexos; nesse instante, os mais belos centauros do auto empíreo, pelas pétalas desceram atraídos,

e agora debruçados formam círculos; depois as beijam como beijam lírios.

Esses foram os versos intertextuais de Graciano: “Por fim lá do alto do morro desceram centauros e acharam que fossem buquês de flores aquelas placas de bosta cobertas de asas de borboletas” (NEVES, 2008, p. 159). Porém, ainda encontramos resquícios do poema de Lima, quando Graciano diz: “Enormes tortas de esterco-a que só falava uma cobertura de asas de borboleta – adornavam as escandidas areias” (NEVES, 2008, p. 239). Fazendo uma comparação entre o poema de Lima e a intertextualidade, percebe-se a ironia empregada por, Neves (2008, p. 159) tanto que Graciano declara:

O poema é todo uma algavaria. Um desvario de poesia apocalíptica. Uma rajada de estrofes sem começo nem fim. Um dicionário do absurdo. A maior enumeração caótica já posta em verso. Um monstruoso enigma gerado por um poema enlouquecido ou endemoniado. A poesia como mistério levada à última potência.

Embora Graciano tenha brincado com os versos da Invenção de Orfeu utilizando uma linguagem metafórica, Lima escreve que muitas borboletas desceram para sugar o esterco e o faziam com tal intensidade que o composto visual da cena parecia flores, sexo. Com isso, atraíam os centauros, criaturas subversivas, que se deliciavam em torno daquela cena.

Não há dúvidas que tenha havido intencionalidade de Neves em, mais de uma vez, associar Graciano ao centauro, pois o protagonista ao mesmo tempo em que subverte o poema, também se assemelha à criatura monstruosa que não consegue controlar seus instintos sociais e sexuais. Assim, ele é o centauro que não mede as consequências. Atraído pelas aparências, delicia-se com cada momento de sexualidade. Quando Petúnia pergunta a Graciano se esse é o tipo de poesia que ele gosta, ele responde sim, ou seja, faz parte de sua natureza subverter a realidade.

Vejamos um trecho em que as atitudes e sentimentos de Graciano se assemelham a uma das narrativas sobre o mito: após Graciano falhar sexualmente com Eugênia e fugir da casa dela desolado, senta-se em um lugar rústico onde conversa com Cristácia e reclama o incômodo que sente com seu órgão genital, quando de repente começa a chover, então diz: “Padeci, imóvel, ali, sob a injúria da chuva, a miserimônia de ensopar-me todo, da cabeça aos pés, enquanto os panos aderiam- me ao corpo como a túnica do centauro ao corpo de Hércules” (NEVES, 2008, p. 268).

Na citação, Graciano se compara a uma situação que envolve o mito de Hércules ou Heráclito e o mito do centauro, em especial Nesso. Nessa narrativa, Hércules após ter vencido as doze provas empostas por Euristeu, foi para Calidon, onde se casou com Djanira, filha do rei Eneu. Porém, para conseguir a mão dela, lutou com o deus- rio Aquelôo, pretendente despresado por Djanira. Depois da vitória, Hércules e sua amada foram para Tráquis, local onde ele vivia. Ao passarem pelo rio Eveno, um centauro chamado Nesso, ofereceu-se para atravessar os viajantes em troca de uma moeda. Hércules recusou. Mas, ele insistiu e levou Djanira em seus ombros. No percurso, Nesso não resistiu à beleza da mulher e a atacou. Algumas lendas contam que Nesso foi morto com uma flecha às costas lançada por Hércules. Outras, que morreu esmagado pelos braços do marido de Djanira.

Mostramos que Graciano pode ser comparado ao centauro, pois comporta duas naturezas: uma equilibrada, outra desequilibrada. Nota-se que, assim como o centauro, Nesso deseja Djanira ardentemente e utiliza meios de convencimento para se aproximar dela, como oferecer a travessia do rio como uma gentileza. Graciano também deseja Eugênia de forma incontrolável, e deseja instintivamente que ela seda aos seus caprichos: “[...] Nesse momento meu pensamento relembrou-se de Eugênia, que na primeira esquina poderia vir a mim restituída, presenteando-se a mim, abrindo-me portas e janelas do seu divino corpo” (NEVES, 2008, p. 139). Em outra passagem: “Mal podia crer que Sant'Ana enfim me atendera o primeiro pedido, fazendo-me achar a amena Eugênia” (NEVES, 2008, p. 240). Outro detalhe que podemos frisar foi o fato de Djanira aceitar os apelos do centauro, atravessando o rio em seus ombros. Da mesma forma, Eugênia aceitou, pois consentiu que Graciano (NEVES, 2008, p. 241) se aproximasse dela: “Mas, na verdade, quem achara quem?

Entendi que Eugênia, então, é que me espiara durante todo o lapso do tempo [...] cercando, por ela mesma, o momento de, propícia, acometer”.

Assim como o centauro Nesso, em um ato instintivo de loucura, percebe-se que Graciano não perde a oportunidade a ele concedida: viver um momento de prazer carnal com Eugênia. Percebe-se como ele se aproveita daquele momento de loucura sexual consentida. No entanto, no apogeu do instante, o protagonista falha sexualmente. Como o centauro Nesso, que não conseguir concretizar sua loucura e morreu espremido pelos fortes braços do Herói Grego, Graciano foi mal sucedido em seu intento. Igualmente a Nesso, Graciano sente-se fracassado e, por fim, espremido por seu próprio corpo que se nega a concretizar o seu mais ávido prazer sexual.