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Mas não bastava apenas dispor de um bom guia que conhecesse o itinerário: fazia-se necessário partir para a jornada provido dos mantimentos adequados. Ou ainda, caso se dispusesse de mais tempo, ir plantando roças pelo caminho. Tal é a recomendação de Manuel de Barros a quem intentasse, como os antigos sertanistas, proceder à marcha a pé do rio Pardo até Cuiabá.

E como todos os campos que acompanham uma e outra parte ao Rio Pardo até as cabeceiras já não dêem sustento, e tanto, que há de ser bom o caçador, que possa trazer à noite para seu dono cear; por isso se faz necessário o carregar mantimentos iguais à comitiva de cada um que é o mais preciso, e o mais custoso: se porém pelo tempo adiantado se poder roçar, e plantar de sorte, que haja pelo caminho mantimento em abundância, mais suave ficará esta viagem.53

Segundo Sérgio Buarque, a preferência dos sertanistas voltava-se para o plantar não a mandioca, mas o milho. Deve-se isto às exigências da mobilidade, tendo em vista que, por um lado, as ramas de mandioca são de condução difícil, ocupando demasiado espaço nas bagagens, enquanto o milho vai mais fácil por ser em grãos; e, por outro, exige a mandioca a espera de no mínimo um ano para a obtenção de colheitas satisfatórias, enquanto que o milho já começa a produzir em cinco ou seis meses após a sementeira.54 O autor de Cultura e opulência do Brasil, ao informar o roteiro do caminho da vila de São Paulo para as Minas

Gerais e para o rio das Velhas, observa que ―aqui há roças de milho, abóboras e feijão, que

são as lavouras feitas pelos descobridores das minas e por outros, que por aí querem voltar. E

El indio colonial del Paraguay: t. 3-1: el chaqueño: Guaycurúes y Chanes-Arawak. Asunción: Museo

Etnográfico Andrés Barbero, 1971. p. 24.

52

Ibidem, p. 106.

53

BARROS, op. cit., p. 170.

54

só disto constam aquelas e outras roças nos caminhos e paragens das minas, e, quando muito,

têm de mais algumas batatas‖.55

As exigências da mobilidade fizeram cristalizar uma disposição preferencial com relação ao milho, de modo que já na era das monções regulares para o Cuiabá, o prato de resistência cotidiana dos viajantes constituía-se do conhecido ―virado paulista‖: o feijão, que era consumido frio e guardado da véspera quando se estava a bordo, pois nas canoas não era permitido o fogo;56 o toucinho, sempre pouco mas indispensável, requisitado em vários pontos da capitania, como Jaguari e Atibaia;57 e a farinha, não a de mandioca, que ainda no século XVIII não entrou na preferência dos habitantes, mas a de milho, considerada por mais de um viajante até mais sadia.58 Na expedição de Cândido Xavier de Almeida e Souza, que partiu em outubro de 1800 com destino às fronteiras com o Paraguai, levava-se 174 alqueires de farinha de milho, em contraste com apenas 6 alqueires de farinha de mandioca, para 62 tripulantes entre soldados e mareantes.59 Augusto Leverger, percorrendo a rota monçoeira já na década de 1830, afirma referindo-se aos trabalhadores das canoas: ―Estes homens são sustentados com farinha de milho e feijão temperado com uma pequena porção de

toucinho‖.60

À época da expedição Langsdorff (1825-1829), ainda era comum o consumo da bebida matinal chamada jacuba, indispensável em qualquer viagem desde o início do século

55

ANTONIL, André João [João Antonio Andreoni, S.J.]. Cultura e opulência do Brasil [1711]. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982. p. 182-83. O secretário Gervásio Leite Rebelo, que acompanhou Rodrigo César de Meneses em sua viagem a Cuiabá no ano de 1726, relata, ao chegar às

minas, a importância do milho para aquelas populações, ―que é o sustento de brancos e negros‖. De acordo com Rebelo, o milho seria o ―único remédio e regalo destas Minas; porque dele se faz farinha,

que supre o pão, a canjica fina para os brancos, a grossa para os negros, os cuscus, arroz, bolos, biscoitos, pastéis de carne e peixe, pipocas, catimpuera, aloja, angu, farinha de cachorro, água ardente, vinagre e outras muito mais equipações que tem inventado a necessidade e necessitam de momento‖. REBELO, Gervásio Leite. Notícia 6ª Prática e relação verdadeira da derrota e viagem, que fez da cidade de São Paulo para as minas do Cuiabá o Exmo. Sr. Rodrigo César de Meneses [...] [1727]. In: TAUNAY, HBP, t. 3. p. 129.

