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Os Kayapó meridionais eram bastante conhecidos entre os paulistas. Refere Antônio Pires de Campos,66 sertanista que esteve entre os primeiros descobridores do Cuiabá, que os Kayapó controlavam, desde o final da década de 1720, não somente a região de Camapuã, mas todo o rio Taquari, o qual fizeram despovoar destruindo todas as roças dos colonos.

[...] por todo o rio Pardo, e Camapoan e Guichum, não há outra nação de gentio habitante, porque os índios Caiapós tudo infestam por

d‘onde têm feito consideráveis danos, assim em barcos e escravos,

como nas canoas dos viajantes, e mineiros que passam para as minas do Cuiabá, fazendo despovoar todas as roças que já haviam no Tacoarí, matando a maior parte da gente, e queimando-lhe as casas, fazendo-lhe despovoar aquele rio, e o mesmo fariam em Camapoan, se os roceiros não estivessem com armas na mão de noite e de dia, sem embargo de haver já perdido às mãos do gentio, mais de vinte escravos, e proximamente mataram quatro escravos a... Vieira do Rio que estava na roça de Nhanduí mirim que faz barra no Rio Pardo.67

Por este relato depreende-se que as ações dos Kayapó no rio Pardo estavam apenas começando, enquanto que no rio Taquari seu objetivo de expulsar os colonos já fora alcançado.

Nos inícios do século XVII, os paulistas realizaram várias incursões ao Sertão dos Bilreiros, conhecendo por este último nome os índios Kayapó. Contudo, a princípio, tais incursões não eram propriamente para a escravização dos Kayapó, tidos por índios temíveis que trucidavam os inimigos facilmente com porretadas certeiras na cabeça, senão que intentavam aproveitar-se deles como intermediários na obtenção de cativos de populações inimigas. Assim, os Kayapó passaram a fornecer cativos aos paulistas, conforme o sistema de alianças vigente na época, mas essas relações amistosas duraram pouco tempo. Em 1608 e 1612, os Kayapó atacaram e destruíram duas grandes expedições, o que lhes valeu a partir de

então a hostilidade portuguesa. ―Expostos ao cativeiro ou ao extermínio, afirma John

Monteiro, apenas refugiando-se nos sertões remotos é que os Kayapó conseguiram evitar, por

66

Nota Taunay que há, geralmente, certa confusão entre os historiadores a respeito dos dois Antônio

Pires de Campos, sendo necessário distinguir o pai, autor das ―Breves notícias‖ e um dos

descobridores das minas cuiabanas, do filho, que moveu, posteriormente, guerra contra os Kayapó. TAUNAY, Afonso de. Os dois Antônio Pires de Campos e a campanha dos Caiapós. In: CONGRESSO DE HISTÓRIA NACIONAL, 4., 1950, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1950 apud GIRALDIN, op. cit., p. 88.

67

mais de um século, novos confrontos‖.68

Ainda de acordo com Monteiro, os desdobramentos da aliança entre os Kayapó e os paulistas ilustram claramente a política indigenista dos brancos no século XVII, segundo a qual não se deveria investir muito nas alianças, utilizando para isso de itens de escambo de baixíssimo valor, porque o amigo de hoje poderia ser o cativo de amanhã.69

Os Kayapó voltaram a ser uma preocupação dos paulistas a partir do século XVIII, devido às suas evidentes ações expansionistas. Os depoimentos dos viajantes sugerem que a política expansionista dos Kayapó teve, entre os anos de 1727 a 1734, o período de suas ações mais arrojadas. Essa afirmação parece razoável a dar crédito às observações de Antonio Pires de Campos, para quem esse grupo étnico devia estar movendo guerra continuada contra populações do vale do rio Pardo e Anhanduí. Justamente no rio

[...] Nhanduí da parte esquerda, [...] habita o gentio chamado Gualaxo, e sem embargo que estes tenham mantimentos não são de aldeias, mas vivem de corso, e montarias, as suas armas de que usam, são arcos e flechas e usam muito de laços para as caças. Os trajes deste gentio, os homens andam nus, as mulheres usam seus reparos de palha; estes só têm algumas guerras com os Caiapós, que até lá alcançam.70

A tradição etnográfica geralmente atribui o etnônimo Gualacho aos Kaingang, grupo étnico de língua Jê.71 O problema torna-se complicado porque Antonio Pires de Campos afirma que os Gualacho atacados pelos Kayapó eram grupos de ―montarias‖, munidos de

―laços para as caças‖, e sobre a posse de cavalos por parte dos Kaingang no século XVIII não

se encontrou nenhuma referência. Além disso, como se lê na Carta Ânua do Padre Diogo Ferrer, datada de agosto de 1633, o nome Gualacho era aplicado genericamente por colonos castelhanos do Paraguai aos grupos étnicos que não falassem o Guarani. Segundo o padre

68

MONTEIRO, op. cit., p. 64.

