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CAPÍTULO 2 – O ENSINO DE FILOSOFIA COMO EXPERIÊNCIA

2.1 EXPERIÊNCIA FILOSÓFICA E CRIAÇÃO CONCEITUAL EM

O entendimento da Filosofia como criação de conceitos corresponde a uma crítica da Filosofia em questionar sobre a própria caracterização que, no pensamento de Deleuze8,

assumirá o entendimento de uma nova atitude teórica de se compreender a Filosofia. Essa visão de Deleuze contribui para pensarmos a Filosofia como experiência filosófica, pois possibilita uma noção de que, ao filosofar, o estudante pode criar conceitos que lhe possibilitem uma experiência do pensamento (OLIVEIRA, 2013). Assim, “[...] a potencialidade da criação de conceitos e a valorização da capacidade de pensar do ser humano constituem características primordiais na construção da ideia da diferença em Deleuze” (OLIVEIRA, 2013, p. 52). Deleuze utiliza conceitos específicos que possibilitam o advento de sua proposta de entendimento: “[...] criação, conceitos, diferença, imagem do pensamento, plano de imanência, personagem conceitual, functivos, prospectos, perceptos, afectos” (OLIVEIRA, C. A. de, 2013, p. 34). Nos dizeres de Oliveira sobre a aula como experiência filosófica e criação de conceitos, [...] as aulas de filosofia, como lugar da experiência filosófica se faz questionamento e transformações do sistema educativo, ensina sem fórmulas assim como se destitui de formas mecanizadas do aprender, pelo contrário, dispõe a seus alunos as ferramentas que conhece, cria problemas e conceitos junto com educandos. O professor [de] filosofia como criador de conceitos é provocador porque torna as aulas de filosofia desestabilizantes e interessantes, inventa estratégias, improvisa seu modo de ensinar e produz os personagens conceituais, o plano de imanência, os conceitos, selecionando conteúdos e atividades adequados àquele momento, oferecendo e estimulando condições para que os alunos façam de maneira autônoma o processo do filosofar. (OLIVEIRA, C. A. de, 2013, p. 84).

Espera-se, assim, que as aulas de Filosofia na Graduação também sejam provoquem os licenciandos a filosofar para que o licenciando, já na sua formação, tenha possibilidade de experimentar uma experiência filosófica em sua existência. Essa experiência desestabilizadora provoca o pensamento e possibilita novos pensamentos, novas formas de enxergar o mundo ao seu redor; assim, o aluno ressignifica não apenas o conteúdo filosófico, mas a própria existência. Caso esse futuro professor atue no Ensino Médio ou, mesmo, na Graduação, terá condições de filosofar e provocar também seus futuros alunos para criar conceitos e experimentar o filosofar.

8 Carrilho (1985, p. 63) afirma que a obra O que é a filosofia?, de Deleuze e Guattari, antes mesmo de ser publicada, já era clássica. O filósofo português percebe uma mudança de orientação nos escritos de Deleuze no sentido de encaminhar sua busca filosófica na maturidade para tentar compreender a própria caracterização da Filosofia. Carrilho (1985, p. 64) destaca a importância da produção filosófica de Deleuze em demarcar que quem é filósofo é quem produz Filosofia, criando conceitos.

Mostafa e Cruz (2009) entendem que os conceitos para Deleuze e Guattari (2010) não seguem regras de organização. Os conceitos são “[...] intensidades corporais, ordenadas, intensivas que dizem do acontecimento, não do estado das coisas” (MOSTAFA; CRUZ, 2009). Três grandes formas do pensamento são a arte, a ciência e a filosofia. Assim, expressam-se Deleuze e Guattari (2010, p. 11):

O filósofo é o amigo do conceito, ele é o conceito em potência. Quer dizer que a filosofia não é a simples arte de formar, de inventar ou fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente é a disciplina que consiste em criar conceitos. O amigo seria o amigo de suas próprias criações? Ou então é o ato do conceito que remete à potência do amigo, na unidade do criador e de seu duplo? Criar conceitos sempre novos é objeto da filosofia” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 11, grifo dos autores).

