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A experiência da Escola Estadual com a compra direta dos Agricultores

Diferente da prefeitura de Canindé, que centraliza a administração e compra dos gêneros alimentícios para o PNAE, o governo do Estado do Ceará, até 2014, descentralizava os recursos da alimentação escolar para as escolas. Era o diretor, junto ao conselho da escola, que administrava os recursos e fazia as compras para a alimentação escolar, sem, no entanto, ter liberdade para escolher o cardápio dos alunos, pois este era feito pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará - SEDUC, por intermédio da comissão de nutrição.

Na tentativa de entender se poderia haver a inclusão dos agricultores no mercado da alimentação escolar na região, tornou-se necessário entrevistar os diretores das escolas estaduais, no município de Canindé, para identificar se em um contexto micro, com menos aparatos burocráticos de compra dos produtos, cumpria-se com a prerrogativa de que, no mínimo, 30% do valor do recurso destinado à alimentação escolar seja utilizado para compras de produtos da agricultura familiar. Para isso, entrei em contato com a 7ª Coordenadora Regional de Desenvolvimento da Educação - CREDE, da Secretária de Educação do Estado do Ceara, em Canindé, para conversar com o setor de alimentação escolar e buscar informações sobre as escolas estaduais.

Canindé possui quatro escolas estaduais, sendo uma profissional e cuja alimentação escolar é terceirizada, apesar de receber recursos do FNDE, o que não é o foco desta pesquisa. Das três escolas em que poderia realizar entrevista, apenas duas concordaram e, somente em uma, conversei diretamente com o Diretor.

O interlocutor, Sr. Paulo, é diretor há seis anos de uma das maiores e mais antigas escolas da região30. O gestor conta que, quando da instauração da lei 11.947/2009, conversou

com o sindicato dos trabalhadores rurais de Canindé e com a cooperativa para saber sobre a produção dos agricultores, com o objetivo de começar a se planejar e comprar os produtos da agricultura familiar. Mencionou, sem muitos detalhes (apesar da insistência), que recebeu algum tipo de formação da SEDUC, através da 7ª CREDE, para adequar a escola à Lei. Entretanto, afirma que a formação foi insuficiente e o que aprendeu sobre o assunto foi realizando estudos individuais.

Em visita aos agricultores, surpreendeu-se em saber que os agricultores tinham galinhas, ovos, caprinos e suínos em abundância para oferecer à escola. Porém, não tinham selo

30 Para preservar a identidade do participante da pesquisa, como previsto no parecer do comitê de ética que aprova

de inspeção sanitária, o que inviabilizou a compra dos produtos. Restou, então, saber como era a produção de frutas, hortaliças e legumes.

De posse do cardápio enviado pelo setor de nutrição da SEDUC, foi feita a chamada pública para habilitar os projetos de venda e realizar a compra. Dos agricultores de Canindé, somente foi possível comprar banana, cheiro verde e jerimum. Os outros gêneros alimentícios vieram de cooperativas fora do município de Canindé.

O Sr. Paulo ficou triste por isso, pois entendia que era primordial comprar os gêneros dos agricultores de Canindé, e que, mesmo adaptando as quantidades, não conseguia incluir um número maior de agricultores. Não soube responder se o fato da pouca quantidade de agricultores que participaram da chamada pública foi por falta de divulgação ou por desconhecimento sobre chamada pública. Como foi ao sindicato e à cooperativa, esperava que houvesse uma mobilização maior por parte das entidades públicas para incentivar os pequenos produtores a participar do certame. Mencionou, também, que a seca é um entrave para a agricultura na região.

Queixou-se mais de uma vez de não poder comprar as carnes e laticínios dos agricultores e, do fato de ter de fazer as compras por meio de licitação, de forma tradicional. Para ele, não fazia sentido que ninguém tenha tomado para si a luta pelo selo de inspeção sanitária a fim de conseguir para o município um abatedouro público de qualidade dentro das normas para beneficiar a população em geral.

Até o final do ano de 2014, a escola estava comprando de apenas um produtor de Canindé. Segundo ele, o agricultor utilizava água de cacimba na plantação, o que ainda lhe permitia vender, ao menos, o cheiro verde.

O Sr. Paulo avalia como positiva a prerrogativa da Lei do PNAE. Considera que a principal dificuldade é os produtores do próprio município não disporem de produtos suficientes para venda.

O recurso da escola para a compra da alimentação escolar acabou beneficiando os produtores de outras regiões e aqueles mais engajados e com mais estrutura física e financeira para acessar esse mercado, configurando uma exclusão dos mais carentes. Desse modo, repete- se a história de que aqueles que mais precisam são os que têm menos acesso, conforme um dos pontos já apontados pela literatura sobre o assunto discutido no Capítulo 2 desta pesquisa.

Outro entrave apontado pelo Sr. Paulo, é o fato de o cardápio ser unificado para todas as escolas do Estado. O máximo que ele conseguia fazer era readequar o menu, alterando os dias das preparações, evitando que alguns alimentos estragassem. Uma das contradições do cardápio unificado era a presença de morango, batata inglesa e carne de peixe moída, produtos

que não refletem a produção da região e a cultura alimentar dos alunos, uma exigência da lei 11.947/2009 para as refeições servidas na escola.

Na escola onde o Sr. Paulo é diretor, os alunos rejeitaram cuscuz com leite e a carne moída de peixe, e sempre diziam que, se a sua opinião fosse levada em consideração, deveriam servir pizza com refrigerante na alimentação escolar. Considerações semelhantes foram constatadas por Bezerra (2002) e Paiva (2013) ao afirmarem que quando os alunos são consultados sobre o que gostariam de ter no cardápio, suas refeições na escola não condiziam com o cardápio real usufruído por eles diariamente.

