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Não há dúvida que as incursões que, desde o final do século XVI e por todo o século XVII, tomavam o rumo do extremo oeste à cata de índios para servirem de mão-de-obra aos empreendimentos dos habitantes dos campos de Piratininga, eram guiadas por índios de grupos aliados. Nesse sentido, não poucas veredas utilizadas pelos indígenas em sua mobilidade subsistencial ou bélica continuaram ativas durante as incursões paulistas: instáveis, porém com o sentido geral do curso conhecidamente balizado.39

Muito já se escreveu sobre as motivações da itinerância dos paulistas.40 Embora seja escusado retomar todo esse debate, cumpre, pelo menos, enfatizar algumas linhas fundamentais para a compreensão das sucessivas transformações dos itinerários do extremo

37

CABEZA DE VACA, Álvar Núñez. Naufragios y comentarios, con dos cartas. 2. ed. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1946. p. 124.

38

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Cem anos de solidão. 58. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 17.

39

HOLANDA, Caminhos e fronteiras... op. cit., p. 33.

40

Divulgou Jaime Cortesão conhecida tese, hoje já bem refutada, segundo a qual as expedições para o sertão constituíam-se num dos elementos centrais do projeto político expansionista da Coroa portuguesa, cujo objetivo era a anexação de toda a ampla porção territorial da fictícia Ilha Brasil aos domínios de El-Rei. CORTESÃO, Jaime. Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil. Rio de Janeiro: MEC, 1958. Os fundamentos dessa tese foram contestados primeiro por Sérgio Buarque e, em seguida, por John Manuel Monteiro. HOLANDA, Extremo oeste... op. cit., p. 92 e et seq.; MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. p. 7. Acrescentou este último que Cortesão, assim como outros autores, acabou por reproduzir os pretextos dos atores sociais como se fossem suas reais intencionalidades. Ibidem, p. 73. Um mapeamento desse debate pode ser lido em: MAGNOLI, Demétrio. O corpo da

pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: EdUsp, 1997. p.

oeste. Segundo John Manuel Monteiro, ao se buscar as razões pelas quais os paulistas embrenhavam-se em veredas indígenas e tomavam o rumo do sertão, os pretextos divulgados, como cata do ouro, repelir espanhóis, ―guerra justa‖ contra ―tapuias‖, não podem ser tomados pelo objetivo concreto dessas incursões, a saber, a necessidade econômica de suprir de mão- de-obra indígena os incipientes empreendimentos paulistas.41 De acordo com o mesmo autor, até meados do século XVIII, era comum que, sob o pretexto de combater os ―tapuias de

corso‖, as entradas paulistas iam ter ao sertão e voltavam com escravos Tupi. O governador Câmara Coutinho, escrevendo à Coroa no ano de 1693, afirmou que os paulistas ―deitam

tropas por todo o sertão, e nenhum outro intento levam mais, que captivarem o gentio de língua geral, que são os que já estão domesticados, e se não ocupam no gentio do Corso,

porque lhes não serve para nada‖.42

Assim, desde a segunda metade do século XVI até inícios do século XVIII, sustenta Monteiro, ―a penetração dos sertões sempre girou em torno do mesmo motivo básico: a necessidade crônica de mão-de-obra indígena para tocar os

empreendimentos agrícolas‖.43

Entre 1628 e 1640, expedições de apresamento devassaram as missões jesuíticas espanholas do Guairá, Tapes e Itatins, tomando inúmeros cativos Guarani. Nas décadas seguintes até 1720, incursões menores e mais freqüentes embrenharam-se nas sendas indígenas, tomando cativos aos grupos mais distantes.44 Essas bandeiras alimentavam a

reprodução da força de trabalho nos campos de Piratininga e forneciam o ―capital inicial‖ de qualquer empreendimento nascente. Daí que era comum, à época, o dizer que se ia ―buscar

41

MONTEIRO, op. cit., p. 52-53, 57, 60-61.

42

GOVERNADOR Câmara Coutinho à Coroa, 19/07/1693 apud ibidem, p. 52.

