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O direito de viver sem o prolongamento artificial

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Academic year: 2021

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MARIA CARLA MOUTINHO NERY

O DIREITO DE VIVER SEM PROLONGAMENTO ARTIFICIAL

Dissertação de Mestrado

Recife 2014

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MARIA CARLA MOUTINHO NERY

O DIREITO DE VIVER SEM PROLONGAMENTO ARTIFICIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas/ Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção de título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Teoria e Dogmática do Direito

Linha de Pesquisa: Transformações nas Relações Jurídicas Privadas e Sociais Orientador: Professor Doutor Paulo Luiz Netto Lôbo

Recife 2014

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Catalogação na Fonte

Bibliotecária Karine Vilela CRB/4-1422

N456d Nery, Maria Carla Moutinho

O direito de viver sem prolongamento artificial / Maria Carla Moutinho Nery. – Recife: O Autor, 2014.

96f.

Orientador: Paulo Luiz Netto Lôbo.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2014.

Inclui bibliografia.

1. Direito constitucional - Brasil. 2. Direito civil – Brasil. 3. Ortotanásia. 4. Dignidade humana. 5. Doenças terminais – aspectos jurídicos. I. Lôbo, Paulo Luiz Netto (Orientador). II. Título.

342 CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2014-012)

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O DIREITO DE VIVER SEM PROLONGAMENTO ARTIFICIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife/ Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito.

Área de Concentração: Teoria de Dogmática do Direito Orientador: Prof. Dr. Paulo Luiz Neto Lôbo

A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível de Mestrado, e a julgou nos seguintes termos:

MENÇÃO GERAL: ___________________________________________________________

Professor Dr. Paulo Luiz Neto Lôbo (Presidente-Orientador/UFPE)

Professor Dr. Roberto Paulino Albuquerque Júnior (1º Examinador externo/UFPE)

Julgamento:________________________ Assinatura: ________________________________

Professora Drª Fabiola Albuquerque Lôbo (2ª Examinadora interna/UFPE)

Julgamento : ______________________ Assinatura : ________________________________

Professor Dr. Torquato da Silva Castro Júnior (3º Examinador interno/UFPE)

Julgamento : ______________________ Assinatura : _________________________________

Recife 17 de janeiro de 2014. Coordenador: Prof. Dr. Marcos Antônio Rios da Nóbrega

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À minha mãe, Lúcia Moutinho. Com ela aprendi a dar os primeiros passos, a ler, a escrever, a ser, a lutar pela vida, a amar, a respeitar e a fazer o bem sem olhar a quem. Por ela, segui os trilhos da vida acadêmica e com ela perseguirei os caminhos mais estreitos por onde se alcançam as grandes conquistas. Ao meu esposo, Fábio Nery, pela paciência e pelo amor incondicionais durantes esses anos de muita renúncia e dedicação.

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AGRADECIMENTOS

Ao professor, orientador e amigo, a quem tanto admiro, Paulo Luiz Netto Lôbo pela serenidade e competência em conduzir esta pesquisa com a maestria e a humildade que lhes são peculiares;

Aos amigos Marcos Ehrhardt e Expedito Lima que abriram as portas e me mostraram quão lindo é o horizonte da vida na academia;

Aos professores da UFPE - Fabíola Albuquerque Lôbo, Larissa Leal, Roberto Paulino e Torquato de Castro Júnior, sem os quais essa pesquisa não teria sido levada a efeito, pelo aprendizado diário que tanto me engrandeceram como estudante e como pessoa;

Aos amigos da UFPE - Maria Rita Holanda, Luciana Brasileiro, Gustavo Andrade e José Barros, que tanto contribuíram para o meu crescimento com afeto, carinho, apoio e atenção, e os quais aprendi a amar e admirar;

A minha família! Minha Mãe, Lúcia Moutinho, um exemplo a ser seguido. Com doçura, força e competência, ela alcançou o mais alto título da academia, o pós-doutoramento, posição onde um dia pretendo chegar. Meu pai, Múcio Moutinho, e meu irmão, Luiz Mário Moutinho, por me fazerem iniciar a carreira jurídica, estimulando-me à busca do saber, com exemplos de seriedade, compromisso e honestidade. Ao meu irmão Paulo Góes Moutinho, à minha cunhada Claudia Nicoletto e à minha madrasta Nivalda Moutinho pela crença no alcance desta vitória e pela compreensão dos longos meses de ausência. Às minhas irmãs do coração Maíra Bailey e Camila Fonseca, pelo envio de textos, pelo apoio, pelo carinho e pela torcida. Ao meu esposo, Fábio Nery, meu fã número um, pelo suporte diário, pelos finais de semana renunciados, pela paciência e sobriedade durante essa longa jornada;

A Neurinete Carvalho pela paz, sabedoria e serenidade que me deu, as quais me mantiveram firmes na realização deste trabalho;

Ao amigo, médico e estudioso da medicina Paulo Hernando Ferraz pelas orientações e textos sempre bem aceitos sobre a ciência médica;

Aos colegas dos Grupos de Pesquisa „Virada de Copérnico‟ da UFPR, em especial, Marcos Alberto Rocha Gonçalves, Carlos Pianovsky e Viviane Girardi, e „Perfis de Direito Civil‟ da UERJ, principalmente, Paula Francesconi, Eduardo Nunes e Fernanda Nunes Barbosa, sempre solícitos em enviar-me textos e outras contribuições para esta pesquisa;

A Maria Lia pela presteza e disponibilidade em me orientar sobre as normas da ABNT. Ao professor João Luís Lins pelo conhecimento singular da Língua Portuguesa e pelos ensinamentos grandiosos na transmissão de um texto claro e coeso;

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Aos amigos do Tribunal de Justiça de Pernambuco pela confiança, carinho e compreensão. Ao meu chefe, o Desembargador Eduardo Sertório, por reconhecer os valores e o conhecimento que só o ambiente acadêmico pode nos proporcionar, dando-me a oportunidade para novos desafios profissionais.

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“Minha profissão é dizer o que penso” Voltaire

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RESUMO

NERY, Maria Carla Moutinho. O direito de viver sem o prolongamento artificial. 2014. 96 fl. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.

Esta dissertação enfoca o direito de viver sem o prolongamento artificial e como esse direito pode ser exercido no Brasil. Para tanto, fez-se uma análise doutrinária sobre a ortotanásia, a eutanásia, o suicídio assistido e a distanásia com o objetivo de melhor compreender as situações da terminalidade da vida. Em seguida, estudou-se os princípios da autonomia privada e da dignidade da pessoa humana como fundamentos para o exercício do direito de viver sem prolongamento artificial. Fez-se uma análise do tema na com o estudo da Constituição Federal, dos Códigos Penal, Civil e de Ética Médica, das Resoluções do Conselho Federal de Medicina e dos Projetos de Lei em trâmite no País. Verificou-se a possibilidade de se empregar o testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro como instrumento hábil para o exercício do direito de viver sem prolongamento artificial. Fez-se uma análise da experiência internacional sobre o assunto, notadamente, quanto as leis editadas na Espanha, em Portugal, na Argentina, na Noruega, na Suíça, apontando os acertos e desacertos destas legislações. Encontrou-se a representação mista como uma alternativa para alcançar o direito de viver sem prolongamento artificial sem que a declaração de vontade prestada nos momentos de lucidez pelo paciente terminal perca a sua eficácia. Como base teórica, utilizou-se a doutrina do direito civil-constitucional, com ênfase nos direitos da personalidade, tomando como fundamento os princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada.

Palavras-chave: Vida. Ortotanásia. Autonomia privada. Dignidade humana. Testamento vital.

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ABSTRACT

NERY, Maria Carla Moutinho. The right to live without the artificial prolongation. 2014. 96 fl. Dissertation (Master's Degree of Law) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.