56

JUZARTE, op. cit., p. 241.

57

HOLANDA, Monções... op. cit., p. 110.

58

Lacerda e Almeida, por volta da década de 1790, afirmou que o virado paulista é ―o melhor guisado

do mundo, e o mais inocente‖. LACERDA E ALMEIDA, Francisco José de. Diário da viagem do Dr.

Francisco José de Lacerda e Almeida pelas Capitanias do Pará, Rio Negro, Matto Grosso, Cuyabá, e São Paulo, nos annos de 1780 a 1790. São Paulo: Typ. Costa Silveira, 1841 (Impresso pertencente ao

AESP). p. 66. O secretário Rebelo, em 1726, asseverou: ―antes vender um negro do que um alqueire

de milho, feijão ou farinha‖. REBELO, op. cit., p. 123.

59

ALMEIDA E SOUZA, Candido Xavier de. Descrição diária dos progressos da expedição destinada à capitania de São Paulo para fronteiras do Paraguai, em 9 de outubro de 1800. RIHGB, v. 202. p. 12- 13.

60

LEVERGER, Augusto. De São Paulo a Cuiabá: derrota da navegação interior da vila de Porto Feliz na Província de São Paulo à cidade de Cuiabá, capital da Província de Mato Grosso. RIHGB, v. 247. p. 365.

XVIII. Consistia na farinha de milho desfeita em água, às vezes com o acréscimo de um pouco de rapadura.61 O próprio Langsdorff teve um parecer favorável: ―A Jacuba é uma bebida muito refrescante; recorre-se a ela em toda parada, seja às 8h da manhã ou às 9h da noite. Nós, passageiros dos barcos com barracas, procuramos melhorar o sabor dessa bebida

misturando a ela um pouco de açúcar, laranja e vinho (além da farinha)‖.62

As chamadas roças de Itapeva, lançadas pelos sertanistas preadores de índios para abastecerem-se durante suas incursões pelo vale do rio Paraná, parece que ainda não desapareceram totalmente na década de 1730, época em que escreve Manuel de Barros. Diz o autor que, pouco depois da entrada no rio Paraná, o terreno para o plantio (isto é, as

―capoeiras‖) encontra-se na margem esquerda: ―Estas são as Capoeiras, e paragens, onde os

sertanistas costumam lançar as suas Roças, que na volta do Sertão tenham mantimentos nelas,

para se refazerem a si e ao gentio, que consigo trazem‖.63

Segundo Laura de Mello e Souza, a presença dessas roças era constante nos caminhos de penetração paulista: Fernão Dias Pais, embrenhando-se no sertão atrás de esmeraldas, teria deixado seu genro, Manuel de Borba

Gato, no rio das Velhas, ―fazendo plantas de mantimentos para os achar prontos quando

voltasse‖.64

Quando as várias veredas por terra até Cuiabá ainda eram percorridas à maneira dos antigos sertanistas, o consumo do milho das roças recém plantadas podia demorar alguns meses. Nesse ínterim, todo o cuidado era pouco com os índios Kayapó, que controlavam os campos do rio Pardo e Verde. Manuel de Barros adverte: viajar plantando roças é só para quem estiver suficientemente armado contra esses índios.

[...] mas como todos temem muito e com razão, o gentio Caiapó, que valendo-se das noites, queimam as casas, e mata a gente, ninguém se anima a lançar roças, e viver em semelhante altura, salvo se fosse algum homem de poder, vivesse muito bem entrincheirando, e com bastante armas.65

61

HOLANDA, Monções... op. cit., p. 107.

62

LANGSDORFF, Georg H. Von. Os diários de Langsdorff. v. 2. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff; Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. p. 200.

63

BARROS, op. cit., p. 167.

64

MELLO E SOUZA, Laura de. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: ___ (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa (v. 1). São Paulo: Cia. das Letras, 1997. p. 48.

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