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CAPÍTULO 2 – O ENSINO DE FILOSOFIA COMO EXPERIÊNCIA

2.3 EXPERIÊNCIA FILOSÓFICA E RECEPÇÃO FILOSÓFICA EM AGNES

Heller (1983) defende não apenas a necessidade de que a Filosofia demarque seu espaço na contemporaneidade, mas também que realize uma profissão de fé em si mesma e, ainda, que se distancie da máscara da religião ou das ciências da natureza. Segundo a filósofa, entenderemos melhor as funções sociais caso analisemos seus receptores. Para Heller (1983), a Filosofia tem dois momentos conceituais: o “verdadeiro” e o “comportamento correto”. Em Heller (1983), não há espaço para desarmonizar o verdadeiro do agir corretamente. O filósofo é representante da Filosofia que não pode ser considerada mera profissão, “[...] o ingresso no sistema filosófico é antes a elaboração da atitude orientada para o pensamento metódico- racional a partir do ângulo da unidade do Bem e do verdadeiro” (HELLER, 1983, p. 25). Assim, o aluno de Filosofia não precisa tornar-se filósofo para conhecer essa ciência, mas pode apropriar-se da Filosofia mesmo não se tornando um professor de tal disciplina (HELLER, 1983).

No entendimento de Heller (1983), a Filosofia é democrática; desse modo, não existe um filósofo que seja considerado o eleito. Filosofar é adentrar na comunidade daqueles que procuram pensar autonomamente para agir também corretamente. “Toda filosofia busca com amor o bem e o verdadeiro” (HELLER, 1983), mas pode não encontrá-los como no caso do ceticismo. As premissas do ceticismo, porém, também se destacam como um guia para o viver bem de quem nelas acredita.

Heller (1983) destaca que, nessa perspectiva de pensar a Filosofia em uma unidade entre o belo e o verdadeiro, há um duplo aspecto: a ideia de sistema e a atitude filosófica - “[...] guiar sistematicamente quem pensa junto com o filósofo para um ‘ápice’ alcançável por todo ser dotado de razão” (HELLER, 1983, p. 16). A ideia de atitude filosófica contribui para nossa proposta de investigação da aula como experiência filosófica porque percebemos o quanto a Filosofia de Heller (1983) valoriza a existência em harmonia com as teorias filosóficas, sendo vazio um discurso filosófico que não se relacione com a vida cotidiana - disso surge a atitude filosófica. Assim, a experiência filosófica propicia condições para que a pessoa assuma uma atitude diante da sua própria existência. Ao pensarmos no licenciando que realiza Estágio Supervisionado, também ele pode ser convidado a vivenciar uma atitude filosófica que lhe permita direcionar seus esforços como futuro professor de Filosofia. Para que a pessoa se

posicione com uma atitude filosófica, é fundamental que ela exercite o questionamento filosófico. Dessa maneira, voltamos à problematização que vimos em Carrilho (1987). Nas palavras de Von Zuben (1992):

Anes Heller caracteriza o aspecto sistemático da Filosofia pela tensão entre o ser e o dever-se, a realidade mais perfeita do ser. [...]. Admitir o questionamento como pedra angular da atitude filosófica é recuperar a estrutura interrogativa do pensamento. A distinção entre o nível da questão e o nível da resposta leva a romper, de certo modo, a unidade indiferenciada do pensamento que procede através de um continuum de proposição a proposição. Assim se apresenta o modelo de saber como justaposição de unidades de significação. A história nos tem revelado uma imagem ‘proposicional’ da razão em detrimento da estrutura interrogativa do pensamento. (VON ZUBEN, 1992, p. 19).