69

Ibidem, p. 63.

70

CAMPOS, op. cit., p. 180.

71

MÉTRAUX, Alfred. The Caingang. In: STEWARD, Julian (Ed.). Handbook of South America

Indians. v. 1. p. 447 apud HOLANDA, Monções... op. cit., p. 277; MONTEIRO, op. cit., p. 70;

MOTA, Lúcio Tadeu. Relações interculturais nas bacias dos rios Paranapanema/Tibagi no século XIX. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 23., 2005, Londrina. Anais... Londrina: Editorial Mídia, 2005. 1 CD-ROM. p. 6. De acordo com Lúcio Tadeu Mota, a porta de entrada dos Kaingang e

Xokleng para o sul do Brasil ―teria sido os campos e cerrados do interflúvio Paranapanema/Itararé e

Ribeira. Trabalhando com a hipótese de que os grupos Jê que se deslocaram do Brasil central para o sul foram ocupando regiões semelhantes às que ocupavam em seus locais de origem, podemos afirmar que após ocuparem os planaltos de cerrados entre os rios Tietê e Paranapanema eles iniciaram a

ocupação dos Campos Gerais no Paraná‖. MOTA, loc. cit. Assim, os jesuítas que fundaram reduções

naquela região pelo século XVII notaram a presença dos grupos não-Guarani, os quais os padres chamavam arbitrariamente de Gualacho.

Ferrer: ―desde la ciudad de Assumpcion mas de cien leguas arriba de la otra parte del río ay

varias naciones Gualachas que se llaman Guanas, Tunus, Bayas, Guaramos, etc., y todas se

comprehenden debajo del nombre de Guaycurus y Guaycurutis‖.72

Nesse depoimento do padre Ferrer encontram-se inclusos os Mbayá e os Guaykuru entre as ―nações Gualachas‖. Nada desautoriza, assim, a supor que os Gualacho referidos pelo sertanista Campos se tratassem dos Mbayá, grupo que praticava suas incursões pela Vacaria desde a segunda metade do século XVII e sabidamente eram possuidores de montarias e laços de caçar. Se for assim, então as incursões dos Kayapó teriam mesmo até um sentido defensivo, no sentido de conter a expansão Mbayá para aquém dos limites do rio Pardo.73

Ou antes, um sentido de vingança. Houve cronista, ainda no século XVIII, que divulgou, dentre os cativos tomados pelos Mbayá aos vários grupos étnicos seus vizinhos, a existência de indivíduos Kayapó.74 Inversamente, ainda não se encontrou informante que refira a prática, entre os Kayapó, de tomar para si cativos aos inimigos com a finalidade de integrá-los no grupo.75 Mas, a despeito de não tomarem cativos para si, os Kayapó não deixavam de se vingar daqueles que os faziam de cativos, isso em decorrência da centralidade da relação com os inimigos vigente em sua sociedade.76 A partir de relatos etnográficos sobre os Kayapó e Panará, Odair Giraldin informa que, nos conflitos em que se inseriam, os Kayapó procuravam matar sistematicamente todos os inimigos, sem tomar cativos, pois estes não poderiam ser incorporados em seu complexo sistema de clãs, sendo, além do mais, pertencentes a uma outra categoria existencial, não-Kayapó, portanto, ―não-humanos‖. Para os Kayapó, a morte dos inimigos e a realização da vingança permitiam o acesso aos bens materiais e a realização das cerimônias de escarificação apropriadas.77

É muito provável que, com essas incursões para além dos limites do rio Pardo, adentrando já em plenos campos da Vacaria, os Kayapó não estivessem propriamente interessados em migrarem para essa região, senão que buscavam uma expansão do raio de suas ações militares, aumentado agora de modo impressionante do Goiás à Vacaria. Com isso,

72

FERRER, Diogo. Anua do Pe. Diogo Ferrer para o Provincial sobre a geografia e etnografia dos indígenas do Itatim. 21/08/1633 [Doc. VII]. In: CORTESÃO, Jaime. Jesuítas e bandeirantes no Itatim (1596-1760): Manuscritos da coleção De Angelis. t. 2. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1952. p. 45-46.