Todo conceito remete a uma problematização filosófica (DELEUZE; GUATTARI, 2010), e todo conceito tem uma história; assim, um conceito não surge do nada. O filósofo, a partir de um plano de imanência, passa de um conceito para outro e elabora um novo conceito. Os conceitos vão sendo organizados no plano de imanência como nos ensinam Mostafa e Cruz (2009, p. 44): “Rasgar o caos e traçar um plano significa perceber que os conceitos se organizam de forma diagramática para dar conta de problemas que estavam até então mal colocados, ao longo da história, relacionando-se uns aos outros como folhas de um mesmo plano”.

Nos dizeres de Deleuze e Guattari (2010, p. 45), a “[...] filosofia é um construtivismo e o construtivismo tem dois aspectos complementares que diferem em natureza: criar conceitos e traçar o plano”. Diferentemente de uma visão de Filosofia que perdura desde Platão, Deleuze e Guattari (2010) distanciam-se de um mundo ideal e pensam na imanência e não na transcendência. Nessa perspectiva, eles entendem a história da Filosofia como a arte do retrato; no entanto, não se trata de copiar o que o filósofo disse, mas, em semelhança, conceber o novo (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 69). Nesse processo de criação conceitual, tem-se na Filosofia os personagens conceituais que são o devir ou o sujeito de uma Filosofia (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Os pensadores em referência apresentam, por exemplo, os diversos personagens conceituais apresentados por Nietzsche, o qual opera com diversos personagens conceituais: Dionísio, Zaratustra, Cristo, Sacerdote, Sócrates.

Assim, os filósofos, ao longo da história da Filosofia, foram reinventando os conceitos e povoando-os com personagens conceituais. Desse modo, a trindade filosófica consiste em “traçar, inventar e criar” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 93). Ao pensar a criação de conceitos e sua relação com a história da Filosofia, Deleuze e Guattari (2010, p. 101) asseveram: “Mesmo a história da filosofia é inteiramente desinteressante se não propuser a despertar um conceito adormecido, a relançá-lo numa nova cena, mesmo a preço de voltá-lo contra ele

mesmo”. Assim, no entendimento da Filosofia como criação de conceitos, a história dessa ciência oferece conceitos que são reinventados pelos filósofos. A aula, sobretudo a licenciatura em Filosofia, constitui-se como o momento de compreender o pensamento dos filósofos não como uma espécie de museu daquilo que foi do passado, mas como algo atual, como algo que pode ser contextualizado no ambiente em que vivemos.

Os conceitos precisam de um plano de imanência, que “[...] é o mapa para que o filósofo problematize o acontecimento e é o lugar onde se criam os conceitos” (OLIVEIRA, 2013, p. 56). Tal conceito contém em sua composição de diversos elementos, pois, além do plano de imanência, há os personagens conceituais. Estes são elementos que operam como inspiradores para a criação de conceitos. Nenhum filósofo cria um conceito do nada, os conceitos surgem alimentando-se de outros conceitos.9 E cada criação conceitual envolve a criação de um plano de imanência para que se instaure um novo conceito. Como exemplo de personagem conceitual, temos Dionísio e Zaratustra, em Nietzsche. Deleuze e Guattari (2010) apresentam Nietzsche como um filósofo rico na criação de personagens conceituais, pois o filósofo de Sils Maria trabalhou com a experiência do filosofar. Os conceitos na Filosofia de Nietzsche assumem nuances justamente porque o filósofo cria pensamentos que contribuem para a formação dos seus diversos personagens conceituais.

