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Experiência e conselho

No documento A Experiência, a metrópole e o velho (páginas 175-196)

3.1 A ILPI Casa Santa Zita: Dona Yara e Dona Jacinta

3.1.2 Experiência e conselho

―OS QUE VIERAM ANTES de mim, os que são bons, os que são velhos, aprenderam tudo que é minha vez de aprender.

Eles sabem o que eu não sei. Conhecem o que é bom e o que é o mal, e o que se deve fazer e o que não se deve fazer.

Os que vieram antes de mim hão de me dar conselhos e hão de me citar exemplos.

E, em vez de fazer como rebeldes, que riem da sabedoria e desobedecem, hei de atender ao que me disserem e hei de refletir sobre isso.

E quando for a minha vez de saber, hei de aconselhar também os que vierem depois de mim.‖332

(Cecília Meireles, Mandamento V)

Existem várias entradas para a análise do depoimento de Dona Yara, recuperando fragmentos do que foi rememorado, como pertencentes à possibilidade de realização da experiência, tanto a partir de sua própria vida, quanto das relações que esta estabelece no âmbito familiar. Porém considero que o reconhecimento de sua ―escolha‖ pela vida de solteira, uma temática constante em sua entrevista, é um ótimo ponto de partida para compreender melhor as suas razões de ser e de se colocar no mundo, que lhe possibilitam vivenciar a experiência.

Poderia dizer que a alegoria benjaminiana da fada, por intermédio da qual alguém satisfaz um desejo, não realizou o anseio de Dona Yara de se casar e ter sua própria família. Apesar de Walter Benjamin afirmar que tal fada existe para todo mundo (deixando claro, no entanto, que poucos são os que se lembram de qual era o desejo formulado primeiramente) e de que, ainda que na velhice, Dona Yara tenha consciência de que ter uma família era um dos seus desejos, esta não experimentou a satisfação de vê-lo realizado.

Não considero, contudo, que esse desejo não realizado compareça, na sua vida, no formato de um recalque, visto que o esquecimento livre só é possível

332 MEIRELES, Cecília. Mandamento V. In: MEIRELES, Cecília. Criança, meu amor. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. p.83.

quando algo pode ser lembrado. Caso contrário, pode-se dizer que é recalque. Assim, trazer à lembrança as suas escolhas, no que se refere ao campo afetivo, lhe permite a superação daquilo que não pôde ser vivido, de uma possível ausência.333

Guardando os devidos cuidados no desenvolvimento dessa reflexão sobre o recalque, algo tão caro à análise psicanalítica, exposto aqui de modo muito esquemático, percebe-se que, possivelmente, Dona Yara não se remeteria aos sentimentos narrados, caso eles fossem uma fonte de desprazer. Ainda que existisse algum tipo de barreira a essa rememoração, e esta tivesse sido quebrada no ato narrativo, entendo que esses sentimentos teriam sido narrados com certo grau de dramaticidade, o que não foi o caso. Muito mais do que isso, a sua referência ao não casamento, recheada de risos, remete-nos a um enquadramento determinado pelo pensamento do senso comum, fruto da imposição social, segundo a qual a mulher que não foi capaz de ter um marido e, principalmente, de gerar filhos, é incompleta. O que exige sempre uma justificativa dos sujeitos, sobre si e para si, dos motivos pelos quais se dá sua incompletude.

Ao me dizer que, caso tivesse de recomeçar a sua vida, escolheria, entre três profissões, a de cozinheira, fico tentada a refletir sobre o desejo encoberto, nessa afirmação, de uma vida afeita à esfera do lar, da sua própria família, em detrimento da vida pública como professora e secretária, embora ela tenha organizado, hierarquicamente, as escolhas, e a opção pela cozinha tenha sido colocada em último lugar. ―Ao longo da vida, exerci duas profissões: secretária e professora. Se eu