This dissertation focuses on the right to live without the artificial prolongation and how that right may be exercised in Brazil. As such, there is a doctrinal analysis of orthothanasia, euthanasia, assisted suicide and dysthanasia to better understand the terminal situations. That force us to study deeply the doctrine of civil and constitutional law in the analysis of existing normative regulations in Brazil on the subject, through the study of the Constitution, the Criminal Code, Civil Code and Medical Ethics Code, the Resolutions of the Federal Council of Medicine and Bills pending in the country. There was the possibility of using the living will in the Brazilian legal system and skilled to perform the self-determination of the patient terminal instrument when he becames incompetent. There was an analysis of international experience on the subject , notably , as the laws published in Spain , Portugal, Argentina , Norway, Switzerland , pointing out the rights and wrongs of these laws . The attorneyship show us an alternative way to achieve the right to live without artificial prolongation without a declaration of will in moments of lucidity provided by terminal patients lose their effectiveness. As a theoretical background, we used the doctrine of civil and constitutional law, with an emphasis on personal rights, taking as a basis the principles of human dignity and personal autonomy.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADI Ação direta de inconstitucionalidade

ADPF Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental CCB Código Civil Brasileiro

CDC Código de Defesa do Consumidor CEM Código de Ética Médica

CF Constituição Federal CPB Código Penal Brasileiro CPC Código de Processo Civil CRM Conselho Regional de Medicina EEG Eletroencefalograma

LCT Limitação Consentida de Tratamento NSV Não-Oferta de Suporte Vital

ONR Ordem de Não-Ressuscitação OMS Organização Mundial de Saúde PL Projeto de Lei

PLS Projeto de Lei do Senado RSV Retirada de Suporte Vital SNT Sistema Nacional de Transplante STF Supremo Tribunal Federal

RENTEV Registro Nacional do Testamento Vital

VOLP Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa UTI Unidade de Terapia Intensiva

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ... 111 1 A TERMINALIDADE DA VIDA ... 155 1.1 Ortotanásia ... 166 1.2 Eutanásia ... 233 1.3 Suicídio Assistido ... 29 1.4 Distanásia ... 311

1.5 Crítica à expressão “morte digna” ... 333

2 OS PRINCÍPIOS DA AUTONOMIA E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DO DIREITO À VIDA SEM PROLONGAMENTO ARTIFICIAL ... 377

2.1 Autonomia da vontade, autonomia privada e autonomia do paciente ... 377

2.2 Liberdade e Dignidade Humana ... 433

3 A REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA DA ORTOTANÁSIA ... 477

3.1 A Constituição Federal ... 48

3.2 A ortotanásia segundo a perspectiva dos códigos penal, civil e de ética médica. 533 3.3 As resoluções do Conselho Federal de Medicina. ... 633

3.4 Os Projetos de Lei em tramitação no Brasil. ... 68

4 O “TESTAMENTO VITAL”: UMA DECLARAÇÃO VÁLIDA E EFICAZ ... 722

4.1 Experiência Internacional ... 755

4.2 Condições de validade e eficácia. ... 78

CONCLUSÃO...85

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INTRODUÇÃO

O objetivo desta dissertação é a análise do direito de viver sem o prolongamento artificial. Esse direito pode ser entendido como a extinção da vida de um paciente em estágio terminal de forma indolor e fugaz, sem sofrimento. O tema se insere na área de Direito Civil-Constitucional, com ênfase na doutrina dos direitos da personalidade bem como na Teoria dos Direitos Fundamentais, partindo do pressuposto de que o direito à ortotanásia é um tipo de direito da personalidade, garantido pelo sistema constitucional brasileiro.

O marco teórico utilizado para o desenvolvimento deste estudo foi a doutrina do direito civil constitucional, segundo a qual os institutos de direito civil são interpretados segundo a orientação dos princípios constitucionais, tomando como base as publicações do Professor Paulo Luiz Netto Lôbo.

O estágio terminal de um doente está relacionado à evolução das técnicas médicas de reavivamento. Isso porque, tradicionalmente, até o Século XVIII, os enfermos passavam seus últimos dias em casa, ao lado dos entes queridos, com o acompanhamento do médico da família. Os hospitais guardavam uma natureza protetiva e assistencialista aos desafortunados, pois a morte, tanto como o nascimento, era um acontecimento social, próprio das famílias.

Com as duas grandes guerras mundiais, o progresso tecnológico também alcançou a medicina. As técnicas de reanimação possibilitaram a remoção de pessoas gravemente doentes de suas casas para os hospitais, onde realizariam todos os esforços terapêuticos possíveis, em favor da manutenção da vida. Os médicos deixaram sua condição de „médico da família‟ para ocuparem a função de especialista em determinado ramo da medicina.

A escolha da terapia mais adequada à doença ficava a cargo desses profissionais que adquiriram um poder de decisão maior que o do próprio paciente em estágio terminal ou da família deste. Os tratamentos das enfermidades passavam a fazer parte do cotidiano médico, despersonalizando-se o processo de morte (MENEZES, 2003, p. 105).

Há uma perseguição irrefletida pela cura da doença, ainda que em detrimento do bem-estar do enfermo. As atenções se voltam para a enfermidade e para as descobertas científicas de novas terapias, ficando em segundo plano o ser humano, os interesses na minoração do sofrimento dele e o seu conforto físico e mental. Isso gera a despersonalização do paciente, pois se mantém a vida pela busca de uma cura inatingível, olvidando-se que o essencial é cuidar do enfermo e não da doença a ele acometida.

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Em oposição a essa prática, emergiu a necessidade de se repersonalizar o processo de finitude da vida. As doenças fatais, vistas como parte do ciclo vital, deixam de ocupar o centro das atenções para que o ser humano volte a assumir esta posição, por meio da medicina paliativa, que tem por objeto a minoração da dor em vez da busca desenfreada pela cura. Nesse sentido, os avanços tecnológicos não mais se prestam para retardar o processo de morte, mas para viabilizar esse acontecimento da forma mais tênue possível, utilizando os aparatos médicos para poupar os pacientes de dores desnecessárias.

É nesse cenário que a prática da ortotanásia, objeto da presente dissertação, está inserida, pois a pesquisa trata de situações em que, uma vez afastadas as possibilidades de cura, espera-se a morte chegar, proporcionando ao paciente a minimização da dor e a maximização do bem-estar dentro do contexto da doença por ele vivenciada. Optou-se pela Ortotanásia em razão deste fenômeno, até o presente momento, ser o único dentre os fenômenos da terminalidade da vida aceito pelo direito brasileiro.

A dissertação está organizada em quatro capítulos, além desta introdução e da conclusão. Importa esclarecer, inicialmente, que, apesar de os pacientes terminais se sujeitarem a todos os fenômenos da finitude da vida, a saber, a ortotanásia, a eutanásia, o suicídio assistido e a distanásia, este estudo prioriza a ortotanásia com enfoque no paciente terminal que tenha manifestado formalmente o desejo de não ter sua vida prolongada sem necessidade.

Optou-se pela ortotanásia porque, por enquanto, é o único autorizado pelo ordenamento jurídico, dentre os fenômenos relativos à finitude citados acima. Assim, no primeiro capítulo, faz-se uma explanação geral da ortotanásia e destes fenômenos próximos a ela, com a finalidade de ambientar o tema e de distingui-los uns dos outros.

Depois, avalia-se a inadequação do uso da expressão „morte digna‟, por meio das variadas acepções dadas a ela pela doutrina, visando a contribuir com a discussão acerca das nomenclaturas no âmbito da terminalidade da vida. Ao final deste capítulo, apontam-se algumas legislações mais avançadas sobre o tema, notadamente, as leis promulgadas na Argentina e em algumas regiões dos Estados Unidos da América, para demonstrar como esses países vêm tratando as questões da terminalidade da vida bem como referendar a inadequação da utilização da expressão „morte digna‟ como sinônimo de ortotanásia, sem a pretensão, contudo, de fazer um estudo de direito comparado sobre o assunto.