73

Sobre a expansão dos Mbayá na segunda metade do século XVII, que lhes valeu a posse de amplo território da margem do rio Jejuí-Guaçu ao rio Taquari, vide: SUSNIK, El indio colonial del

Paraguay... op. cit. Analiso no capítulo 1.2 as implicações da expansão Mbayá, e apresento alguma

documentação que comprova a sua eventual presença na bacia do rio Paraná.

74

PRADO, Francisco Rodrigues do. História dos índios cavalleiros [...] [1795]. RIHGB, v. 1. p. 31.

75

Embora tenham fornecido cativos aos paulistas no século XVII. Cf. MONTEIRO, op. cit., p. 64.

76

GIRALDIN, op. cit., p. 47-50.

77

os Kayapó também continham a expansão dos Mbayá em direção a leste, vingando-se deles por lhes tomarem vários cativos.

Cabral Camelo, que viajou para Cuiabá em 1727, pôde observar com precisão a envergadura das ações dos Kayapó. Durante a viagem de ida, enumera o autor, com certo

ânimo, cinco produtivas roças nos inícios da subida do rio Pardo, nas quais ―há muito feijão e bananais‖; mais a diante ―se vê uma formosa roça povoada‖.78

A seguir chega à fazenda de

Camapuã, cuja população vive ali ―como em um presídio‖, temerosa dos assaltos dos Kayapó. ―De uma e outra parte há gentios‖, adverte Camelo, mas se supõe que sejam ―nações que os sertanistas conquistaram‖.79

Alguns dos sesmeiros que tinham suas roças no rio Pardo possuíam até patentes concedidas pela Fazenda Real, graças ao incipiente incremento da produção. Um tal Miguel Pereira de Souza recebera, em abril de 1729, a patente de Sargento-mór Povoador dos Moradores do rio Pardo, o que o obrigava a organizar a defesa das roças contra os ataques Kayapó. Concorreram para a nomeação de Pereira de Souza

[...] haver ocupado o posto de Sarg.to mor dos moradores do Rio Tacoary e ser dos pr.os povoadores q.‘ fabricarão faz.das no Rio Pardo em grande utilid.e dos dízimos Reaes e dos mineiros q.‘ passavam as

minas do Cuayabá por terem hali mantimentos com q.‘ se fornecerem, assistindo com canoas as pessoas q.‘ tinhão das ditas minas conduzido

os q.tos Reaes.80

Pelo registro da patente de Capitão Povoador dos Moradores concedida a José Vieira do Rio, também em abril de 1729, depreende-se a preocupação do governador da capitania de São Paulo, Antonio da Silva Caldeira Pimentel (1727-1732), com uma possível invasão dos Kayapó.

[...] tendo respeito a se acharem os moradores do Rio Pardo com um só cabo e ser conveniente pela sua grande distância nomiar ce hum capp.m p.o districto de Nhanduí mirim p.a q.‘ com mais prontidão se

executarem as ordens q.‘ se mandarem aquele certão e se acudir a qualquer invação q.‘ o gentio intente fazer aos mor.es

daquelas Rosas.81

78

CAMELO, op. cit., p. 133.

79 Ibidem, p. 135. 80 DI, v. 27, p. 8-9. 81 DI, v. 27, p. 10.

Retornando de Cuiabá para Sorocaba em 1730, pôde observar Cabral Camelo que essa iniciativa do governo de transformar moradores em chefes militares de nada adiantou frente à expansão dos Kayapó. Na descida do rio Pardo, encontrou o viajante as roças tão ―formosas‖ que vira três anos antes destruídas pelos Kayapó e despovoadas.

Pelo Rio Pardo abaixo gastamos só sete dias até chegarmos à roça do Caijuru, e passado o Salto do Corau, e o Nhanduí-mirim vimos despovoadas as roças, e mortos pelo Caiapó os moradores, também sabemos tinham desamparado as suas os do Caijuru de cima temeu- nos de que lhes sucedesse o mesmo: a roça de baixo, onde pousaram os que vieram por terra, ainda se achava com bastante gente, não obstante o estarem as casas já queimadas.82

Os últimos corajosos que ficaram em meio às cinzas aproveitavam e pediam carona ao

viajante para que os levassem até Sorocaba: ―no outro dia rodamos logo pelo rio abaixo com

as canoas tão cheias de gente, que vinham com os bordos na água: chegamos ao Nhanduí,

neste achamos mais três, em que repartimos a gente‖. Outros não tão desenganados abandonavam tudo e seguiam para Camapuã: ―no dia em que deixamos a roça a deixou

também o roceiro, e com os camaradas, e negros se foi por terra para a de Camapuã‖.83

