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Experiência Internacional

eficácia.

O mencionado trabalho de Jacques Roskam quanto à criação do termo „ortotanásia‟ já anunciava que não seria possível ao paciente incapaz opinar sobre a suspensão de tratamentos invasivos e terapeuticamente obstinados, salvo se ele tivesse manifestado por escrito seu desejo de escapar de qualquer tipo de distanásia. Em caso de incapacidade, o consentimento partiria dos familiares, após o parecer de três médicos, de autoridade científica moral indiscutível, na presença de um tabelião, e levado ao presidente provinciano do Conselho de Ética Médica (ROSKAM, 1950, p. 712).

Posteriormente, no final dos anos 60, quando ainda não havia um termo específico que traduzisse com perfeição a idéia de „exteriorização da vontade garantidora da autonomia do paciente terminal‟, a despeito da existência de várias terminologias, surgiu, nos Estados Unidos o „testamento vital‟ (living will), também conhecido como „testamento biológico‟, „testamento em vida‟, „testament de vie‟, „biotestamento‟, „diretivas avançadas‟, „vontades antecipadas‟, „manifestação explícita da própria vontade‟ e „diretivas antecipadas de vontade‟. A „Lei da Morte Natural‟ (tradução livre)56, pioneira em regulamentar o assunto, surgiu a partir do caso Karen Ann Quinlan, no estado da Califórnia, na década de 70, e exigia que o documento fosse assinado por pessoa maior e capaz, na presença de duas testemunhas, vindo a produzir seus efeitos após quatorze dias da assinatura, com validade de cinco anos e revogabilidade a qualquer tempo (BORGES, 2009, p. 249) e (MARINELI, 2013, online).

Apesar de a primeira lei sobre o testamento vital ter sido criada na Califórnia, o caso paradigmático de Karen Ann Quinlan ocorreu na Suprema Corte do Estado de Nova Jérsei, no ano de 1976, quando se reconheceu judicialmente o direito de recusa de tratamento médico para diagnóstico crônico e irreversível. Karen, segundo o boletim médico, estava em estado vegetativo permanente, sem perspectiva de cura, em decorrência de overdose de entorpecentes, sendo mantida por aparelhos. Naquela ocasião, como lhe fosse impossível manifestar a própria vontade, seu pai requereu judicialmente o desligamento dos aparelhos médicos, com fundamento no princípio constitucional da autodeterminação e da privacidade (CASTRO, 2007, p. 291).

A legislação federal americana, no entanto, começou a ser modificada com o caso Nancy Cruzan (Cruzan by Cruzan v. Director, Missouri Department of Health). Nancy

Cruzan sofreu um acidente automobilístico aos 25 anos de idade e foi diagnosticada como paciente em estado vegetativo permanente e irreversível. Com isso, seus pais ingressaram com um pedido judicial para a retirada dos aparelhos que a mantinham viva, sob o argumento de que ela havia afirmado, inúmeras vezes, que não gostaria de ser mantida viva quando tivesse menos da metade de sua capacidade normal. Embora o pedido tenha sido autorizado em 1ª Instância, todavia o advogado designado para representar os interesses de Nancy em juízo recorreu da decisão, e o Tribunal do Missouri negou o desligamento dos aparelhos, por não existir prova clara e contundente da manifestação de vontade da paciente. Entretanto, reconhecendo que pessoas capazes têm o direito constitucional de exigir que os seus suportes vitais sejam desligados, a Suprema Corte Americana, depois de ouvir os colegas de trabalho de Nancy Cruzan, testemunhas de que ela jamais desejaria viver em estado vegetativo, determinou a retirada dos referidos suportes vitais. (DWORKIN, 2003, pp. 264-265); (DADALTO, 2013, pp. 99-100).

Em 1991, como conseqüência direta do caso Cruzan, o Congresso Americano editou a „Lei de Autodeterminação do Paciente‟(tradução livre)57

, cuja finalidade é conscientizar as pessoas para estarem preparadas para as decisões médicas ao final da vida, regulamentando o direito de autonomia de pacientes terminais ou em estado vegetativo. Os hospitais mantidos por fundos federais passaram a ter o dever de informar aos pacientes que ali ingressassem sobre o conteúdo das leis estaduais de autodeterminação, bem assim sobre as formalidades que eles deveriam observar, sobretudo no tocante ao dever de exteriorizar seus desígnios no momento em que lhes sobreviesse a finitude da vida, caso não desejassem submeter-se ao prolongamento artificial. É importante observar que essa lei não cria o testamento vital no âmbito federal, mas somente obriga os nosocômios que recebem recursos federais a informar sobre a previsão do living will na legislação de cada estado.

