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4.2 A coordenação de Alimentação Escolar em Canindé

4.3.1 Sobre Segurança Alimentar e Nutricional SAN

O diálogo com Dona Petúnia foi longo, conversávamos detidamente sobre a alimentação escolar em Canindé, em seus diferentes aspectos. Quando comecei a indagar sobre as ações que pudessem favorecer a construção de uma teia de apoio com os diferentes interlocutores da região para fomentar a Segurança Alimentar e Nutricional - SAN, Dona Petúnia foi contundente ao dizer que “aqui não fazemos nada com relação a isso” (Agente institucional - categoria alimentação escolar, março de 2015). Compreendemos por segurança alimentar

a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômicas e ambientalmente sustentáveis (CONSEA, 2004, p. 4).

A discussão sobre SAN deve alcançar as práticas desenvolvidas pela administração pública para fomentar o desenvolvimento local em ações que prezem pela economia do município, na oferta de produtos de qualidade advindos da agricultura familiar.

Nesse aspecto, quando há o descumprimento da lei, toda uma rede é prejudicada: agricultores, agricultoras, educandos, educandas, professores, professoras, comerciantes locais.

Isso acontece uma vez que um dos princípios da compra pública, a partir dos produtores locais, são os recursos financeiros de programas regulares como PNAE permanecerem no munícipio de atuação. Isso favorece a região a partir de um mercado local aquecido que gera emprego e renda, contribuindo, inclusive, para a diminuição do êxodo rural.

Foi sob esses auspícios que a alimentação escolar, contemporaneamente, tem-se tornado uma política pública, com o objetivo de ser uma articuladora do desenvolvimento regional, desde que seus administradores se proponham a ser éticos e eficazes na condução do programa.

Sobre a dificuldade de realizar a chamada pública para os agricultores familiares, além de dialogar com a comissão de alimentação escolar, tentei colher parte das informações na comissão de licitação. Apesar de ter sido recebida com cordialidade e prontidão, a comissão de licitação não forneceu nenhum documento sobre as informações, e nenhum de seus membros quis gravar entrevista. Com isso, as informações aqui apresentadas se baseiam no diário de campo da pesquisa.

Fui à comissão de licitação duas vezes. Na segunda vez, consegui que alguém falasse sobre a chamada pública. Conversei com um representante na sala da licitação na sede da prefeitura de Canindé. Ele mencionou que há mais de dois anos não tem sido feita a chamada pública e apontou os dois principais motivos: 1) o escândalo de venda das DAPs na região, que teve repercussão regional; e 2) a seca severa enfrentada pelo munícipio, que impede os agricultores de produzirem.

Segundo ele, houve uma investigação para averiguar o escândalo das DAPs, com relação à chamada pública para os agricultores familiares e foi constatado que aqueles que estavam habilitados perante os princípios da chamada pública na categoria de agricultores familiares individuais estavam, na realidade, vendendo produtos da CEASA. O fato foi amplamente comentado por todos os entrevistados da pesquisa, mas ninguém forneceu nenhuma comprovação sobre o assunto, e as pesquisas via internet, nos blogs da cidade, nos jornais eletrônicos do Ceará e outros, não trazem informações claras.

Com relação ao problema da seca destacado pelo membro da comissão de licitação, pode-se dizer que é uma concepção desses agentes, mas que não foi averiguada na prática e não há documentos e estudos que comprovem se os agricultores estão produzindo ou não. Na fala dos diferentes interlocutores da pesquisa, a falta de um mapeamento da produção da região é um dos entraves para a inclusão dos agricultores no PNAE. O resultado dessa ação de apenas “saber” sem apurar se realmente não há produção na região pode estar negligenciando a Segurança Alimentar e Nutricional - SAN no Município.

Ao concluir a conversa, um dos interlocutores disse que havia uma previsão para sair uma chamada pública no ano de 2015. Até o término da pesquisa de campo e da realização de entrevistas com os agentes que se disponibilizaram a participar da pesquisa, a chamada ainda não tinha sido feita. A chamada pública saiu no mês de setembro de 2015, quando eu já tinha terminado a pesquisa de campo e estava apenas confirmando dados com os interlocutores.

A separação entre a ação da comissão de alimentação escolar e a de licitação é um aspecto que merece destaque na discussão. Ambas as comissões são importantes para que aconteça a oferta de uma alimentação de qualidade para os educandos; para além disso, elas podem incluir os agricultores nesse mercado. Em Canindé, a partir dos relatos, foi possível perceber que a desarticulação dos agentes que estão atuando na alimentação escolar é um entrave sério na promoção da qualidade de vida na região. Quando a comissão de licitação não conversa com aqueles que lidam diretamente com os alimentos e tem o conhecimento necessário para elaboração dos cardápios, cria-se um problema para o município, pois a responsável técnica pela nutrição tem que trabalhar com aquilo que foi solicitado por outro órgão, sem saber como as ações foram executadas.