333 Sigmund Freud, em diferentes textos, analisa o que se convencionou chamar de recalque. Este pode ser associado a algumas das patologias estudadas pelo psicanalista, como as psiconeuroses — histeria, obsessões e paranoia — mas, longe disso, não são prerrogativas exclusivas dos neuróticos, comparecendo também na vida das pessoas normais. Dois dos textos presentes no volume III de suas obras completas são bem esclarecedores da relação existente entre o recalque e os processos mnemônicos: ―O mecanismo psíquico do esquecimento‖ e ―Lembranças encobridoras‖ (Cf. FREUD, Sigmund. Obras completas. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1998. CD-ROM). Segundo Freud, entre os fatores que facilitam o despertar da memória, encontra-se a ―constituição psíquica do indivíduo, da força da impressão quando recente, do interesse voltado para ela nessa ocasião, da constelação psíquica no momento atual, do interesse agora voltado para sua emergência, das ligações para as quais a impressão foi arrastada, etc.‖ (Ibidem, sem paginação). No entanto, além desses fatores, é necessário considerar também a ―atitude favorável ou desfavorável de um dado fator psíquico que se recusa a reproduzir qualquer coisa que possa liberar desprazer, ou que possa subseqüentemente levar à liberação de desprazer‖ (Ibidem, sem paginação). Concluindo tal pensamento, Freud avalia que ―a função da memória, que gostamos de encarar como um arquivo aberto a qualquer um que sinta curiosidade, fica, desse modo, sujeita a restrições por uma tendência da vontade, exatamente como qualquer parte de nossa atividade dirigida para o mundo externo‖ (Ibidem, sem paginação).

começasse minha vida outra vez, eu seria professora; segunda opção, secretária; terceira, cozinheira‖ (Depoimento de Dona Yara). Novamente, a imposição social, relevante, para a geração de Dona Yara, que coloca a mulher como representante do universo da casa, pode ser destacada.

Toda a reflexão sobre esse aspecto de sua vida me foi resumida no momento em que conversamos sobre arrependimentos. Ao contrário de admitir que experimenta esse sentimento, respondeu, conjecturando, alegremente, sobre aquilo que lhe faltou em virtude da mentira que pregou contra si mesma. Esse fato, a meu ver, só pode ser lembrado porque superado (ainda que, talvez, de forma sublimada), o que lhe forjou a personalidade forte e a firmeza com a qual enfrenta a velhice, como se observa na sua fala:

[...] eu não gosto de mentira, que a maior mentira que eu preguei na minha vida, foi contra mim. Foi quando eu mandei falar com o rapaz com o qual eu era apaixonada, que eu não gostava mais dele, pedi pra ele não aparecer mais. Eu não deveria, foi uma mentira, ele acreditou e nunca mais apareceu (Depoimento de Dona Yara).

Avalio também como procedente a análise que reconhece, no seu trabalho voluntário na Colmeia, o desejo não realizado e declarado de ser mãe. Quando me referi ao fato de que as ―escolhas‖ empreendidas por Dona Yara me ajudaram a compreender o seu modo de ser e de se colocar no mundo, e que, em decorrência disso, encontro possibilidades de realização da experiência na vida de Dona Yara, minha intenção foi enfatizar a clareza que ela possui em relação ao apreendido durante toda uma vida e a força daquilo que verbaliza como conselho para as ―meninas‖ da Colmeia.

No ensaio ―Experiência e pobreza‖, Walter Benjamin questiona: ―Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude, invocando sua experiência?‖334 Apesar do repúdio que a juventude, ao

334 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.114. (Obras escolhidas, v.1). Na tradução de João Barrento, editada, recentemente, no Brasil, as perguntas mantêm a mesma força indagadora acerca da importância atribuída aos conselhos emitidos de geração a geração. ―Um provérbio serve hoje para alguma coisa? Quem é que ainda acha que pode lidar com a juventude, invocando a sua experiência?‖. (BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In:

longo dos anos, passa a apresentar em relação ao conselho proveniente da autoridade da velhice, isso não impediu que a gestante da Colmeia reconhecesse que os conselhos que Dona Yara lhe transmitiam constituíam verdades, que, por vezes, a magoavam.