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No segundo capítulo, enfoca-se o princípio da autonomia privada sob o ponto de vista do direito, partindo da idéia inicial de autonomia da vontade construída por Immanuel Kant no Iluminismo, a qual tem conotação subjetivista, para se chegar ao conceito atual de autonomia privada, de natureza objetivista. Não haverá aprofundamentos em relatos históricos, por fugir ao objeto deste trabalho.

Ressalte-se, todavia, que a abordagem dada ao princípio da autonomia privada leva em consideração tanto atos de conteúdo patrimonial como os de essência existencial, tendo em vista que ambos estão inseridos na categoria dos atos jurídicos. O escopo da presente dissertação não é discutir a natureza dos atos jurídicos em si, mas o exercício da liberdade individual, por meio da autonomia privada no âmbito das relações extrapatrimoniais, notadamente, no que tange ao direito de viver sem o prolongamento artificial. Em seguida, demonstra-se como a autonomia do paciente é definida pela doutrina do Biodireito, particularizando a relevância do direito à informação do paciente para que este consinta na escolha de seu tratamento. Assim, deve-se enfatizar que o objeto deste estudo restringe-se à consideração dos contratos remunerados de prestação de serviço entre médico e paciente, cuja natureza é, por excelência, de consumo.

Em um segundo momento, discorre-se sobre a preservação da vida e da saúde do ser humano no âmbito da dignidade para demonstrar como o exercício da autonomia privada, um dos vértices da liberdade, materializa a dignidade humana do paciente em estágio terminal.

Mais adiante, no capítulo terceiro, estudam-se as questões relativas à terminalidade da vida na área da doutrina civil-constitucional, a partir de uma leitura da Constituição Federal Brasileira, dos Códigos Penal, Civil e de Ética Médica vigentes no Brasil, das Resoluções do Conselho Federal de Medicina e dos projetos de lei brasileiros em tramitação sobre este tema, utilizando-se a óptica kelseniana do sistema escalonado de normas jurídicas.

É oportuno registrar que a contribuição extraída das normas de natureza penal é decorrente da tendência do legislador brasileiro em criminalizar condutas atinentes à terminalidade da vida, típicas dos direitos da personalidade, razão pela qual se faz necessária uma breve explanação sobre como o direito penal vem abordando esse assunto.

O último capítulo analisa as questões acerca do testamento vital, visto como um dos instrumentos hábeis para o exercício da autonomia do paciente no que concerne ao direito de viver sem prolongamento artificial. Nesta oportunidade, avaliam-se algumas legislações editadas em outros países sobre o tema para verificar como este instituto vem sendo utilizado.

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Em um segundo momento, analisa-se a validade e a eficácia deste instrumento bem como a sua adequação no direito brasileiro, ante a legislação pátria existente sobre os testamentos tradicionais.

Importa registrar, neste ponto, que o objeto deste estudo restringe-se às hipóteses de pessoas que oficialmente realizaram a sua manifestação de vontade em estado de consciência e competência, isto é, em pleno gozo de suas faculdades mentais e, portanto, capazes para decidir sobre os últimos dias de suas existências (DWORKIN, 2003, pp. 251-262). Nesse sentido, situações de reconstrução judicial da vontade de pacientes, que não chegaram a exteriorizar sua vontade formalmente, não estão abrangidas por esta dissertação.

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1 A TERMINALIDADE DA VIDA

Sumário: 1.1. Ortotanásia. 1.2. Eutanásia. 1.3. Suicídio Assistido. 1.4.

Distanásia 1.5. Crítica à expressão “morte digna”.

A indefinição semântica está sempre presente quando se trata das questões relativas à „terminalidade da vida‟. Sobre esse assunto, registre-se que o vocábulo „terminalidade‟ já foi inserido no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras e, segundo Aulete (2013) )1, significa “estado ou condição do que é terminal”. Nesse sentido, Marília Campos Telles e Antônio Carlos Coltro (2010, pp. 290-291)afirmam que:

A terminalidade da vida é uma condição diagnosticada pelo médico diante de um enfermo com doença grave e incurável: há, portanto, uma “doença em fase terminal” e não um “doente terminal” e assim a prioridade deve ser a pessoa doente não mais o tratamento da doença, buscando o bem estar físico e emocional do paciente.

Advirta-se, contudo, que o objeto deste estudo prioriza a ortotanásia e os pacientes terminais, isto é, aqueles que são vítimas de uma doença prolongada, incurável e progressiva, cuja morte está próxima e, portanto, precisam de cuidados especiais como forma de garantir o processo de humanização na finitude da vida.

Em razão disso, deve-se esclarecer serem os doentes terminais diferentes dos pacientes em estado vegetativo persistente os quais, sendo vítimas de lesão cerebral aguda ou crônica, não têm consciência plena e são alimentados artificialmente. Nesse ensejo, Leocir Pessini (2001, p. 112) distingue os doentes em estado vegetativo daqueles em estágio terminal ao afirmar que:

Os pacientes em estado vegetativo persistente não sofrem, porque os mecanismos do sofrimento foram destruídos. Eles também não são doentes terminais, porque a sobrevivência é possível por muitos anos. Contudo, são incapazes de requerer a interrupção de tratamentos de suporte de vida.

Percebe-se, portanto, estarem esses doentes em estado de hibernação, sem nenhuma vida de relação com as demais pessoas e o sofrimento, em essência, atinge a família e não o enfermo, pois são os entes queridos que se afligem ao ver a suspensão de uma vida num leito de hospital.

Da mesma forma, o estudo não abrange as vítimas de enfermidades, acidentes ou traumas que, por conseqüência, acarretaram impossibilidade de movimentação corporal do

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doente, tal como, a tetraplegia. Exemplo disto foi o caso Ramón Sampedro, cuja vida foi retratada no filme „Mar Adentro‟.

O espanhol Ramón tinha uma vida ativa e feliz quando, aos 22 anos, sofreu uma lesão na coluna cervical, ao se lançar ao mar de cima de um rochedo, permanecendo tetraplégico por 30 anos enquanto batalhava incansavelmente pela autorização judicial da sua morte. O seu pedido não foi acolhido pelo Tribunal de Direitos Humanos de Estrasburgo e ele somente conseguiu o seu intento por meio da realização, às escondidas, de um suicídio assistido (FERRAREZE FILHO, 2010, pp. 143-159).

Os pacientes terminais não se igualam, tampouco, aos doentes em estado grave, porém com chances de cura, ainda que mínimas. É a hipótese, por exemplo, das vítimas de sepse, décima causa de morte mais freqüente nos Estados Unidos, comumente conhecida por infecção generalizada. Em termos técnicos, a sepse ocorre quando “[...] a síndrome da resposta inflamatória sistêmica é decorrente de um processo infeccioso comprovado” (MATOS; VICTORINO, 2013, p. 102).

Assim, a expressão „paciente terminal‟ está restrita a pessoas acometidas de doenças graves, cujo processo de cura não mais será alcançado, fato que implica numa mínima expectativa de vida. Pacientes assim estão sujeitas a sofrimentos físicos e psicológicos atrozes. São, por exemplo, pessoas acometidas de câncer em estágio avançado ou de AIDS, entre outras.

Nesse sentido, Genival Veloso França (2007, p. 501) assevera: “Como paciente terminal, entende-se aquele que, na evolução da sua doença, não responde mais a nenhuma medida terapêutica conhecida e aplicada, sem condições portanto de cura ou de prolongamento da sobrevivência.”. De um modo mais objetivo, Rachel Sztajn (2002, p. 107) resume doente terminal como “aquele cuja vida está próxima do fim”.