Observe-se que esses paradigmas foram situações em que a reconstrução da vontade judicial das pacientes teve de ser perquirida, pois elas já se encontravam em estado vegetativo, quando a família solicitou o desligamento dos suportes vitais. Os aparelhos mantenedores das vidas de Karen Quilan e Nancy Cruzan só foram desligados depois de longa batalha judicial, justamente porque elas não manifestaram previamente seu desejo nesse sentido, o que demonstra a relevância da exteriorização da vontade como meio de garantir a autonomia do paciente no final de sua existência.

A inadequação da expressão „testamento vital‟ é evidente, já que os testamentos tradicionais têm efeitos post mortem, ao passo que a eficácia do testamento vital mantém-se enquanto o paciente viver. Todavia, o testamento vital assemelha-se ao testamento comum por ser um negócio jurídico unilateral, personalíssimo, gratuito e revogável. Na realidade, o termo provém de uma tradução equivocada do inglês, pois o substantivo „will‟ pode significar: vontade, desígnio ou testamento e „living‟ é flexão do verbo viver („to live‟), razão pela qual, apesar de a locução „testamento vital‟ ser a mais comum na doutrina58

, há quem prefira a expressão „declaração prévia de vontade para o fim da vida‟ (DADALTO, 2013, p. 17).

Por outro lado, deve-se esclarecer que as chamadas „diretivas avançadas‟, „manifestação explícita da própria vontade‟, „vontades antecipadas‟ e „diretivas antecipadas de vontade‟ não se confundem nem com o „testamento vital‟, nem com o „mandato duradouro‟ (ou procuração de saúde). Aquelas representam o conteúdo a ser materializado por estes, tidos como instrumentos hábeis para tratar questões relativas à terminalidade da vida. De modo diverso, Luciana Dadalto (2013, pp. 82-83) classifica as diretivas antecipadas como gênero que tem como espécies o testamento vital e o mandato duradouro. A autora, baseada na lei americana de autodeterminação do paciente, trata as diretivas antecipadas como um documento apto a dar instruções acerca das terapias médicas de uma pessoa em qualquer fase da vida, independentemente de esta ter ou não atingido o estágio terminal. Contudo, como já referenciado acima, prefere-se utilizar o testamento vital e a procuração de saúde como instrumentos das ditas diretivas antecipadas de vontade. Nesse sentido, a Resolução 1.995/2012, editada pelo Conselho Federal de Medicina, definiu, no artigo 1º, diretivas antecipadas de vontade como: “O conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”, referendando a ideia de que as diretivas são, de fato, o conteúdo.

Ademais, cumpre registrar que o testamento vital e o mandato duradouro não se confundem, pois, enquanto o testamento vital é o instrumento por meio do qual a pessoa declara, antecipadamente, sua recusa - ou não - à obstinação terapêutica, com o propósito de deixar claro como deseja vivenciar os momentos finais da sua existência; o mandato duradouro é um documento pelo o qual o paciente constitui um procurador, conferindo-lhe

58(LÔBO, 2013a, 237-240); (BORGES, 2009, p. 249); (MARINELI, 2013, online); (TEIXEIRA; PENALVA, 2010, pp. 57-82);

poderes para tomar decisões atinentes à aceitação ou à recusa de tratamentos quando este paciente atingir o estágio de inconsciência (DADALTO, 2013, p. 85).

Sob a perspectiva ontologicamente existencial, o testamento vital é a forma de garantir a autonomia do paciente terminal nos últimos dias de sua vida. Na visão do Biodireito, ele é o meio decidir sobre quais caminhos seguir no processo de finitude, permitindo que a extinção ocorra sem obstinação terapêutica, com a concessão do máximo de conforto e o mínimo de sofrimento possível aos pacientes e familiares; ou mesmo seja elastecida em decorrência do desejo de mais dias de vida.

Juridicamente, segundo Paulo Lôbo (2013a, p. 237), testamento vital é, em essência, um “negócio jurídico unilateral sujeito a condição suspensiva, isto é, o estado de inconsciência duradoura do declarante”.