43

Ibidem, p. 57. Podem-se enumerar vários outros fatores também importantes que condicionaram a itinerância mameluca, isso em níveis variados de influência sobre as disposições de uns e outros. Sublinhou Sérgio Buarque que embora os motivos edênicos e os anúncios de Eldorados tenham impelido muitos à pesquisa por supostas minas de metal precioso escondidas no sertão, pode-se dizer que, de início, o objetivo principal era sempre a obtenção de mão-de-obra escrava entre os grupos indígenas. O autor de Visão do Paraíso sustenta seu parecer, entre outros, em informe governador do

Paraguai, D. Felipe Reja Corvalán, de 1679, para quem os paulistas ―não fazem muito caso do ouro, o

que mais querem é maloquear índios‖. Apud HOLANDA, Extremo oeste... op. cit., p. 27. Sobre os motivos edênicos, vide: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense: Publifolha, 2000. p. 63 et seq.; KOK, Glória. O sertão itinerante: expedições da capitania de São Paulo no século XVIII. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2004. p. 22-26.

Em outro trabalho, Sérgio Buarque estuda os ―movimentos da população em São Paulo‖, no século

XVII, a partir de uma raiz que ―é a má distribuição dos solos e é, sobretudo, o mau uso deles, com o

que logo se fazem imprestáveis‖. Esse estudo encontra-se publicado em: HOLANDA, Sérgio Buarque

de. Movimentos da população em São Paulo no século XVIII. Revista do Instituto de Estudos

Brasileiros, São Paulo, n. 1, p. 55-111, 1966. 44

remédio para minha pobreza‖.45

A viúva Maria Vitória fez constar em seu testamento, datado

de 1646, que achara conveniente mandar o filho ao sertão ―a buscar remédio como o pai o

fazia e que do que trouxe a dita viagem seria para nós ambos, como fez a dita viagem e trouxe dela algum gentio guaianá e me deu a minha parte e saiu com a sua no que se não porá dúvida

por ser meu filho‖.46

Alcântara Machado, referindo-se a essa busca de ―remédio‖, que são escravos indígenas, refere que os jovens eram mandados a fazê-la logo cedo: ―Mal saído da meninice, apresenta-se e parte a buscar a sua vida, o seu modo de lucrar, o seu remédio e para as suas irmãs. [...] Uma ‗entrada‘ equivale a um diploma‖.47

A dinâmica das alianças políticas com determinados grupos étnicos locais foi decisiva para o fracasso ou sucesso das incursões preadoras dos paulistas e, por conseguinte, da viabilidade dos roteiros. Desde a época de João Ramalho – cuja aliança com os Tupiniquim fora conseguida através de casamento com a filha de um tal cacique Tibiriçá –, o papel dos intermediários continuou sendo fundamental no conhecimento das veredas indígenas e, sobretudo, na obtenção de cativos.48 ―Ainda inexperientes no conhecimento do sertão – constata John Monteiro – e com suas forças paramilitares em fase de constituição, os paulistas dependiam desses intermediários, sobretudo à medida que se distanciavam de São Paulo‖.49 A esse propósito, Monteiro refere que, por volta de 1612, as bandeiras paulistas conseguiram tomar com êxito inúmeros índios do Guairá graças à colaboração de certos caciques Guarani, que lhes serviam de guias naqueles caminhos.50

Simultaneamente, desde os inícios do contato colonial, os espanhóis também se serviam dos Guarani como aliados e guias em expedições pelo vale do rio Paraguai e Chaco, seguindo por itinerários muito bem conhecido por estes índios até as barrancas dos Andes. É notável, neste caso, que da perspectiva de alguns grupos Guarani, as incursões seriam como que verdadeira oportunidade de realizar a vingança contra seus inimigos. Sabe-se que os Guarani que guiaram Cabeza de Vaca tentavam, a todo o momento, movê-lo contra os grupos Guaykuru.51 No século XVI, afiançados no poderio bélico dos espanhóis, os Guarani

45

MONTEIRO, op. cit., p. 85.

46

INVENTÁRIOS e Testamentos, v. 34 apud KOK, op. cit., p. 28.

47

MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1978. p. 225-26 (ênfases do original).

48

MONTEIRO, op. cit., p. 29-30.

49

Ibidem, p. 62-63.

50

Ibidem.

51

CABEZA DE VACA, op. cit., p. 145. Como documentou Branislava Susnik, vários grupos Guaykuru promoviam, desde antes do contato colonial, constantes incursões contra os Guarani, objetivando a tomada de cultivos, a aquisição de crianças para integrá-las etnicamente e, não menos importante, a busca de escalpos para as festas de iniciação guerreira Guaykuru. SUSNIK, Branislava.

conseguiram atacar algumas vezes os Guaykuru, tomando-lhes os cativos necessários para a consumação da vingança em ritual antropofágico.52 A tradução dos itinerários aos adventícios certamente implicava, da perspectiva dos Guarani, uma manipulação política segundo o sistema de conflitos e alianças vigentes.