1.1 Ortotanásia

O vocábulo ortotanásia é traduzido pela expressão „morte correta‟ e a sua criação é atribuída ao professor Jacques Roskam. Ao publicar seu estudo em um congresso de gerontolgia, na cidade de Liège (Bélgica), em 1950, ele percebeu a existência de um liame entre a abreviação célere da vida, por meio da eutanásia, e o excesso de terapias, responsáveis por retardar ao máximo a morte do paciente, chamada de distanásia. O trabalho Roskam revelou ser concebível a supressão de esforço terapêutico de pacientes terminais ou de pessoas

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em estágio de vida vegetativa como uma solução social e humana para doenças incuráveis, pois, do mesmo modo que seria odioso acelerar a morte de um doente (eutanásia), a tortura do prolongamento da sua sobrevida por meios artificiais seria repugnante. A esse fenômeno ele denominou ortotanásia, referindo-se à morte justa, correta, ao tempo certo (ROSKAM, 1950, pp. 709 - 713). Aliás, é este significado etimológico da palavra ortotanásia: „morte correta‟, oriunda dos termos „orthos‟ (correto) e „thanatos‟ (morte).

O conceito de ortotanásia foi delineado por Luís Roberto Barroso e Letícia de Campos Velho Martel (2011, p. 107) ao afirmarem que:

Trata-se da morte em seu tempo adequado, não combatida com os métodos extraordinários e desproporcionais utilizados na distanásia, nem apressada por ação intencional externa, como na eutanásia. É uma aceitação da morte, pois permite que ela siga o seu curso.

Adicionalmente, em entendimento concorde, José de Oliveira Ascensão (2009, p. 431) diz que: “A ortotanásia consistiria em suspender os tratamentos extraordinários, mantendo apenas os secundários, a alimentação e os cuidados paliativos – contra a dor, por exemplo”. Todavia, cumpre registrar a compreensão dissonante de Genival Veloso de França (2007, pp. 493 e 500) sobre ortotanásia, ao considerar que:

A ortotanásia, como a suspensão de meios medicamentosos ou artificiais de vida de um paciente em coma irreversível e considerado em “morte encefálica, quando há grave comprometimento da coordenação da vida vegetativa e da vida de relação. (...) Ipso facto, a ortotanásia, constante da supressão de meios artificiais para o prolongamento da vida de um indivíduo em “coma dépasse”, já merece a compreensão da sociedade, tendo em conta que ele se mantém com respiração assistida, arreflexia e perda irreversível da consciência, associadas a um “silêncio” eletroencefalográfico. Para essas pessoas, o prolongamento penoso de uma vida vegetativa, por seus aspectos físicos, emocionais e, mesmo, econômicos, seria de nenhuma utilidade.

Lembre-se, por essencial, que o paciente em estágio irreversível de coma (“coma dépassé”) e com comprometimento da vida de relação não é carecedor de cuidados paliativos, por não estar mais vivo, segundo os parâmetros médicos e legais sobre a definição de morte encefálica.

O direito brasileiro, acompanhando a orientação dada pelo Comitê ad hoc da Universidade de Medicina de Harvard, utiliza a morte encefálica como o critério adequado de verificação e decretação do encerramento da personalidade civil do indivíduo, fornecido pela deontologia médica, positivado na Resolução 1.480/1997, do Conselho Federal de Medicina – CRM, e aceito pela doutrina civilista brasileira2. A ocorrência da morte encefálica decorre de

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um diagnóstico imutável cuja causa conhecida, é atestada por dois médicos e verificada por meio de exame clínico e de eletroencefalograma.

Nesse aspecto, os critérios clínicos para a sua verificação são dois: o coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e a apneia (artigos 3º e 4º da Resolução 1.480/1997). O coma aperceptivo constitui a impossibilidade de reflexos e de quaisquer movimentos; a ausência de atividade motora supra-espinal é a ausência total e irreversível do sistema nervoso central e a apneia, por seu turno, é a impossibilidade de respiração sem a ajuda de aparelhos. (CORRÊA NETO, 2010, p. 360).

Diversamente, praticar ortotanásia, portanto, é reumanizar o processo de finitude, porque se permite que a vida tome o seu curso natural rumo à extinção, sem a adoção de procedimentos de retardamento ou de aceleração, mediante os cuidados paliativos necessários para esse fim. Com isso, elimina-se a dilação do tratamento do paciente terminal, mantendo-se tão somente os cuidados terapêuticos, a fim de evitar a dor e o sofrimento até que o enfermo expire naturalmente.

A assistência a ser dada ao doente é integral, isto é, busca-se garantir não só o bem estar físico dele, mas também o mental e o espiritual. Desta maneira, o enfermo deve também receber suportes psicológico e religioso, de acordo com suas convicções, além do estreitamento das suas relações interpessoais, nutridas por entes queridos e familiares (ASCENSÃO, 2009, p. 444).

A medicina paliativa se materializa na filosofia do hospices. Esta palavra está vinculada ao radical do vocábulo „hospitium‟ que se significa „acolhimento‟. Nos dias atuais, o hospices designa o ambiente onde são ministradas medidas de conforto, em que não mais se obstina a cura, mas o bem estar dos doentes para reumanizar o processo de finitude, por meio de um atendimento especial prestado por uma equipe multidisciplinar.

Essa prática teve início em Londres, em 1948, por meio de um trabalho realizado pela Dra. Cicely Saunders no Hospital St. Thomas. Os ensinamentos da Dra. Saunders se propagaram pelo mundo e foram sendo aprimorados com a criação de setores de cuidados paliativos dentro dos hospitais e em domicílio (ALVES, 2001, p. 386).

O hospices, segundo Maria Helena Diniz (2007, p. 363), é um setor dentro do hospital apropriado para dar amparo aos pacientes terminais, em que se garante o pronto atendimento às necessidades especiais deles, pela prestação de auxílio psicológico e social, e com a interação entre doentes e as respectivas famílias. Além disso, a ideologia defendida pelo

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hospices busca, na medida do possível, viabilizar a liberdade do doente fora dos hospitais,

como forma de abrandar sua dor e aflição, deixando o internamento hospitalar seja a última opção de tratamento. Isso se materializa por meio de hospitais residência e de atendimento domiciliar.

Acredita-se que a prestação eficiente da assistência paliativa, por meio do hospice, mediante equipe especializada de profissionais, afasta do paciente terminal o desejo de praticar a eutanásia ou o suicídio assistido (MENEZES, 2010, p. 16).

Os cuidados paliativos são, portanto, as medidas tomadas pelos médicos para minorar o infortúnio do paciente em estágio terminal, diminuindo-lhe as dores e as tribulações. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define cuidados paliativos como aqueles destinados aos pacientes acometidos de doenças com risco de morte, visando a prestar-lhes um tratamento interdisciplinar mediante assistência física, psicológica e espiritual, aprimorando-lhes a qualidade de vida (WHO, 2011, p. 6).

Nesse amparo, as dores físicas são controladas pela prescrição de analgésicos, devendo, ainda, ser prestado o acompanhamento de profissionais na área de psicologia e psiquiatria. Tudo isto com o objetivo de minorar as angústias sofridas pelo enfermo, pois as doenças fatais normalmente vêm acompanhadas de doenças da alma, como a depressão. Além disso, a depender da crença do indivíduo, é importante a disponibilização de auxílio espiritual dado pelos capelães e ministros da fé, com a finalidade de prestar consolo nos tempos difíceis. A interação do paciente junto à família e ao meio social é essencial para que ele se sinta lembrado e amado por seus entes queridos.

Os fundamentos da medicina paliativa são relacionados por Leocir Pessini (2001, p. 209)da seguinte forma:

a) Afirma a vida e encara o morrer como um processo normal; b) não apressa nem adia a morte; c) procura aliviar a dor e outros sintomas angustiantes; d) integra os aspectos psicológicos e espirituais nos cuidados do paciente; e) oferece um sistema de apoio para ajudar os pacientes a viverem ativamente tanto quanto possível até a morte; f) oferece um sistema de apoio para ajudar a família a lidar com a doença do paciente e com o seu próprio luto.

Com tal, personaliza-se o tratamento, isto é, o feixe de luz deixa de ser a doença para alcançar quem realmente merece atenção, o doente. É ele quem precisa ser cuidado, tratado, medicado, enfim, poupado de qualquer terapia inócua para alcançar o seu último estágio vital com dignidade.