4.1 Experiência Internacional

Os norte-americanos, como dito, foram os pioneiros na edição de leis sobre o testamento vital (Living Will), o mandato duradouro (Durable Power of Attorney for Care

Act), além das diretivas antecipadas de vontade (Advance Medical Care Directives), institutos

da manifestação de vontade do paciente, materializados em formulários próprios, em que, logo após os imprescindíveis esclarecimentos da equipe médica, ele indica quais os tratamentos que aceita e quais os que rejeita. Contudo, outras leis editadas no âmbito internacional também merecem realce na regulamentação do assunto. Na Europa, a Convenção de Direitos Humanos e Biomedicina de 1997, ocorrida em Oviedo, e a Recomendação do Conselho Europeu de 2009 são os documentos de maior evidência na consideração do tema.

A Espanha regulamentou a matéria com legislação federal específica em 2002 (Lei 41/2002), apesar de algumas comunidades autônomas como, por exemplo, Catalunha, Galícia, Navarra e Madri, já terem pronunciamento legislativo anterior no que tange às chamadas „instruções prévias‟ ou „vontade antecipada‟. A Lei espanhola 41/2002, no artigo 11, dispõe, em linhas gerais, que pessoas maiores e capazes estão autorizadas a realizar suas instruções prévias acerca dos cuidados de saúde, tratamentos médicos e doação de órgãos, podendo designar, inclusive, um procurador para cumprir a manifestação de vontade ali prestada. Tais instruções são revogáveis a qualquer tempo, por escrito, e serão assentadas no Registro Nacional de Instruções Prévias (DADALTO, 2013, pp. 102-109).

Ressalte-se, por oportuno, que algumas comunidades autônomas da Espanha, tais como Andaluzia, Valência e Navarra, nas respectivas leis locais, enfocam a possibilidade de utilização das Diretivas Antecipadas de Vontade por parte de menores de idade, com a exigência de que eles sejam emancipados (BLANCO, 2007, p. 66). Todavia, essa distinção não tem utilidade para o sistema jurídico brasileiro, tendo em vista que as pessoas emancipadas gozam de capacidade plena para os atos da vida civil.

Na mesma linha de pensamento, em Portugal, a Lei do Testamento Vital – Lei 25/2012, promulgada em 16 de julho de 2012 – tem por objetivo regular as „diretivas antecipadas de vontade‟ em matéria de saúde, na forma de Testamento Vital. Essas diretivas, à semelhança da lei argentina, descrita mais adiante, implicam na manifestação de vontade escrita, unilateral e revogável, prestada por agente capaz, com o objetivo de explicitar quais tratamentos o declarante deseja que lhe sejam aplicados, na hipótese de não mais ser possível, no futuro, exprimir seus desejos. Distingue-se da norma da Argentina, contudo, porque, enquanto as „diretivas antecipadas‟ daquele país não estipulam prazo de validade, a lei portuguesa determina o período de eficácia de cinco anos para a declaração de vontade, renovável mediante confirmação. Neste ponto, a lei argentina supera a lei portuguesa porque não deveria haver prazo certo para o fim da produção de efeitos das declarações prestadas no „testamento vital‟, considerando que não se sabe quando e em que situação a enfermidade se instalará no corpo do declarante.

A Lei 25/2012 possibilita algumas exceções para o descumprimento do testamento, a saber: a) em caso de urgência ou risco eminente de morte do declarante; b) quando se verifica a desatualização da vontade do paciente, decorrente do avanço científico das terapias disponíveis, e c) ante a possibilidade de escusa de consciência por parte do médico. Esta última não implica desrespeito à vontade do paciente, pois a instituição de saúde fica obrigada a proporcionar meios para que essa deliberação seja cumprida. Todavia, a família não pode recusar-se a cumprir as declarações prestadas no testamento vital, exceto se o documento tiver parado de produzir os seus efeitos. A ineficácia do testamento por caducidade aumenta a insegurança do declarante, deixando-o vulnerável quanto ao momento da necessidade de utilização do testamento.

Conforme já anunciado anteriormente, o Registro Nacional do Testamento Vital (RENTEV), previsto na referida lei, apesar de não ser obrigatório para que a declaração tenha eficácia, é de grande valia para o conhecimento dos procedimentos a serem adotados nos

tratamentos dos testadores, por parte dos profissionais de saúde competentes, que devem guardar o sigilo ético quanto ao teor destas declarações.

Em acréscimo, há um capítulo próprio relativo ao „procurador para cuidados em saúde‟, pessoa nomeada para representar o doente, quando este não conseguir expressar a sua vontade autonomamente. Existe um amplo regramento sobre as atribuições do representante legal, devendo-se ressaltar que, em caso de conflito entre as decisões expressas no testamento vital e a vontade do procurador de saúde, as disposições do outorgante prevalecerão.