Outro dia, uma me contou que, no trabalho dela, tem uma psicóloga, ou psicólogo, não sei bem, e que ela se queixou de mim pra ele [...]. Então, ele perguntou: ―Por que você se queixa da Dona Yara?‖ Ela então disse: ―É porque, às vezes, ela me machuca com o que ela diz‖. O psicólogo, então, perguntou pra ela: ―Não será que é nos momentos em que ela lhe fala a verdade, e a verdade lhe dói?‖ Ela me contou isso chorando, quer dizer, eu entendi como uma maneira dela se desculpar pelo fato de haver falado contra mim, para o psicólogo (Depoimento de Dona Yara).

Ainda que os conselhos advindos das pessoas mais velhas cheguem de forma ameaçadora, esses são compostos por experiências transmitidas na forma de histórias, narrativas, provérbios, que, apesar de estarem em baixa para o contexto da modernidade, assim como Benjamin aponta, não se pode dizer que deixaram de existir. A benevolência dos velhos para com os jovens pauta-se na crença de que a idade lhes ensinará aquilo que eles precisam saber, ideia também desenvolvida por Benjamin, no ensaio citado anteriormente: ―Ele é muito jovem, em breve poderá compreender. Um dia ainda compreenderá‖.335

Aproveitando a análise realizada pelo psicólogo da futura mãe solteira da Colmeia, Dona Yara recupera, nessa oportunidade, a sua autoridade e legitimidade. Durante a entrevista, ela havia assinalado que algumas gestantes da Colmeia apresentavam um forte traço de rebeldia, e a fala do psicólogo criou a oportunidade ideal para que Dona Yara se sentisse autorizada a aplicar uma lição: ―Eu falei com ela que o psicólogo estava certo, que, realmente, eu tinha que usar de franqueza com ela,

BENJAMIN, Walter. O anjo da história: Walter Benjamin. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. p.85). Nesse texto, acrescido de comentários do tradutor, encontra-se a informação de que esse ensaio originalmente se chamava ―Pobreza de experiência‖. O título originário, a meu ver, traduz, de forma mais contundente, a temática do ensaio. A utilização da conjunção ―e‖ entre as duas palavras, no título pelo qual o texto ficou conhecido, leva-nos ao pensamento inicial de que o mesmo tratará dos dois conceitos em separado, e não da dificuldade que o processo da experiência enfrenta na modernidade.

para que elas também tomassem consciência do problema e partissem para uma atitude melhor‖ (Depoimento de Dona Yara).

Ainda com relação ao seu trabalho voluntário na Colmeia, posso dizer que aos velhos também é atribuído o papel de guardião336 das histórias dos lugares e/ou

instituições. A dificuldade de Dona Yara de deixar a obra consiste também no fato de que ela é detentora de um conhecimento que foi acumulado ao longo dos 28 anos que atuou nesse trabalho: ―Eu continuo trabalhando na Colmeia, sou apenas uma voluntária, não tenho cargo nenhum. Agora, como eu sou a mais velha em idade e a mais antiga em trabalho, quase todos os problemas passam por mim.‖ Recentemente, em um encontro com ela, tomei conhecimento de que, finalmente, ela conseguiu deixar o trabalho voluntário, como era seu antigo desejo.

Retomando a formulação de Jorge Larrosa, já apresentada, de que a experiência também é aquilo que nos toca, a realização desse trabalho voluntário, além de ser uma experiência, para Dona Yara e as gestantes, no que se refere ao aspecto já aludido, também é algo que se realiza no encalço dos sentimentos que lhe acometem e que são proporcionados pela sua inserção na obra. Trata-se de sentimentos que geram um conflito interno entre aquilo que o seu médico lhe recomenda, ou seja, não trazer os problemas vivenciados na Colmeia para casa, e a sensibilidade para com as situações presenciadas no dia-a-dia da instituição:

[...] o médico me disse que eu posso trabalhar na Colmeia, contanto que eu não traga os problemas pra casa. Eu falei: ―Doutor, é impossível, porque, se eu entrevisto uma menina de 14, 13, 15 anos, ou que foi violentada, ou que não sabe quem é o pai da criança... se o pai é o padrasto, ou o próprio pai dela, ou o tio, porque, às vezes, infelizmente, temos o caso de que o pai da criança que a moça tá esperando é o irmão com o qual ela dormia, porque, na casa dela, todo mundo dormia junto. Como é que eu venho pra casa e me esqueço desses problemas?‖ Só se eu fosse insensível. Então, é difícil,