A comissão de licitação trabalha em uma vertente financeira mais matemática, cuidando da gerência dos recursos financeiros e dos interesses políticos de compra e venda dos produtos, em um esforço para fazer as contas fecharem e satisfazer as necessidades da administração pública quanto aos seus fornecedores. A ação matemática deles não se articula com a ação mais social da comissão de alimentação.

Por outro lado, os estudos demonstram que, em alguns municípios exitosos na inclusão dos agricultores, as licitações somente são elaboradas depois de uma discussão coletiva com todos os sujeitos que se envolvem com a alimentação escolar, levando em consideração a quantidade do recurso recebido e a potencialidade de inclusão dos produtores locais.

A Lei 11.947/2009 rege que, no mínimo, 30% dos recursos devam ser usados na compra dos produtos da agricultura, porém, pode-se usar o valor integral dos recursos na forma de chamada pública, incluindo, ainda, as pequenas produções manufaturadas dos agricultores.

Para isso, é imprescindível a articulação dos agentes, uma flexibilização da sua ação e divulgação das normas que regem o processo. As pesquisas que demonstram ações positivas da inclusão dos agricultores na alimentação escolar (AOKI et al., 2013; TRICHES; SCHNEIDER, 2012) têm em comum a interação da comissão de licitação e de alimentação, compartilhamento desse saber com os agricultores a fim de empoderá-los e superar a burocracia do processo.

[...] as descontinuidades acabam por desmotivar os agricultores e soma-se à memória coletiva de “más experiências” pelas quais já passaram em relação ao Estado, criando uma barreira ideológica para o desenvolvimento de relações de confiança entre esses atores. É devido a essas condições estruturais que traduzem a dificuldade que ainda existe entre gestores e técnicos de entenderem os sistemas de produção e os problemas cotidianos dos agricultores e seus mundos de vida, que muitas políticas públicas de desenvolvimento são fadadas ao fracasso (TRICHES; SCHNEIDER, 2012, p. 99, grifos dos autores).

Em Canindé, essas questões estão bem acentuadas quando a fala dos sujeitos já demonstra claramente essa falta de envolvimento e articulação em ações para a agricultura familiar. Além da descontinuidade da política, a falta de um lugar de congregação dos agentes para encontrar soluções interfere no diálogo e no possível redimensionamento da situação vivida na região.

Falta um projeto de formação que possa articular ambos os lados: administração pública e agricultores familiares. Na fala dos agentes institucionais, falta intimidade com a legislação e com as políticas públicas que visam o desenvolvimento da região. As práticas se dão na urgência, sem debater, sem educar, sem ter profissionais preparados para lidar com a situação. Por quê? Quando a prefeitura, no seu papel de articuladora matriz para implementar políticas públicas, não consegue congregar seus sujeitos, estabelece uma prática de desculpas semelhantes a que um dos sujeitos da comissão da alimentação escolar falou: “eu dei a desculpa da seca, ok?”. Contudo, tal afirmação não é suficiente para justificar a falta de inclusão dos agricultores nas compras públicas da região. São esses discursos que demonstram que é preciso uma formação maior que a legislação. Não basta outorgar leis sem acompanhar as regiões, ao implementá-las.

Sobre isso, Dona Petúnia relatou que é normal durante as discussões na comissão de alimentação escolar junto com a prefeitura a falta de preocupação em cumprir a lei. Ela disse que sempre que falam sobre a não inclusão dos agricultores, as pessoas que estão lá falam que isso não é motivo de preocupação, já que pode justificar tal situação junto ao FNDE e iriam alegar que a seca foi o impedimento para a realização das compras da agricultura familiar.

A falta de uma punição mais severa para o descumprimento da lei e ações de sensibilização com a gestão dos recursos e políticas públicas reafirmam tais posturas e geram esse clima de despreocupação em cumprir a legislação, o que proporciona uma gestão centralizadora. Além disso, o fato de haver algumas brechas para se sair bem não impõe para os administradores nenhuma pretensão de mudar o modus operandi da política no município de Canindé.

Assim, não há um modelo de proposição que possa alimentar ações de SAN, ao contrário disso, as poucas ações implementadas agravam a situação de insegurança alimentar

na região, pois os agricultores, além de estarem sofrendo com uma seca severa, ainda têm que lidar com a falta de assistência da prefeitura.