A ofensiva dos Kayapó, que teve lugar no final dos anos 1720 e início da década seguinte, fez despovoarem-se todas as roças dos rios Taquari, Pardo e até do Paraná, restando apenas a fazenda de Camapuã, que por décadas seria o único núcleo de colonização adventícia nessa região. Atestam o despovoamento total, por exemplo, as referências à roça de um certo João de Araújo Cabral, cuja produção do sítio na barra do rio Coxim abastecia os passageiros das monções com víveres frescos para o restante da viagem até Cuiabá. Durante a viagem de Rodrigo César de Meneses àquelas minas, em 1726, sabe-se que foram gastas ali 250 oitavas de ouro na compra de mantimentos.84 Valendo-se da documentação das sesmarias, Sérgio Buarque constata que também existiram as roças de Domingos Gomes Beliago, na margem do rio Taquari, Manuel Góis do Prado, no Coxim, e Luiz Rodrigues Vilares, no Camapoã.85

A memória sertanista conservou o nome de alguns desses roceiros expulsos pelos Kayapó. O nome Beliago foi preservado numa cachoeira do rio Taquari.86 Escreve José

82

CAMELO, op. cit., p. 148.

83

Ibidem, p. 148.

84

DI, v. 13, p. 145.

85

HOLANDA, Monções... op. cit., p. 290.

86

Em 1800, Almeida e Souza escreve que ao passar a cachoeira ―denominada Belial notamos, que em nada pode assemelhar-se áquelle espírito Infernal do mesmo nome incumbido da impureza e da

Custódio de Sá e Faria, em viagem para o presídio de Iguatemi, no ano de 1774, observando a

margem direita do rio Paraná, próximo da boca do rio Pardo: ―chegamos à paragem d‘onde

antigamente esteve um sítio de um Manoel Lopes, o qual, estando em povoado os índios bárbaros, lhe mataram os escravos e queimaram as casas; [...] este sítio esteve na margem dos

Kayapó‖.87

Portanto, mesmo que um ou outro cronista ou viajante ainda recomendasse, aos viajantes do Cuiabá, os itinerários por terra, seja a marcha a pé a partir do rio Pardo, seja aquele que segue margeando o rio Verde, ou seja ainda o que ditava para os mais corajosos a caminhada direta de São Paulo a Cuiabá pela bacia do rio Paraguai, o certo é que, já no final da década de 1720, tais roteiros estavam totalmente liquidados. O próprio Manuel de Barros, que recomenda a marcha direta a partir do rio Pardo, chega a afirmar sobre os Kayapó:

É este gentio uma nação, que nunca foi conquistada pelos Sertanistas, [...] guerreiam com traição, nem tem domicílio certo, nem plantas ou lavouras: São volantes, e de corso, e se sustentam da imundície do mato; [...] por sua causa se não pode tomar o rio Verde, e endireitar logo por ele o caminho para o Cuiabá. Verdade é que também chegam ao rio Pardo, mas são poucos, e esses bastaram já para fazerem despovoar as roças, que ali havia, matando-lhes a gente, e queimando- lhe as casas.88

Essas afirmações de que os Kayapó, e não só eles, não possuíam ―domicílio certo, nem plantas ou lavouras‖, e eram ―gentio de corso‖, têm, como já notou Monteiro, muito mais a

ver com a procura, pelos portugueses, de justificativas para escravizar os índios do que propriamente com uma descrição.89 Pois os Kayapó possuíam assentamentos estáveis e diversos cultivos, destacando-se o plantio do amendoim.90 As notícias dos ataques dos

que ―dizem os mais Antigos que aqui esteve situado hum Homem deste nome, de quem deriva este apellido‖. ALMEIDA E SOUZA, op. cit., p. 30, 117. A partir disso, verifica-se incorreta a afirmação

de Sérgio Buarque segundo a qual a memória a respeito dos roceiros, bem como dos ataques dos Kayapó, estivesse já apagada no final do século XVIII. HOLANDA, Monções... op. cit., p. 291.

87

SÁ E FARIA, José Custódio de. Diário da viagem que fez o brigadeiro [...] da cidade de São Paulo à praça de Nossa Senhora dos Prazeres do Rio Igatemy, 1774-1775. RIHGB, t. 39, parte 1, v. 52. p. 256.

88

BARROS, op. cit., p. 168.