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É de se notar, ainda, que, em determinadas hipóteses, as terapias utilizadas podem gerar um duplo efeito, isto é, uma ação médica que produz duas consequências: uma almejada e imediata; outra indesejável e colateral. A primeira decorre do objetivo primordial do tratamento, ou seja, a redução da dor provocada pela enfermidade. A segunda surge das implicações colaterais da medicação e resulta na abreviação não intencional da morte do paciente. Exemplo disto é a utilização de morfina, como recurso analgésico, que pode resultar na insuficiência respiratória do enfermo e em sua consequente morte.

Nessa perspectiva, o essencial é considerar que a vontade do paciente deve ser respeitada, seja para manter uma medicação que poderá resultar na sua morte, seja para suspendê-la, o que aumentaria a dor física sofrida. Reafirme-se: é o doente quem deve optar pelo que entende ser melhor para si. Para tanto, é necessário que ele tenha o conhecimento exato do estágio da doença e, com isso, possa expressar a sua vontade de forma idônea.

Dentro desse contexto, uma vez informado dos tratamentos disponíveis e dos efeitos colaterais dele resultantes, o paciente pode, além de recusar o início do tratamento médico, optar por restringir certas medidas de esforço terapêutico. Essa limitação consentida acontece, por exemplo, quando uma pessoa com câncer em estágio avançado que, após cirurgias e sessões de quimioterapia sem resultado, opta por não se submeter à medida extrema de amputação de um membro atingido pela doença.

Além desse tipo de restrição ou recusa de terapia, o doente pode declarar seu desejo de protelar ou não o procedimento para a ocasião em que o estágio de inconsciência avançar, isto é, expressar se consente a aplicação de técnicas de reanimação e ressuscitação ou se prefere esperar a chegada da morte sem a utilização de esforços terapêuticos. Sobre as medidas de limitação consentida Luís Roberto Barroso e Letícia de Campos Velho Martel (2011, pp. 108-109) esclarecem que:

A retirada de suporte vital (RSV), a não-oferta de suporte vital (NSV) e as

ordens de não-ressuscitação ou de não-reanimação (ONR) são partes

integrantes da limitação consentida de tratamento. A RSV significa a suspensão de mecanismos artificiais de manutenção da vida, como os sistemas de hidratação e de nutrição artificiais e/ou o sistema de ventilação mecânica; a NSV, por sua vez, significa o não-emprego desses mecanismos. A ONR é uma determinação de não iniciar procedimentos para reanimar um paciente acometido de mal irreversível e incurável, quando ocorre parada cardiorrespiratória. Nos casos de ortotanásia, de cuidado paliativo e de limitação consentida de tratamento (LCT) é crucial o consentimento do paciente ou de seus responsáveis legais, pois são condutas que necessitam da

voluntariedade do paciente ou da aceitação de seus familiares, em casos

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Desta maneira, compete ao paciente, enquanto possível, escolher a forma como a sua doença será vivenciada e tratada, devendo a sua vontade ser respeitada em qualquer circunstância. A família, por seu turno, terá um papel essencial na preservação e no cumprimento da vontade declarada pelo moribundo, não devendo se furtar a atender os últimos desejos de quem está ver terminado o seu ciclo vital.

De outro modo, as mortes do Papa João Paulo II e do ex-governador de São Paulo Mário Covas são dois exemplos importantes em que a ortotanásia foi defendida e vivenciada, pois ambos, além de refutarem a utilização de técnicas de extraordinárias de tratamento ao final de suas vidas, defenderam, cada um à sua maneira, a prática da ortotanásia por meio de suas publicações.

O primeiro publicou a Carta Encíclica „Evangelium Vitae‟, em maio de 1995; o segundo, enquanto Governador do Estado de São Paulo, sancionou a denominada Lei Mário Covas (Lei Estadual Nº 10.241/99), de autoria do Deputado Estadual Roberto Gouveia, destinada aos usuários dos serviços de saúde daquele estado-membro.

Karol Wojtyla teve uma longa história como chefe da Igreja Católica, com inúmeras publicações de livros, cartas e encíclicas. Preocupado com a vinda da morte, chegou a declarar no aditamento ao seu testamento que todos deveriam estar preparados para a chegada deste dia (PAULO II, 1980, online). Entre seus escritos, João Paulo II defendeu, também, a prática da Ortotanásia, na Cúpula da Igreja Católica, ao declarar que:

Na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Por isso, o médico não tem motivos para se angustiar, como se não tivesse prestado assistência a uma pessoa em perigo.3

Anos depois, publicou a Encíclica „Evangelium Vitae‟ que atestou o valor sagrado da vida humana, buscando reafirmar a sua inviolabilidade, com o escopo de que ela seja vista pelo homem como um bem primário do início ao fim. Nesta publicação, há uma repulsa a tudo quanto se opõe à vida, notadamente, ao homicídio, ao genocídio, ao aborto e ao suicídio voluntário, em respeito ao amor de Deus pelo ser humano. Ressalte-se que a Ortotanásia não foi incluída pelo Papa como uma das formas de atos atentatórios à vida do ser humano. Ao invés, ele autorizou aos cristãos a renúncia a tratamentos fúteis de prolongamento da vida, quando o seu fim se avizinha de maneira incontestável, sem, contudo, interromperem-se os

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cuidados essenciais responsáveis por minorar o sofrimento do enfermo. O cristão tem o dever moral de procurar um tratamento para suas enfermidades, devendo as terapias disponíveis ser proporcionais à expectativa de evolução. Nesse sentido, o texto esclarece, ainda, que o repúdio a meios extraordinários de tratamento não implica suicídio ou eutanásia, pois revela a resignação do ser humano perante um fato irrefutável, a morte (PAULO II, 1995, online).

O Papa João Paulo II viria a falecer dez anos após a edição dessa encíclica, no dia 02 de abril de 2005, aos 84 anos, em seus aposentos, com vista para a Praça de São Pedro, no Vaticano, cercado dos amigos mais próximos e de muitas orações dos inúmeros fieis que faziam vigília permanente naquela praça. Vencido pelo Mal de Parkinson, que o acometia havia algum tempo, a causa direta da morte do Papa João Paulo II foi choque séptico, seguido de um colapso cardiovascular (BUZZONETTI, 2013, online). Após realizar uma traqueostomia, em fevereiro daquele ano, com a finalidade de melhorar a sua respiração, o Papa preferiu passar seus últimos dias no Vaticano, cercado dos cuidados médicos suficientes para a espera de sua partida quando, dois meses depois, o seu estado de saúde foi considerado irreversível (MENDES, 2005, p. 2).

No Brasil, especificamente no Estado de São Paulo, em 17 de março de 1999, entrou em vigor a Lei Mário Covas que autorizava, no artigo 2º, inciso VII, os usuários dos serviços de saúde a “consentir ou recusar de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados”.

A lei representou um grande avanço, permitindo ao meio médico e à sociedade dar início às discussões sobre a terminalidade da vida, com o escopo de humanizar a prestação dos serviços de saúde por meio do oferecimento de cuidados paliativos e da repulsa à obstinação terapêutica. O artigo 2º do ato normativo buscou regular a prestação dos cuidados paliativos, pois apontou a necessidade de proporcionar o conforto e o bem estar do paciente (inciso XVIII), que deve ser atendido em local digno e adequado (inciso XIX) e acompanhado por pessoas de sua confiança nas consultas e internações (no inciso XV). Além disso, o mesmo dispositivo disponibiliza ao paciente a assistência moral, psicológica, social ou religiosa, se assim ele desejar (inciso XX) bem como a opção pelo local onde almeja passar últimos dias de sua vida (inciso XXIV). Por fim, merece destaque o inciso XXIII do artigo 2º que autorizou a prática da ortotanásia ao permitir ao paciente a recusa de tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida.

Dois anos após a promulgação desta lei, no dia 6 de março de 2001, o ex-governador Mário Covas faleceu, no Instituto do Coração, por falência múltipla de órgãos, decorrente da

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irreversibilidade de um câncer. Sem possibilidade de cura, recusou-se a ir para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), preferindo passar os últimos dias de sua trajetória na companhia de seus familiares e sob o efeito de medicação para minoração da dor (ROZOWYKWIAT, 2001, p. A4).