Enfim, problematizar filosoficamente a Filosofia e o seu ensino é de suma importância para que, com base nesse ensino, emerja uma atitude filosófica, seja em quem ensina Filosofia, seja em quem se encontra na posição de estudante da Filosofia. A recepção filosófica não pode deixar-nos inertes diante das proposições filosóficas. Horn e Mendes (2016) entendem que, na visão de Heller (1983), a Filosofia só é Filosofia como “expressão do pensar, do agir e do viver, simultaneamente”. Para os autores: “Só há recepção filosófica em sentido pleno quando esses elementos são considerados unitariamente, como parte da mesma operação, ou seja, da atitude filosófica” (HORN; MENDES, 2016, p. 281).12

Heller (1983, p. 19) enfatiza que a Filosofia é construída partindo da argumentação racional. É por meio da própria razão que tal ciência se constitui. A pensadora em referência entende que o espírito da utopia está presente na Filosofia, o qual se constitui o dever-ser. “A filosofia oferece a sua utopia ao homem que pensa autonomamente ao pensamento disciplinado e sistemático” (HELLER, 1983, p. 19). Os filósofos são sempre filhos de seu tempo e, assim, são portadores “[...] dos carecimentos, conceitos e preconceitos de seu período histórico” (HELLER, 1983, p. 21). Nesse sentido, Heller (1983) considera os elementos humanos que limitam a ação dos filósofos. O filósofo não é um ser abstrato que produz sua Filosofia do nada, mas, sim, problematiza com base em suas experiências. Na visão de Heller (1983, p. 21), os filósofos ficam presos aos pensamentos dos filósofos anteriores; uma vez que “[...] a filosofia não pode distanciar-se completamente de seu passado” (HELLER, 1983, p. 21).

12 Ainda complementam Horn e Mendes (2016, p. 283) sobre o entendimento filosófico de Heller (1983): “Toda filosofia que se pretende radical parte também de questionamentos profundamente radicais, ou seja: como devo pensar, como devo agir e como devo viver? Isso significa dizer que pensar, agir e viver constituem o verso e o reverso da mesma moeda. A unidade desses elementos por sua vez só é possível a partir da assunção do indivíduo como ser social, ontologicamente social. Pensar é um ato não só de inserção que o cotidiano exige – considerando o lugar social do sujeito – mas muito mais é responsabilidade cívica assumida pelo ser pensante tanto em relação a si como em relação aos outros. Isso porque não se trata de um ‘livre pensar’ sem ‘eira nem beira’ e sim de um pensar que se realiza enquanto imanência, enquanto objetivação”.

Essas declarações de Heller (1983) relacionam-se ao que já discutimos em relação ao professor-filósofo, como também em relação à história da Filosofia. Em se tratando do professor-filósofo, podemos discutir em Heller (1983) a relevância de o professor de Filosofia ter realizado em sua existência uma recepção completa da Filosofia a fim de unir o pensar, o agir e o viver em seu modo de ensinar Filosofia, de maneira que ele possa também possibilitar aos seus estudantes um direcionamento sobre como coincidir o verdadeiro e o correto agir na sua existência.

Com relação à história da Filosofia, Heller (1983) confirma que não podemos pensar na Filosofia sem termos como referência os pensadores do passado, mesmo que seja para discordar deles, visto que os filósofos, mesmo daqueles que são discípulos, tendem a distanciar-se em algum aspecto do discurso do mestre.

Qual seria, então, a tarefa filosófica do professor de Filosofia? “A sua tarefa filosófica consiste em formar a capacidade de sentir espanto, de desenvolver autonomamente seu pensamento [...]” (HELLER, 1983, p. 27). O desafio constante da Filosofia foi o de auxiliar as pessoas a saírem da menoridade e a buscarem a autonomia do pensamento. A Filosofia já era iluminista bem antes da utilização do termo iluminismo (HELLER, 1983) e incomoda os poderosos: “A filosofia não tem nenhum poder; mas aqueles que detêm o poder temem mais do que tudo os que pensam com sua própria cabeça” (HELLER, 1983, p. 28). Nesse contexto, ser filósofo é perigoso; por isso, vemos a situação histórica de muitos filósofos perseguidos e exilados.