Gallo (2008) relata que a noção de conceito é desenvolvida por Deleuze no final dos anos de 1980 e é resultante de uma crítica à Filosofia da representação, intimamente relacionada com o problema da recognição, não havendo espaço para a criação. O pano de fundo da crítica é a Filosofia platônica que institui um mundo verdadeiro em oposição ao mundo das aparências em que habitamos. O mundo verdadeiro seria atingido pela abstração e pela negação do sensível. A recognição induz à criação da imagem do pensamento, uma imagem dogmática do pensamento. Segundo Gallo (2008, p. 70), na proposição de Deleuze, “[...] o pensamento criativo nasce da violência do problema, constrói-se singularmente em cada experiência, para advir em algo que não fornece um panorama de respostas, mas convida ao pensamento na medida em que mobiliza novos problemas”.

Vasconcelos (2011) enumera oito postulados da Filosofia da representação que são combatidos por Deleuze ao longo de suas obras, conforme mostra o Quadro 4.

9 Oliveira, C. A. de (2013, p. 67) esclarece sobre a importância da história da filosofia no contexto da criação de conceitos: “Em Deleuze, a história da filosofia ocupa um papel importante no processo de criação de conceitos, porque é dela que acontece a transmutação do fazer filosófico, pois faz da história da filosofia um novo lugar. Para ele, os conceitos não estão prontos, é preciso criar a partir de algum problema que está na história. A história da filosofia deve ser o suporte para a criação de conceitos e não ser obstáculo para a produção de algo novo”.

QUADRO 4 - Postulados da Filosofia da representação de Vasconcelos (2011)

Postulado Significado

“Cogitatio natura universalis” “Pensamento é tomado como essência natural de uma faculdade. Todo pensador é dotado de um reto desejo pelo verdadeiro e, mais ainda, o que quer naturalmente já que ele é um animal racional.”

“Razão é uma possibilidade de todos os

homens” “Todos podem pensar pois há um ‘senso comum’ universalmente distribuído.” “Modelo de recognição” “As diversas faculdades concordam entre si sobre o

conhecimento sobre um objeto.” “‘Eu penso’ como sustentação dos

elementos da representação” “Percebe-se aquilo que é conhecido como idêntico, semelhante.” “Falsa cognição” “O erro é julgado como um descaminho do pensamento que se fosse puro não teria se submetido às forças de ‘fora’ da razão.”

“Privilégio da Designação” “O sentido lógico é valorizado como se tudo que fosse lógico fosse verdadeiro.”

“Problemas: Dados já feitos e

desaparecem” “O mestre apresenta-nos um problema que não é nosso, não nos afeta, mas que somos obrigados a resolvê-lo e esta resolução será julgada de verdadeira ou falsa unicamente pela sua ‘autoridade’ de professor.”

“Fim do resultado” “Diz respeito à subordinação do aprender ao saber constituindo-se, em sua natureza, como um grave obstáculo ao verdadeiro aprendizado.”

Fonte: O autor com base em Vasconcelos (2011, p. 97).

Os postulados têm como referência uma verdade pura possivelmente existente e que poderia ser conhecida por meio de abstrações. Nessa perspectiva, o caminho do filósofo seria o conhecimento distanciado das ilusões dos sentidos na busca pela representação de formular verdades plenas, universais e imutáveis. Deleuze e Guattari (2010) realizam um inventário do pensar dogmático que, sobretudo na modernidade, submete a arte do pensar ao entendimento do pensamento segundo a representação (VASCONCELOS, 2011, p. 198). Deleuze e Guattari (2010) propõem uma “filosofia nova”, ou, ainda, um “pensamento sem imagem”, uma Filosofia que deve ser combativa. Dessa maneira, a filosofia de Deleuze pode ser considerada uma proposta de fazer a Filosofia colocar-se em movimento. “Pensar é, antes de tudo, uma atividade radical que tem na criação conceitual a sua maior expressão” (VASCONCELOS, 2011, p. 198). Deleuze e Guattari (2010) desenvolvem uma proposta do entendimento da Filosofia como criação de conceitos, uma pedagogia do conceito que é entendida por Vasconcelos (2011) do seguinte modo:

Entender no pensamento de Deleuze a construção de uma pedagogia do conceito não é de modo algum subtraí-lo ao regime de definições e regras conceituas nas quais os conceitos são expressões de ‘formas’ ou ideias do mundo inteligível. Não significa, do mesmo modo, falar de conceitos como ‘possibilidades’, conceitos sem imanência, sem ‘garra’; conceitos já preconcebidos e que no pensamento adaptam-se como verdadeiros. (VASCONCELOS, 2011, p. 199).