336 Paul Ricoeur, ao discutir os usos da memória que comportam determinados abusos, aponta o paradoxo existente entre a atribuição da função de guardião da memória a um determinado sujeito e o processo de rememoração, que pertence à esfera da evocação. De acordo com ele: ―Espantemo-nos primeiro com o paradoxo gramatical que a injunção de se lembrar constitui. Como é possível dizer ‘você se lembrará‘, ou seja, contará, no futuro, essa memória que se apresenta como guardiã do passado? Mais grave ainda: como pode ser permitido dizer ‘você deve lembrar-se‘, ou seja, deve contar a memória no modo imperativo, quando cabe à lembrança poder surgir à maneira de uma evocação espontânea, portanto, um pathos, como diz o De memoria de Aristóteles?‖ (RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007. p.100).

eu tenho que superar, isso eu sei, mas esquecer, propriamente, não dá, não (Depoimento de Dona Yara).

Avançando em direção a outras possibilidades de realização da experiência, que podem ser consideradas a partir da trajetória dessa senhora, passo a considerar a sua narrativa acerca da Trezena de Santo Antônio.

Segundo Jeanne Marie Gagnebin, o ensaio ―Experiência e pobreza‖ fornece uma noção de experiência (Erfahrung) que se circunscreve em uma temporalidade comum a várias gerações, pressupondo uma tradição compartilhada, retomada na continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho.337 Tal

reflexão é ilustrada, no ensaio, por meio da narração lendária de uma fábula, atribuída a Esopo,338 que apresenta o conselho concedido por um pai, no leito de

morte, a seus filhos, sobre o modo pelo qual estes ficariam ricos. O pai moribundo339

diz aos filhos que, em seus vinhedos, existia um tesouro enterrado, os filhos se dedicam à tarefa de procurá-lo e revolvem toda a terra de suas vinhas. Ao final dessa tarefa, não encontram nada, mas, no outono, suas vinhas são as mais produtivas da região. Descobrem, assim, que a riqueza estava nas palavras transmitidas pelo pai.

Algumas das explicações para a interpretação que Walter Benjamin realiza dessa fábula assumem um caráter utilitário que aposta na noção de nobreza do trabalho e do esforço, pois afirmam que a bênção do conselho emitido pelo pai, à beira da morte, aos seus filhos, não estava no ouro do tesouro escondido, mas no trabalho de volver a terra. Segundo Jeanne Marie Gagnebin,340 o que interessa a

Benjamin, nessa descrição, é a encenação da história e não o conteúdo da mensagem transmitida, afinal, o pai promete um tesouro inexistente, pregando uma peça nos filhos, para convencê-los de suas palavras. O verdadeiro sentido de recuperação dessa narrativa concentra-se na representação de que aquilo que o pai fala, no seu leito de morte, é ouvido:

337 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva/FAPESP; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1994. p.66. (Coleção Estudos, v.142). 338 Ibidem, p.65.

339 As palavras agonizantes dos moribundos, na obra benjaminiana, em se tratando da discussão da experiência, remetem à situação de quem se encontra no leito de morte, ou às vésperas da morte, no limiar entre a vida e a morte.

340 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história e testemunho. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. p.49-57.

O que importa é que o pai fala do seu leito de morte e é ouvido, que os filhos respondem a uma palavra transmitida nesse limiar, e que reconhecem, em seus atos, que algo passa de geração para geração; algo maior que as pequenas experiências individuais particulares (Erlebnisse), maior que a simples existência individual do pai, um pobre vinhateiro, porém, que é transmitido por ele; algo, portanto que transcende a vida e a morte particulares, mas nelas se diz; algo que concerne aos descendentes.341

A tradição da qual se fazem fonte aqueles que se encontram perto da morte, à qual se refere Gagnebin, ―não configura somente uma ordem religiosa ou poética, mas desemboca também, necessariamente, numa prática comum.‖342 Para