1.2 Eutanásia

O termo Eutanásia, oriundo do grego, significa boa (eu) morte (thanatos), também conhecida como „morte doce‟ ou „morte suave‟. Originariamente, o vocábulo sugeria a ideia de morte tranqüila, isto é, ausente de dor, sem que houvesse intervenção para o seu abreviamento (ALVES, p. 28).

A protelação do tratamento do paciente terminal era eliminada, mantendo-se apenas os cuidados terapêuticos, a fim de evitar a dor e o sofrimento resultantes da enfermidade, para aguardar o óbito natural do doente. Hoje, esse comportamento é denominado de Ortotanásia e não Eutanásia, como outrora. Dividiu-se, portanto, a classificação: na Eutanásia, ainda que seja possível a cura, antecipa-se a morte; na Ortotanásia, em razão de não haver mais chances de cura, espera-se a morte mediante a minoração da dor.

Ao longo dos anos, a palavra „eutanásia‟ foi utilizada de várias formas, englobando situações divergentes entre si. Serviu tanto para métodos eugenésicos, com a finalidade de selecionar a melhor raça (eutanásia eugênica), como para práticas econômicas em que as crianças e os anciãos deficientes ou deformados eram sacrificados, por serem inúteis aos interesses da comunidade (eutanásia econômica). Chamaram-se, ainda, de eutanásia criminal os casos de pena de morte em que se imola um delinqüente socialmente perigoso. Já a eutanásia solidarística tinha por escopo salvar a vida de alguém, por meio do sacrifício de pessoa gravemente enferma para retirar-lhe os órgãos (SAWEN, 2008, p. 132).

Voltando para a significação etimológica do vocábulo, isto é, „boa morte‟, a eutanásia teve outras acepções, tais como a religiosa, vista como um favor imerecido, concedido por Deus, e a estóica, entendida como a libertação de toda inquietude terrena a que se sujeitam os mortais. Ricardo Royo-Villanova y Morales (1933, p. 26) foi quem melhor sintetizou as variadas concepções da eutanásia, englobando, entre outros, o conceito de: eutanásia natural, eutanásia teológica, eutanásia estóica, eutanásia terapêutica, eutanásia eugênica e eutanásia legal.

É a morte doce e tranquila, sem dores físicas nem torturas morais, que pode sobrevir de um modo natural nas idades mais avançadas da vida, acontecer

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de um modo sobrenatural como graça divina, ser sugerida por uma exaltação das virtudes estóicas ou ser provocada artificialmente, já por motivos eugênicos, bem com fins terapêuticos, para suprimir ou abreviar uma inevitável, longa e dolorosa agonia, porém sempre com o prévio consentimento do paciente ou uma prévia regulamentação legal (tradução livre).

Luis Jiménez de Asúa (1929, p. 186) entendeu que “Eutanásia significa «boa morte», mas em sentimento mais próprio e estrito é a que outro proporciona a uma pessoa que padece uma enfermidade incurável ou muito penosa, e a que tende a truncar a agonia excessivamente cruel ou prolongada.”. Na mesma linha de pensar, Luciano Santoro (2010, p. 21) afirmou que:

[...] pode ser entendida como a conduta, positiva ou negativa, que tem por escopo abreviar, a vida de um paciente reconhecidamente incurável, suprimindo-lhe a dor e o sofrimento. Portanto, uma pessoa dá início ao evento que causará a morte. Diferencia-se de um homicídio simples (matar alguém) por apresentar o componente de agir de forma piedosa, procurando fazer um “bem” àquela pessoa. O seu elemento caracterizador é a compaixão.

Atualmente, de forma mais simples, a eutanásia é vista como abreviamento da morte, realizado por um terceiro que, imbuído do sentimento nobre da compaixão, viabiliza a extinção da vida do paciente. A eutanásia se distingue de uma ação homicida porque a misericórdia é a motivação para a prática do ato humanitário.

Assim, os pressupostos para a configuração da eutanásia são: a conduta de terceiro (normalmente exercida por um médico ou por um familiar), o sentimento de clemência ante a enfermidade de alguém e a forma de execução, que deve ser livre de qualquer sofrimento.

Por outro lado, apesar da tentativa doutrinária de chegar a um consenso sobre a conceituação da eutanásia, reduzindo a polissemia do seu termo, a variedade de classificações quanto às suas modalidades permanece. Nesse diapasão, dentro da significação de suavidade da morte, os tipos mais freqüentes são: eutanásia voluntária, não-voluntária e involuntária e eutanásia ativa e passiva.

Entende-se que eutanásia voluntária (ou consentida) é a forma mais comum porque praticada com o consentimento prévio e expresso do paciente em estágio terminal. Nesse sentido, Álvaro Lopes-Cardoso (1986, p. 90) afirma que:

Eutanásia voluntária, ou seja, o acesso à morte, pelos meios menos dolorosos em casos de doentes incuráveis ou terminais e que manifestam (ou manifestaram enquanto conscientes) a sua vontade de que a morte lhes seja facultada com o máximo de dignidade e o mínimo de sofrimento.

A eutanásia não-voluntária e a involuntária têm como ponto comum a falta de consentimento do paciente. A diferença entre elas é que na não-voluntária inexiste a

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manifestação de vontade do doente porque ele já se encontra incapaz de emiti-la, como, por exemplo, nos casos de coma profundo. Na involuntária, diversamente, o enfermo tem condições de expressar sua vontade, mas ela é desrespeitada (SINGER, 1998, pp. 186-191).

Esta última hipótese enquadra-se no tipo de homicídio qualificado por impossibilidade de defesa da vítima (art.121, § 2º, inciso IV, do CPB4

), não se subsumindo à ideia de boa morte, por faltar-lhe elemento essencial, a saber, a vontade do paciente terminal.

Impende registrar que o fato de o enfermo se encontrar sem perspectiva de melhora, ocupando um leito de hospital e, por óbvio, realizando despesas, não autoriza nenhum profissional de saúde ou familiar a desligar os aparelhos que o mantêm vivo, com a finalidade de contenção desses gastos. Condutas desse jaez, ao invés, resultam no acréscimo de mais uma qualificadora ao tipo do homicídio, o motivo torpe (art.121, § 2º, inciso I, do CPB).

De outro modo, a diferença entre a eutanásia ativa e a passiva reside no ato comissivo da primeira e no omissivo da segunda. Na forma ativa, o terceiro responsável pela antecipação terapêutica da finitude da vida ministra, por exemplo, doses mortíferas de determinado medicamento no paciente terminal, causando-lhe a morte. Na eutanásia passiva, a conduta é um non facere que também resultará na morte do paciente. Nesta hipótese, ainda existem tratamentos possíveis para o enfermo, mas opta-se por suspendê-los, antecipando paulatinamente o advento de sua extinção como, por exemplo, a suspensão de alimentação e hidratação.

Isso foi o que ocorreu no caso da americana Terry Schiavo, acometida de um ataque cardíaco com comprometimento cerebral, enquanto se submetia a uma severa dieta de emagrecimento, em 1990. Em extensa batalha judicial, o então marido e curador de Terry conseguiu autorização para desligar os aparelhos que mantinham a alimentação dela, causando-lhe a morte em 2005 (GOODNOUGH, 2005, online).

Deve-se salientar, ainda, a distinção entre a ortotanásia e a eutanásia passiva. Apesar de parte respeitável da doutrina5 tratar a ortotanásia e „eutanásia passiva‟ como sinônimos, estes fenômenos não se confundem, pois a ortotanásia tem como fundamento a inutilidade do tratamento de cura, por não ser mais viável chegar ao fim almejado com os recursos disponibilizados pela medicina.