Do mesmo modo que defendemos a Filosofia como experiência filosófica, relacionando com algo vivencial, Heller (1983) entende que toda Filosofia é concomitantemente uma “crítica de uma forma de vida” e “sugestão de outra forma de vida”. Assim, a Filosofia não é mera teoria que não influencia no modo de agir. Pelo contrário, ela é proposição de ação, de forma de vida. Um filósofo, segundo Heller (1983), não busca apresentar sua Filosofia primariamente a outro filósofo. Geralmente, busca quem não teve contato com a Filosofia para ser receptor da sua Filosofia (HELLER, 1983). A autora é enfática ao destacar a importância de uma recepção da Filosofia que harmonize o pensar, o agir e o viver:

As objetivações filosóficas incitam o receptor a refletir sobre o modo como deve pensar, como deve agir, como deve viver. No interior do edifício filosófico, esses três momentos são unidos e inseparáveis: na recepção, ao contrário, é possível a sua relativa separação. E, indubitavelmente, a recepção da filosofia é tão múltipla quanto o número de receptores. Mas é indispensável ordenar e determinar os tipos fundamentais de recepção. Só desse modo, com efeito, é possível demonstrar, por um lado, a polifuncionalidade da filosofia, e por outro, o carecimento comum que emerge nos diversos tipos de recepção. (HELLER, 1983, p. 33, grifos da autora).

Assim, pensar, agir e viver são expressões de um mesmo filosofar. Não é possível aceitar que, partindo de uma recepção completa da Filosofia, alguém possa dividir tais processos como se não mantivessem relação. Mendes (2017), na sua interpretação do pensamento de Heller (1983), destaca que o ponto central da aprendizagem da Filosofia é tomar como referência os próprios sujeitos estudantes de Filosofia. É preciso considerar o cotidiano instituído na existência desses sujeitos. A recepção da Filosofia deve propiciar, assim, uma crítica da cotidianidade instituída e dar condições de que aquele que estuda a Filosofia tenha uma experiência de lutar contra os preconceitos. Mendes (2017) destaca, ainda, a diferença entre recepção filosófica e a Filosofia especializada. Esta não decorre de um carecimento das objetivações filosóficas, enquanto, na recepção filosófica, isso ocorre.

Heller (1983) destaca a diferença entre recepção parcial e recepção completa. A recepção para ser completa necessita harmonizar as situações de como se deve pensar, agir e viver, privilegiando como meta a objetivação filosófica. Já na recepção parcial, o objetivo relaciona-se mais com a resolução de problemas existenciais ou com a exposição de teorias e ideologias. Na recepção parcial da Filosofia, o pensar, o agir e o viver são considerados parcialmente (HELLER, 1983). Há subtipos da recepção parcial: a recepção política, recepção iluminadora, recepção que guia o conhecimento, recepção avaliativo-cognoscitiva. A recepção política ocorre quando o enfoque incide no pensar em uma Filosofia e refletir como se deve agir, mantém o enfoque nesse polo, desconsiderando os demais. Heller (1983) entende que os filósofos procuram em grande parte uma recepção política de sua obra e destaca que muitas filosofias foram recebidas de tal modo que se transformaram em uma ideologia política.

Já, quando o elemento “reflete como deves viver” (HELLER, 1983, p. 42), é isolado dos outros dois elementos; temos, então, a recepção iluminadora. Para esse receptor, “[...] a filosofia não é mais do que um meio para dar sentido à própria vida ou para ‘iluminar’ o sentido da vida” (HELLER, 1983, p. 44, grifos da autora). A recepção iluminadora responde a questões existenciais sobre o porquê da própria existência e o porquê de estar no mundo. Heller (1983, p. 45) entende que a “[...] recepção iluminadora satisfaz uma espécie de carecimento religioso”. O terceiro tipo de recepção parcial atribui ênfase sobre o como devemos pensar. Trata- se de uma recepção que guia o conhecimento. “Os cientistas apropriam-se da filosofia do ponto de vista de sua tarefa científica” (HELLER, 1983, p. 46). Esse tipo de recepção culminou no advento da ciência moderna, dividindo-se em vários ramos do saber, levando a uma emancipação da ciência do viver e do agir. Nas palavras de Heller (1983):