Para o entrevistado, há algumas tentativas de incorporar a cultura alimentar dos jovens na alimentação da escola, como: shake de goiaba com biscoito salgado; vitamina de fruta com bolinho pronto; sanduíche de carne moída de peixe; e sanduíche de frango com alface e tomate.

Apesar de conhecer parcialmente a discussão sobre EAN, a escola não desenvolve nenhum projeto na área, e a comunidade escolar com a qual ele convive está tentando fazer com que os jovens consumam a alimentação servida na escola e deixem de comprar de vendedores ambulantes que ficam próximos da escola.

Segundo o Sr. Paulo e os agricultores que conseguiam vender para essa escola, o processo de compra e venda ocorria com muita tranquilidade, pois com os preços estabelecidos na chamada pública e com o dinheiro depositado na conta da escola, o pagamento aos fornecedores era facilitado e feito em, no máximo, vinte dias após a entrega do produto com nota fiscal.

Diferentemente do que aconteceu com os agricultores que fizeram parte da chamada pública da prefeitura municipal de Canindé, que não têm mais interesse em participar do processo, os agricultores que venderam diretamente para a escola queixavam-se de não poder vender mais. Suas condições e a falta de apoio inviabilizavam o aumento de sua produção.

Infelizmente, o processo de aquisição de gêneros alimentícios para a alimentação escolar foi modificado. A SEDUC instituiu o pregão para concentrar todas as compras das escolas estaduais, o que faz com que a escola do Sr. Paulo não compre mais os alimentos diretamente dos agricultores. Para ele, isso representa um retrocesso e, mais de uma vez, queixou-se da resolução do Governo do Estado. Disse que já tinha uma relação de confiança e respeito com os agricultores, que gostava de recebê-los e conversar sobre a agricultura familiar e que sentia que estava desempenhando bem o seu papel de cidadão. Em vários momentos da entrevista, disse “eu sou um defensor da agricultura familiar” (Agente educacional - diretor de escola - abril de 2015).

O exemplo bem-sucedido da escola em que trabalha o Sr. Paulo, mesmo com algumas limitações, demonstra como é possível realizar a chamada pública e incluir os agricultores familiares no PNAE. Em um espaço menor de atuação e de controle do dinheiro e com agentes públicos interessados em fazer essa política dar certo, conseguiram colocar em prática os princípios da Lei 11.947/2009.

Também é possível perceber que, para que mais agricultores sejam beneficiados com o programa, é preciso uma intervenção do poder municipal na criação de oportunidades de desenvolvimento local que afetem diretamente os mais necessitados no campo. Entre essas ações, a criação do selo de inspeção sanitária do município - SIM, como já discutido.

O pagamento pontual foi outro fator importante para o fortalecimento dessa prática. É importante ponderar que tanto a prefeitura, quanto o estado e as escolas, quando recebem diretamente os recursos do PNAE, auferem os devidos valores para a alimentação escolar pontualmente, podendo, inclusive, serem averiguados pela população de forma simples, ao acessar o sítio oficial do FNDE. Ademais, há exigência de publicização dos recursos recebidos. O art. XII da resolução de n° 26, de 17 de junho de 2013, estabelece que

XII- a EEx. deverá publicizar o recebimento dos recursos de que trata esse artigo ao CAE, aos partidos políticos, aos sindicatos de trabalhadores e às entidades empresariais, com sede no Município da respectiva liberação, no prazo de dois dias úteis, contado da data do crédito na conta corrente específica do Programa, observando o disposto na Lei nº 9.452, de 20 de março de 1997 e na Lei nº12.527, de 18 de novembro de 2011.

Dessa forma, todos os agentes envolvidos com a alimentação escolar devem ser informados da quantidade de recursos recebidos pela Prefeitura ou Estado para serem aplicados no PNAE e, por isso, não se encontra justificativa para o atraso ou o não pagamento aos agricultores pela prefeitura de Canindé. No caso dos bolos, caso emblemático narrado aqui tantas vezes, usaram uma prerrogativa da incapacidade da prestação de contas pela prefeitura junto ao PNAE pela falta do selo de inspeção sanitária.

Entretanto, os bolos foram entregues, e o interlocutor, o Sr. José, chegou a nos dizer que foram quase 100 kg de bolos ofertados. Por que, antes de continuar a entrega nas escolas, não se interrompeu o processo de feitura dos bolos, já que é obrigação da comissão de alimentação escolar receber uma amostra do produto antes de acordar a entrega nas escolas? O manual de aquisição de produtos da agricultura familiar para a escola, disponível no sítio oficial do FNDE, estabelece que, em casos de gêneros que necessitam de selo de qualidade, no momento da amostragem destes para averiguar suas condições, devem ser apresentados os devidos comprovantes que atestem estarem quites com a inspeção sanitária.

A experiência positiva da escola e a confiança estabelecida entre o diretor e os agricultores demostram que há maneiras de incluí-los no PNAE. Todavia, tais maneiras não são independentes de ações da prefeitura, organizações de assistência técnica e entidades de mobilização dos agricultores. Nesse cenário, é preciso que os agricultores possam confiar em outras frentes de trabalho para que sua integração ao PNAE seja legitimada. Agricultores desacreditados no processo e população desacreditando nos agricultores não constituem condições favoráveis para o desenvolvimento sustentável.

Foi nesse contexto, através dos dados colhidos em campo e da problematização dos achados, que considerei pertinente fazer uma discussão sobre a falta de confiança dos agricultores no poder municipal, a partir da discussão de capital social.