4

Art. 121. Matar alguém: [...] § 2° Se o homicídio é cometido: [...] IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;

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Já na „eutanásia passiva‟, como dito, omitem-se, inclusive, os cuidados paliativos de manutenção da vida do paciente, antecipando-lhe a sua morte, como, por exemplo, mediante supressão da alimentação por via de aparelhos. Sobre essa distinção, José Roberto Goldim (2010, p. 30), doutor em Medicina e Bioética, ensina:

A melhor maneira de se descrever o que é ortotanásia é utilizar o conceito de futilidade, isto é, reconhecer que alguns tratamentos são inúteis, sem benefício para o paciente, e que podem ser não iniciados ou retirados. Não é a ortotanásia que deve ser implantada como uma nova prática, mas a

futilidade que deve ser evitada. Evitar a futilidade é retirar as medidas inúteis

que apenas prolongam, de forma indevida, a vida do paciente. [...] A

eutanásia passiva, ao contrário, suprime a implantação de medidas que ainda

trariam benefício real para o paciente. Se intencionalmente elas não forem implantadas, irão abreviar a vida do paciente, ainda que com a finalidade de reduzir sofrimentos. Esta é a diferença. O reconhecimento da situação de

futilidade, ou ortotanásia, se quiserem, evita prolongar a utilização

desnecessária de medidas sem benefícios, permitindo que a morte ocorra em seu devido tempo. O que diferencia ambas as situações são a intenção e o resultado, pois uma antecipa a morte – eutanásia passiva – e outra –

futilidade – evita prolongar a vida.

No mesmo sentido, Eduardo Luiz Santos Cabette (2009, p. 25) pontua que:

É a „morte correta‟, mediante a abstenção, supressão ou limitação de todo tratamento fútil, extraordinário ou desproporcional, ante a iminência da morte do paciente, morte esta a que não se busca (pois o que se pretende aqui é humanizar o processo de morrer, sem prolongá-lo abusivamente), nem se provoca (já que resultará da própria enfermidade da qual o sujeito padece. Nesses termos as condutas ortotanásicas diferem amplamente da eutanásia passiva, pois nesta ocorre a provocação da morte do doente terminal por meio da omissão quanto aos cuidados “paliativos ordinários e proporcionais” que evitariam seu passamento.

Há de se ter em mente, portanto, que na ortotanásia espera-se a morte chegar, proporcionando ao paciente a minimização da dor e a maximização do conforto, dentro do contexto da doença sofrida pelo enfermo. Por outro lado, na eutanásia passiva suprime-se o tratamento posto à disposição do paciente, abreviando o termo de sua existência.

Sobre esse ponto de vista, James Rachels (1975, p. 78) defende que a omissão inerente à eutanásia passiva, consistente no „deixar morrer‟, pode ser mais lenta e penosa que a ação letal da eutanásia ativa. O autor aponta a hipótese dos bebês com Síndrome de Down que nascem com obstrução intestinal e precisam se submeter à cirurgia corretiva com pouca esperança de sobrevivência. Alguns pais e médicos optam por não realizar a intervenção cirúrgica e esperam que a morte sobrevenha em decorrência da infecção e da desidratação.

Comportamentos dessa estirpe, tidos como prática de eutanásia passiva, estão distantes do que se compreende genuinamente por eutanásia, isto é, a abreviação da morte sem

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sofrimento para aqueles que se encontram acometidos de enfermidades insuperáveis, realizada por alguém imbuído de piedade. Ao invés, essa omissão implica não só a majoração da dor, como também evidencia a ausência de compaixão diante do sofrimento de alguém, enquadrando-se no tipo de homicídio qualificado por impossibilidade de defesa da vítima e mediante a prática de tortura (art. 121, § 2º, incisos III e IV, do CPB).

Impende esclarecer que a qualificadora da tortura não se confunde com o crime de tortura, previsto na Lei 9.455/97. Aquela se refere à provocação da morte de alguém por meios torturantes; o crime de tortura, por seu turno, diz respeito à utilização destes recursos com a finalidade de obter informações ou confissões de alguém.

A abreviação da vida por omissão de tratamento, chamada de eutanásia passiva, não se coaduna, em essência, com o que se pretende com a eutanásia, aproximando-se muito mais das formas árduas de eutanásia de outrora como, por exemplo, a eugênica e a econômica.

Por outro lado, não se deve olvidar que muitos são os argumentos favoráveis e contrários à prática da eutanásia. A corrente vitalista tem seu fundamento na sacralidade da vida. Esta é vista como um bem irrenunciável e absoluto que antecede ao direito e supera a autonomia da vontade, não sendo possível haver um direito subjetivo à morte porque daquela não se pode dispor. Neste sentido, seria inconstitucional, por ofensa ao artigo 5º, caput, da Constituição Federal, qualquer regramento tendente a macular a vida humana (DINIZ, M. H., 2007, p. 439).

Além disso, os diagnósticos podem ser falhos e a possibilidade de superveniência de novos tratamentos é sempre possível para a ciência. Tais fatos tornam a decisão do paciente passível de instabilidade, pois, ao tomar conhecimento de novos tratamentos, o enfermo, se consciente, poderia vir a desistir da ordem de não reanimação por ele proferida. Assim, a permissão para a abreviação da morte de alguém, para a corrente vitalista, seria um ato arriscado, pois nem sempre é possível aferir a real motivação do pedido proferido pelo familiar ou pelo médico, se por motivo altruísta ou oportunista.

Na concepção dessa corrente, não existem parâmetros objetivos para a estimativa do sofrimento dos doentes, pois o que é insuportável para alguns é ultrapassável para outros. Dessa forma, não há a possibilidade de autorizar a morte de alguém em estágio de dor exacerbada, quando não se tem um meio seguro para mensurar o que essa dor representa (FRANÇA, 2007, p. 494).

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Os fundamentos dessa corrente vitalista são passíveis de críticas, pois, conforme se verá no capítulo seguinte, o direito à vida não é absoluto. Se o fosse, o ordenamento constitucional não permitiria a pena de morte no artigo 5º, XLVII, aliena „a‟, tampouco admitiria como excludente de ilicitude, a realização do „aborto necessário‟, quando não há meios de salvar a vida da gestante, e do „aborto humanitário‟, em que a gravidez resulta de estupro (art. 128 do CPB).

Ademais, a má-fé dos familiares ou de profissionais médicos que têm interesses escusos para a abreviação da morte de alguém, não se presume. Ao invés, dessas pessoas se exige o dever de cuidado, de prestar informações claras e verdadeiras e de preservar os desejos de última vontade do paciente.

O sofrimento decorrente de uma doença terminal não pode ser descrito; diversamente, é vivido. Argumentar que não há parâmetros para a aferição do sofrimento de alguém não afasta, mas corrobora a tese de que é a vontade do paciente que deve ser respeitada. Somente ele sabe como e até quando suportará os efeitos da enfermidade. Nesse aspecto, a ciência deve estar a serviço do homem, de modo que traga melhoria à qualidade de vida de todos, e não para escravizá-lo e postergar o que é inevitável. O enfermo, diante das informações que lhe forem prestadas, precisa ser ouvido.

Dessa forma, enfocam-se como fundamentos da eutanásia: a qualidade da vida, o sofrimento incalculável, a compaixão, a irreversibilidade do diagnóstico e a preservação da autonomia individual. Seguindo estes argumentos, Austrália, Holanda, Suíça e Bélgica promulgaram leis que autorizam a prática de eutanásia (BARBOZA, 2010, pp. 31 - 49; FRANÇA, 2007, pp. 494 - 499).

A qualidade de vida não está relacionada aos bens materiais reunidos durante o seu curso ou à forma de usufruí-los, mas se destina à capacidade de realizar as atividades cotidianas do ser humano como, por exemplo, levantar-se, sentar-se e alimentar-se. Nutre-se o sentimento de compaixão por alguém que está acometido de doença cujo diagnóstico seja irreversível, com a finalidade de mitigar-lhe o sofrimento, aplacando a dor.