Benjamin, a palavra do agonizante tem um caráter importante não porque se refere a algum saber secreto que este tinha a revelar, mas ―porque, no limiar da morte, condensava em uma intimidade repentina o mundo vivo e familiar, do outro mundo, inteiramente desconhecido e, no entanto, comum a todos‖.343 Como viajantes, que

retornam depois de uma longa ausência, os agonizantes possuem a autoridade suprema que lhes é concedida pela última viagem. Aquela que vem do reconhecimento de que a morte representa o desconhecido e é uma sentença comum a todos, como pronuncia Chicó, personagem do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna:

Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre.344

Partindo dessa reflexão, é possível reconhecer, no pedido que a irmã caçula de Dona Yara (que também já era velha) faz, três dias antes de morrer, à sua sobrinha, o sentido de uma tradição compartilhada, cuja temporalidade remete a diferentes gerações, favorecendo, assim, a realização de uma prática comum, nesse caso, de ordem religiosa, festiva e familiar.

341 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história e testemunho. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. p.50.

342 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva/FAPESP; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1994. p.66. (Coleção Estudos, v.142). 343 GAGNEBIN, loc. cit.

Ela pediu, uns três dias antes de morrer, a uma de nossas sobrinhas, que é muito festeira, que não se esquecesse de comemorar, no lugar dela, duas oportunidades, a festa de Santo Antônio, que era tradição na família, por causa da minha avó, que sempre comemorava, e o Natal. De forma que, sábado agora, essa minha sobrinha vai reunir a família toda na casa dela para comemorar Santo Antônio (Depoimento de Dona Yara).

Lançando mão de mais um conceito importante cunhado por Benjamin em um dos fragmentos da obra Passagens — o de limiar — encontram-se, nos ritos de passagem expressos nas cerimônias ligadas ao nascimento, ao casamento, à puberdade e também à morte, possibilidades de realização de experiências limiares.345 Entender o significado desse conceito parece-me fundamental, nesse

contexto de análise da experiência limiar da morte, ocorrida na família de Dona Yara. A distinção entre o conceito de limiar (Schwelle), soleira, umbral, e o conceito de fronteira (Grenze), exigida por Walter Benjamin, no fragmento ―Ritos de passagem‖, que integra o caderno das Passagens, denominado ―Prostituição, jogo‖,346

é compreensível em função do sentido de transitoriedade que esse primeiro conceito detém e que, por isso, se adapta à reflexão histórica de Benjamin acerca da modernidade. Segundo Jeanne Marie Gagnebin,347 a fronteira contém e mantém algo,

evitando seu transbordar, ela define limites. A utilização desse conceito, no contexto filosófico clássico, sobretudo a partir de Kant, para Gagnebin:

[...] determina a tarefa do pensamento como um estabelecer de fronteiras, tanto em proveito de determinação e da diferenciação conceitual, quanto na intenção de proibir ultrapassagens perigosas ou falsas transcendências; trata-se de uma ascese, de um exercício de limitação, limitação reconhecida e aceita contra a hybris de um pensamento pretensamente totalizante ou contra a Schwärmerei, o entusiasmo efusivo, da ―bela alma‖.348

345 BENJAMIN, Walter. Passagens. In: BOLLE, Willi; MATOS, Olgária. (Orgs.). Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. p.535.

346 De acordo com Benjamin, o limiar (Schwelle) deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira (Grenze). (Ibidem, p.535).

347 Cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Entre a vida e a morte. In: OTTE, Georg; SEDLMAYER, Sabrina; CORNELSEN, Elcio. (Orgs.). Limiares e passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. p.12-26. (Coleção Humanitas).

Retomando a crítica ao pensamento kantiano, presente no ensaio ―Sobre o programa de uma filosofia vindoura‖ (Ueber das programm der kommenden philosophie), é possível entender o julgamento e crítica de Benjamin endereçados ao conceito de fronteira, que delimita o pensamento, afastando-o da possibilidade de uma dialética transcendental.

Mas, se, por um lado, a fronteira delimita, o limiar indica o movimento, a ultrapassagem, as passagens, as transições,349 por exemplo, a transição entre a vida e

a morte, como consta no título do artigo de Gagnebin, utilizado para referenciar o

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