Por outro lado, a Lei 26.742/2012 da Argentina autoriza que o enfermo, tendo sido suficientemente informado sobre o seu estado de saúde, os tratamentos disponíveis, os benefícios e os riscos destes decorrentes, firme a sua declaração de intenções, expressando, de forma clara e precisa, que tipo de terapia deseja que lhe seja aplicada. O denominado „consentimento informado‟, que pode ser proferido tanto pelo paciente como por seu representante legal, é uma declaração unilateral de vontade revogável, que o profissional de saúde deve respeitar, fazendo o devido registro no prontuário médico.

Além do consentimento informado, há, no artigo 11 da lei em comento, a previsão das „diretivas antecipadas de vontade‟ em que a pessoa, em pleno gozo de suas faculdades mentais, pode expressar quais são os tratamentos a que deseja submeter-se, e quais os que pretende repelir. O médico responsável pelo tratamento do paciente deve aceitar essa declaração, desde que não implique em prática de eutanásia.

Observe-se, contudo, que a Lei 26.742/2012 foi falha em alguns aspectos. Apesar de existir norma da província de Buenos Aires, aprovada pelo Conselho Diretivo de Escrivães, criando o primeiro „Registro de Atos de Autoproteção de Prevenção de uma Eventual Incapacidade‟, o ato normativo federal foi silente quanto à criação de um registro nacional de testamentos vitais. Além disso, não regulamentou a questão dos menores de idade, nem a possibilidade de escusa de consciência por parte do médico, e, contrariando a essência do que se pretende com a prática da Ortotanásia, autorizou a rejeição do paciente aos cuidados paliativos.

Diversamente, na Noruega, a „lei de tutela‟ (tradução livre)59

, que regulamenta o „mandato para o futuro‟(tradução livre)60

, foi editada no ano de 2010, porém, somente entrou em vigor naquele país em julho de 2013. Em princípio, naquele país nórdico, assim como no

59

Law of guardianship. 60 Future Power of Attorney.

Brasil, a procuração tradicional perde seus efeitos quando o mandante se torna incapaz para reger os seus atos da vida civil. Todavia, a regra norueguesa foi alterada para que, em observância à orientação do Conselho Europeu, havendo previsão no instrumento procuratório, o mandato possa ter a sua eficácia diferida para o momento futuro e certo do estado de inconsciência do sujeito. Ainda segundo essa legislação, o mandante deve ser maior de idade e pode constituir mais de um procurador, seja para administrar questões financeiras, seja para cuidar das questões existenciais, devendo o documento ser escrito, à semelhança do testamento, na presença de duas testemunhas e assinado pelo declarante (HAMBRO, 2013, p. 305-311).

Do mesmo modo, a legislação editada na Suíça permite a emissão de „mandato duradouro‟ para surtir efeitos quando o declarante atingir o seu estado de incapacidade, exigindo, porém, que o documento seja feito de próprio punho, datado e assinado pelo declarante, por meio de escritura pública, e registrado em uma central de banco de dados. Ademais, a lei suíça permite a criação de uma diretiva antecipada de vontade para as decisões relativas à saúde do declarante, sem exigir as formalidades do mandato duradouro. Estas são mais restritas que aqueles, pois ficam limitadas à escolha dos tratamentos de saúde a serem realizados no doente. Essa lei determina que a indicação de existência de uma diretiva antecipada esteja registrada no cartão de saúde do paciente, ficando este livre para escolher onde guardar o documento que contém suas disposições de vontade para sua saúde. O médico fica obrigado a cumprir a diretiva antecipada, salvo se o seu conteúdo ferir a lei ou se houver sérias dúvidas quanto à veracidade dos desígnios ali contidos (SCHWENZER; KELLER; 2013, pp. 375-380).

Analisando a diversidade de regulamentações quanto aos meios legais existentes para fazer valer a autodeterminação da pessoa natural no que concerne aos seus desígnios para quando alcançar o estágio da terminalidade, percebe-se que o direito brasileiro está muito aquém das previsões internacionais sobre o assunto. Isso porque, como já visto, nosso ordenamento jurídico limitou-se a regulamentar a matéria por meio de resoluções editadas pelo Conselho Federal de Medicina, sem que o Congresso Nacional, até então, tivesse disciplinado a matéria, de modo específico.

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