Nesse sentido, repise-se, não se está a defender a tese de que alguém é inútil no meio social, em razão da enfermidade, para descartá-lo do mundo existencial, realizando um tipo de eugenia seletiva, com o propósito de salvaguardar aqueles que servem para continuar vivos. Não é a sociedade ou o Estado que vão fomentar a abreviação da morte de pessoas com vidas dispendiosas ou inservíveis e selecionar pacientes sem qualidade de vida para praticarem

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eutanásia. Ao contrário, o paciente sabedor das próprias limitações e enfermidades é que deve optar pelas terapias a que deseja se submeter, em observância ao seu livre arbítrio.

Deve-se buscar a preservação do direito de escolha das pessoas. Cada um é responsável por suas predileções, no decorrer da vida. Assim como todos são autorizados a optar por construir ou não uma família, ou ter filhos, ou galgar um espaço no mercado de trabalho, dentro de suas possibilidades, deve ser disponibilizada a alternativa para o prolongamento ou não da vida com o suporte de aparelhos e remédios.

A ressignificação da eutanásia, numa perspectiva civil-constitucional, é a de que a sua prática não é um pensamento utilitarista, mas humanitário. Enxerga-se a morte não como um mal ou um castigo, mas como o último estágio da existência em que se deve preservar a vontade do seu protagonista.

1.3 Suicídio Assistido

Na mesma linha de pensar da eutanásia voluntária estão as razões que levam o paciente a buscar o suicídio assistido, ou auto-eutanásia, a saber, o sofrimento demasiado, a péssima qualidade da vida e a enfermidade incurável. Em oposição a esses argumentos, a já referida corrente vitalista defende que os médicos não devem transmudar-se em homicidas, instruindo seus enfermos a como se alcançar a abreviação da vida, quando os analgésicos já não mais abrandam a dor física. A eles não é dado o direito de poupar o sofrimento dos seus pacientes desta maneira (DINIZ, M. H., 2007, pp. 20-103 e 334-376; FRANÇA, 2007, pp. 510-515).

Esse fenômenos distingue-se, por sua vez, da eutanásia na medida em que o agente provocador da abreviação da vida é o próprio paciente terminal, que recebe auxílio de terceiro para a consecução do seu desiderato. No suicídio assistido, há apenas uma colaboração para a prática do ato; na eutanásia, de modo diverso, é o terceiro quem executa o gesto humanitário (PESSOA, 2013, pp. 85-86).

Importa ressaltar, ainda, que a abreviação da vida, por meio do suicídio assistido, depende da consciência inequívoca do paciente, pois a execução do ato letal é dele, em pleno gozo do seu livre arbítrio, enquanto na eutanásia, em algumas hipóteses, isto não seria possível, como, por exemplo, quando o paciente já mergulhou em coma profundo.

Ademais, o auxílio de terceiro para este fim é essencial à caracterização do suicídio assistido, pois é ele quem viabiliza os meios necessários à realização da conduta do paciente

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terminal. Sem essa participação, o fato jurídico restringe-se à prática de suicídio simples, motivado por sofrimento demasiado decorrente de enfermidade incurável (SANTORO, 2010, p. 124).

O surgimento da AIDS, nos anos oitenta, contribuiu para que muitas pessoas desejassem o suicídio, ao constatar que não viveriam os próximos anos da forma que queriam, a despeito de não terem atingido, ainda, o estágio final da doença. Obviamente, essas pessoas eram punidas quando alcançavam seu intento.

Davi Zimerman (2010, p. 129) pontuou o suicídio assistido da seguinte forma:

Já a expressão suicídio assistido refere ao fato de alguém, geralmente o médico de confiança, oferecer ajuda necessária para facilitar a morte da pessoa que deseja – conscientemente – e que está com uma doença incurável ou fatal a curto prazo – que claramente, querem por fim ao seu ciclo de vida e não encontram meios de como praticá-lo (a morte de Freud, que durante algumas décadas tinha um sofrimento atroz devido a um incurável, na época, câncer de maxilar, resultou de um acordo sigiloso com o seu médico assistente).

Assim, o suicídio assistido é a abreviação da vida, praticada pelo próprio paciente terminal, acometido de doença incurável, por meio de auxílio de um terceiro (médico, familiar ou pessoa de sua confiança), imbuído de sentimento altruísta. Essa prática é autorizada, por exemplo, na Suíça e em alguns estados-membros dos Estados Unidos da América. A legislação americana6 estabelece que, para se autorizar o suicídio assistido, são necessárias avaliações psiquiátricas e exames médicos com comprovação de diagnóstico e constatação de que todas as possibilidades de tratamento foram exauridas.

Os casos mais emblemáticos de suicídio assistido foram realizados com o auxílio do médico Jack Kervokian, conhecido como “Doutor Morte”, no Estado de Michigan, o qual prestou mais de cem assistências a pacientes que apresentavam um diagnóstico exato de irreversibilidade da doença, além do manifesto desejo de acabar com seus sofrimentos. O Dr. Kervokian filmava as entrevistas com seus pacientes, esperava um período de reflexão e, em seguida, permitia que eles tivessem acesso a uma das várias máquinas construídas por ele, para a realização do „ato humanitário‟, ora por meio de injeções, ora por meio de inalação de gás (SCHREIBER, 2011, p. 63).

Processado várias vezes, preso, perseguido por ativistas natalistas e com sua licença médica cassada o objetivo do Dr. Kevorkian era que a sua causa humanitária chegasse à

6 Lei 127.800 até Lei 127.890, Lei 127.895 e Lei 127.897 do Estado de Oregon e Lei 70.245.010 até Lei 70.245.904 do Estado de Washington

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Suprema Corte americana. No entanto, isto não foi possível, por ele ter sido absolvido de todas as acusações de participação na provocação de suicídio assistido, ao apresentar, no Júri, as filmagens dos depoimentos dos seus pacientes. Finalmente, por ter praticado um ato de eutanásia ativa, aplicando injeção letal no paciente Thomas Youk, que sofria de esclerose amiotrófica (doença neurodegenerativa), com a finalidade de se ver novamente processado. Desta vez, o corpo de jurados o considerou culpado de homicídio, tendo ficado preso entre os anos de 1999 e 2007, sem que seu recurso chegasse à Suprema Corte, segundo reportagem de Dirk Johnson, publicada no jornal The New York Times7

.

Por outro lado, o médico Timothy Quill, no Estado de Nova York, receitou barbitúricos para sua paciente Patrícia Trumbull, acometida de leucemia, instruindo-lhe sobre a quantidade que deveria ser ingerida para que ela antecipasse o fim do seu sofrimento, o que a levou a óbito. Nesse caso específico, não houve punição ao médico nem pelo Júri daquele estado, nem pelo Conselho de Medicina, que entenderam não haver má conduta por parte dele, pois sua participação não constituiu causa direta da morte. O Conselho consignou que a conduta do Dr. Quill distinguia-se da do Dr. Kevorkian, uma vez que aquele mantinha estreita relação com sua paciente e sabia das limitações e necessidades dela, enquanto este conhecia os seus pacientes superficialmente sem que houvesse nenhum relacionamento duradouro entre ele e seus doentes (DWORKIN, 2003, pp. 261-262).

Percebe-se, todavia, que o propósito para a conduta de ambos foi o mesmo: o sentimento altruísta de libertar os seus pacientes do sofrimento exacerbado que suportavam. Logo, não havia razão para que uma e outra prática humanitária tivessem tratamento distinto, sendo uma punida pela entidade médica, e a outra não.

1.4 Distanásia

O vocábulo „distanásia‟ também é originário do grego. A tradução do termo resultaria na morte desgraçada ou morte difícil, pois o prefixo „dys‟ tem o sentido de dificuldade, contrariedade ou desgraça (PEREIRA, I., 1984, pp. 154 e 262) enquanto „thanatos‟ significa morte.

Assim, pode-se entender por distanásia a morte lenta e eivada de demasiado sofrimento, em que as técnicas de prolongamento da existência são aplicadas de modo irracional e exagerado, sem que haja a preocupação com a qualidade de vida do paciente, mas,

Referências

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