O conceito, não sendo um reflexo da verdade, não remete a verdades científicas, mas, sim, à experiência filosófica do pensamento. O conceito “[...] traduz a diferença enquanto pura criação” (VASCONCELOS, 2011, p. 272). Nesse sentido, a Filosofia em Deleuze assume a perspectiva de experimentação - “[...] o conceito traz sempre a singularidade de cada experiência como também vem datado e mutante conforme se operam as relações que o definem” (VASCONCELOS, 2011, p. 272).

A Filosofia como experiência poderia ser entendida em Deleuze como um fazer “menor” da Filosofia, no sentido de superar uma visão de pensar “maior”. Pensar maior significa pensar como uma maioria pensa, em ligar-se à imagem dogmática do pensamento. Pensar “menor” é pensar a diferença. Maior e menor remeteriam mais ao posicionamento diante do dogmático do que à quantidade de quantos aderem a um determinado posicionamento. “A filosofia ‘menor’ teria como proposta a transvaloração da filosofia maior por meio da potência da variação” (GELAMO, 2008, p. 171), “[...] a filosofia menor seria, assim, uma política de resistência aos padrões instituídos do filosofar, do aprender e do ensinar” (GELAMO, 2008, p. 171).

Ao pensar na aplicabilidade da Filosofia como criação de conceitos em sala de aula, Gallo (2008, p. 73, grifos do autor) entende que, se queremos “[...] investir no exercício da filosofia como experiência do pensamento, como o trato com os conceitos, precisamos mudar o foco do ensino para o aprendizado”. Seria um deslocar do “ensinar a pensar” para um “aprender a pensar”. Nesse sentido, o aprendiz seria aquele que se coloca diante do problema, buscando condições de superá-lo. Gallo (2008) evidencia o que significa ensinar Filosofia como experiência do pensamento:

Assim, tratar do ensino da filosofia como criação de conceitos, como experiência do pensar por conceitos, significa fazer da sala de aula uma espécie de laboratório, ou, para escapar do referente científico, talvez seja melhor falar em uma “oficina de conceitos”. Trata-se de deslocar o foco do ensino como treinamento para uma educação como experiência, em que cada estudante seja convidado a colocar seus problemas, adentrar no campo problemático e experimentar os conceitos, experimentar o pensamento por conceitos, seja manejando e deslocando conceitos criados por filósofos ao longo da história do pensamento, seja criando seus próprios conceitos. (GALLO, 2008, p. 75, grifos do autor).

O pensamento de Gallo (2008) relaciona-se ao conceito de Carrilho (1987) que entende a aula de Filosofia como laboratório conceitual, o qual apresentaremos a seguir. Deleuze constantemente luta por retirar da Filosofia o aspecto de competição com outras áreas do saber. Deleuze luta contra determinadas estruturações, a saber: “os universais da reflexão, da comunicação e da contemplação” (BARROS; ZAMBONI, 2012, p. 585). Oliveira, C. A. de (2013) entende que pensar um ensino de Filosofia como criação de conceitos é pensar na

provocação de encontros e reencontros com a multiplicidade dos conceitos que provoquem o aluno a pensar seus próprios conceitos e o mobilize a pensar recorrendo a novos horizontes. A educação filosófica, na perspectiva de produzir diferenças, não pode ser entendida como anúncio de novas verdades, mas como abertura da possibilidade do novo — é “[...] fazer da filosofia no ensino-aprendizagem produção de conhecimento e invenção de novas práticas pedagógicas, pois seria a consequência de possíveis relações com a educação, a arte e a ciência” (OLIVEIRA, 2013, p. 74).

2.2 A AULA DE FILOSOFIA COMO LABORATÓRIO CONCEITUAL – A ATIVIDADE