“Emancipação da ciência natural” significa que, para o seu desenvolvimento, essa ciência não teve mais necessidade de uma recepção filosófica. E isso não significa

negar que determinadas disciplinas científico-naturais tenham recebido sua metodologia, algumas vezes, de determinadas filosofias. Os cientistas da natureza refletem necessariamente sobre a significação social de suas disciplinas, ou seja, sobre a direção tomada para o desenvolvimento autônomo das ciências naturais. E essa auto- reflexão é relevante sobretudo hoje, quando se tornou perfeitamente claro como pode ser plena de consequências para toda a humanidade a extensão pura e simples da atitude pragmática derivante da autonomia da ciência ao plano da utilização e aplicação social dos resultados científicos. (HELLER, 1983, p. 47, grifo da autora).

Outro tipo de recepção, a avaliativo-cognoscitiva, “[...] é uma recepção parcial, na medida em que põe em relevo o momento do ‘reflete sobre como deves pensar’” (HELLER, 1983, p. 51). Nesse tipo de recepção, não se estabelece uma conexão entre aquilo que se pretende pensar e a vivência na sociedade. O pensamento teórico não se relaciona com a vivência cotidiana; trata-se, sim, de um pressuposto para uma recepção completa caso o receptor consiga relacionar aquilo que é pensado em relação à vida, em relação à existência. Segundo Heller (1983), esse tipo de recepção é próprio daqueles que se dedicam às ciências sociais. Para compreender os fenômenos sociais, os teóricos das ciências sociais utilizam pressupostos filosóficos que não ultrapassam os limites do pensar.

Heller (1983) destaca três tipos de recepção completa: a do receptor estético, a do entendedor e a do receptor filosófico propriamente dito. O receptor estético da Filosofia valoriza a forma da escrita filosófica e recebe o conteúdo em forma de catarse. “O caráter sentimental da catarse significa apenas que o receptor estético não tem uma relação crítica com a obra” (HELLER, 1983, p. 36). O receptor entendedor, por sua vez, apropria-se da Filosofia como um elemento integrante da cultura. O entendedor liga-se à especialização da Filosofia. Os entendedores “[...] formam o círculo dos que compreendem, julgam e lêem filosofia” (HELLER, 1983, p. 37).

A autora entende que o receptor filosófico “[...] é o verdadeiro receptor da filosofia”. Esse receptor filosófico recebe a Filosofia como compreensão da existência. É considerada pelo filósofo como tipo superior de recepção completa. Ao assumir em sua existência uma Filosofia, por consequência, terá uma atitude filosófica e se “comportará como filósofo” (HELLER, 1983, p. 39). Mesmo quando o receptor interpreta erroneamente uma Filosofia, acaba criando outra Filosofia. A recepção filosófica da Filosofia e a criação de uma nova Filosofia são dois polos que não se opõem, e, sim, complementam-se porque, mesmo quando não compreende bem uma Filosofia, o receptor filosófico acaba elaborando um novo pensamento.

O pensamento filosófico de Agnes Heller auxilia-nos a pensar que o professor-filósofo seja alguém que tenha tido experiência de uma recepção completa, preferencialmente como receptor propriamente dito, pois quando ele tiver uma recepção completa da Filosofia, poderá vivenciar uma Filosofia e colocar-se no mundo como filósofo. O Estágio Supervisionado em

Filosofia, nesse contexto, seria o momento de o licenciando perceber o quanto o próprio professor que ele acompanha vivenciou uma recepção filosófica completa ou incompleta. Pensar a aula de Filosofia como experiência filosófica é pensar em uma necessidade de recepção completa da Filosofia, procurando unir o pensar, o agir e o viver. Podemos, assim, entender que o professor de Filosofia não é professor de Filosofia apenas enquanto ensina Filosofia, mas, mesmo quando não está lecionando, espera-se em seu modo de agir que também seja filósofo. Da recepção filosófica, surge, então, a atitude filosófica. A atitude filosófica é uma problematização do mundo, da vida, a fim de descobrir o que está por trás da obviedade. Assim sendo, na seção a seguir, abordaremos a formação do docente nessa área de ensino.