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Expansão do poder punitivo no sistema processual penal

Diante dos argumentos trazidos a tona até o momento, nota-se que o processo penal assumiu, em sua grande parte, um viés punitivista, quando na verdade, em observância aos princípios norteadores, deveria assumir uma postura mais garantista. Seria necessário que o sistema judiciário se detivesse em aplicar com maior “humanismo” a lei. Jorge de Figueiredo Dias, doutrinador português, em 1972 possuía um posicionamento no qual já expressava sua aflição com relação às condutas punitivas do legislador, pois ressaltou:

Importa que o legislador tome verdadeiramente a sério a imposição de só colocar sob ameaça da pena aquelas condutas que impedem ou põem em perigo, de forma intolerável, a livre realização da personalidade ética do homem na comunidade em que vive. Importa, quero eu dizer, que lute com todas as forças contra a sedução de uma tão inconveniente quanto perigosa “inflacção incriminatória”, de modo a cumprir o programa que WERNER MAAIHOFER tão justamente caracteriza ao afirmar que o direto penal só deve intervir como “ultima ratio” da política social.114(grifos do autor)

No Brasil, o advento da Lei n. 12.403/11 trouxe diversas outras medidas cautelares, para que a prisão preventiva não viesse a se tornar a primeira opção, e sim, a última. Como asseverou o doutrinador português, o qual ressaltou que o sistema penal, pensa-se aqui no sentido de sistema carcerário, deve ser a ultima ratio para qualquer agente.

Ocorre que hoje, como já fora visto, o número de presos provisórios está quase igualando ao número de presos que estão cumprindo suas sentenças já transitadas em julgado. Evidente está que é necessária a devida inversão desse fator encarcerador chamado por Maria Lúcia Karam de expansão do poder punitivo, para quem:

114

DIAS, Jorge de Figueiredo. A reforma do direito penal português: princípios e orientações fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1972. p. 39

A efetiva supremacia dos princípios e normas inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, a efetiva concretização dos direitos fundamentais, a realização dos fins do Estado de direito democrático requerem a urgente inversão dos rumos expansionistas do poder punitivo. Requerem a recuperação do desejo da liberdade, a máxima contenção, sem quaisquer concessões, do agigantado poder punitivo, e, enquanto ainda subsistente esse poder sempre violento, danoso e doloroso, requerem o resgate de um direito penal consentâneo com sua natureza essencialmente mínima, o resgate de um processo penal orientado pela supremacia da tutela da liberdade sobre o poder de punir.115

Posto isso, torna-se urgente à devida observação e aceitação de que o processo penal, não serve para ser usado como um meio de controle social. Especialmente a prisão preventiva ser usada como um meio de coação para aqueles futuros infratores, até porque, o medo da prisão, não os fará deixar de cometer delitos. Salo de Carvalho citando Bauman traz a tona outra “função” dada à prisão, como se pode ver:

No mesmo sentido Bauman, ao perceber que, com a falta de emprego e a crise de financiamento dos Estados para promover bem-estar, a prisão surge como local de reserva de população excedente: “nas atuais circunstâncias, o confinamento é antes uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à produção e para qual não há trabalho ‘ao qual se reintegrar’.”116

(grifos do autor)

Zygmunt Bauman, em um estudo realizado, aponta ainda que o “bem-estar social”, fator que não atinge a todos, é o grande estopim da criminalização e da separação dos indivíduos na sociedade.117 Como sustentado por grande parte da doutrina, a prisão preventiva e, até mesmo, a prisão pela execução da sentença, não podem, de maneira alguma, possuir esse fim citado por Bauman. A uma, que a primeira é meramente cautelar, a duas, que a segunda possui o fim de ressocializar o indivíduo e conscientizá-lo de que para viver em sociedade terá que mudar seu comportamento.

Diante disso, nota-se que é inegável a expansão do poder punitivo, e, cada vez mais, os direitos fundamentais inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas são negados. São leis que buscam um imediatismo punitivo, devido ao clamor da população por penas mais rigorosas. Maria Lúcia Karam faz uma crítica referente à prisão no curso do processo, não observando, assim, os princípios fundamentais, pois, veja-se:

115

KARAM. Recuperar o desejo da liberdade e conter o poder punitivo. p. 45.

116

CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (o exemplo privilegiado da aplicação da pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 30.

São leis que ignoram a excepcionalidade da prisão no curso do processo e impõem vedações à liberdade provisória e restrições ao direito de recorrer da sentença condenatória. Com isso vulneram a garantia do estado de inocência, as garantias do acesso à justiça e ao duplo grau de jurisdição e a própria cláusula do devido processo legal.118

Percebe-se, então, que “os principais elementos facilitadores do avanço do punitivismo está na formação cultural dos operadores do direito que, em decorrência da mentalidade inquisitória, veem a prisão como resposta natural ao crime.”119 É inevitável que essa percepção da prisão seja alterada. Não bastam que as leis penais proponham uma visão garantista, como é o caso da Lei n. 12.403/11, que veio para criar a possibilidade de esvaziamento dos presídios. Ocorre que, para a mudança ocorrer, é necessário que os operadores do direito, no caso os magistrados, busquem adequar-se também a essas mudanças garantistas. Caso contrário, os índices carcerários estarão fadados a um aumento cada vez maior, quiçá, irreversível.