89

MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. 2001. Tese (Concurso de Livre Docência)–Departamento de Antropologia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. p. 59. Idem. Negros da terra... op. cit., p. 52-53. A noção de

―gentio de corso‖, vincula-se a uma representação náutica, muito divulgada no período colonial, de

ataque esporádico a embarcação comercial inimiga, realizado por navio armado, e em que se tira

proveito da surpresa. Aplicada aos povos indígenas, servia para identificar os grupos ―inimigos‖ como ameaças constantes aos índios ―domésticos‖, que habitavam nos estabelecimentos coloniais, sendo

assim uma justificativa para atacá-los e escravizá-los. GIRALDIN, op. cit., p. 87.

90

Kayapó, contudo, circularam rapidamente na colônia, tendo Rodrigo César de Menezes, em 1728, lançado bando ordenando investigação sobre as mortes na região de Camapuã e

dispondo que fosse feita a ―guerra justa‖ aos índios culpados, conforme a Lei de 1611.91

Esta lei garantia juridicamente a pronta escravização dos índios capturados nessas expedições punitivas.92 No início da década de 1730, as notícias de constantes ataques aos viajantes e aos roceiros parecem ter preocupado as autoridades metropolitanas, sendo El-Rei servido

conceder que aqueles que tomassem cativos entre os Kayapó, ―que infesta o caminho e Minas do Cuyabá‖, ter-lhes-iam legalmente como escravos; chegou-se a ordenar, em 1734, a guerra

total aos Mbayá, Payaguá e Kayapó.93

Os efeitos das ações dos Kayapó perduraram, no entanto, por longas décadas, não havendo colono que tencionasse lançar roças entre os rios Pardo, Verde, Sucuriú e mesmo no Taquari. O Conde de Azambuja, D. Antônio Rolim, em jornada ao Cuiabá para tomar posse do cargo de governador da nova capitania de Mato Grosso, escreveu na sua relação de viagem

em agosto de 1751: ―A 12 passei pelo último sítio, que se encontra até Camapuã, onde estão vivendo dois moradores, com alguns carijós, fora de toda a comunicação‖.94

Rolim escreveu isto quando estava nas proximidades do salto de Avanhandava, no rio Tietê. Até aquele momento, ninguém ousara estabelecer roça nem no rio Paraná, nem no rio Pardo.

As ações expansionistas dos Kayapó impuseram duas situações bem claras aos viajantes paulistas. Primeiramente, o abandono completo dos roteiros alternativos por terra para o Cuiabá, com exceção do caminho de Goiás, constantemente ameaçado. Isso significa que a partir da década de 1730, a quem quisesse passar ao Cuiabá pela parte central da Colônia, só existiam duas alternativas plausíveis: ou bem a rota ordinária das monções, predominantemente fluvial, que consistia na navegação dos rios Paraná e Pardo, a varação de Camapuã, e o prosseguimento pelos rios Coxim e Taquari até o Paraguai; ou bem a rota por terra do chamado caminho de Goiás, estabelecido desde 1722 pela expedição de Bartolomeu Bueno da Silva, o segundo Anhangüera, mas praticado pelos bandeirantes desde o século

91

DI, v. 13, p. 135-36.

92

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI e XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos

índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. p. 124-25, 127 93

DI, v. 24, p. 27-28; v. 22, p. 12-15; v. 13, p. 250.

94

ROLIM, D. Antonio. Relação da viagem, que fez o Conde de Azambuja, D. Antonio Rolim, da Cidade de S. Paulo para a Villa de Cuyabá, em 1751. In: TAUNAY, HBP, t. 3. p. 207.

XVII,95 itinerário este que, depois de intermináveis conflitos políticos entre autoridades de São Paulo e de Minas Gerais, foi liberado por Rodrigo César de Meneses em 1726.96

A segunda imposição consistiu na militarização das expedições e da fazenda de Camapuã, como forma de manter os itinerários que sobraram. As canoas monçoeiras, restringindo a presença dos adventícios naqueles sertões tão somente ao curso dos rios pelos quais se navegava, evitavam ao máximo o contato demorado com as margens: entre os guias das viagens, era consenso o perigo de se levantar pouso na margem direita do Paraná e na margem esquerda do Pardo, além de ser recomendado sempre todo o cuidado no varadouro de Camapuã, feito sempre com armas nas mãos.97 Quanto ao roteiro de Goiás, cumpre assinalar

que não foram poucos os esforços das autoridades metropolitanas no sentido de ―desinfestar‖