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Experiência religiosa, sagrado e revelação: “Santo Daime, um Ser Divino”

4 MOSAICO DE MEMÓRIAS: histórias e narrativas ao Som e na Luz da Floresta

4.9 Experiência religiosa, sagrado e revelação: “Santo Daime, um Ser Divino”

A experiência religiosa, o contato com a divindade, as revelações místicas ou espirituais, assim como o processo de autoconhecimento, para os sujeitos do campo religioso aqui estudado, passam pela relação com o sacramento da doutrina religiosa que seguem. A bebida sacramental é um veículo de ligação com a natureza, com o Eu Superior, com Deus. Observamos ser ele mais que um intermediário, um meio, um veículo: o Daime, junto ao conjunto cultural e de representações sociais das mais diversas tradições sagradas, é um “Ser Divino”, contendo em si o conhecimento Universal e a capacidade de revelar, através da expansão da consciência, despertar da consciência ecológica. Os depoimentos mostrados a seguir trazem respostas, sobre a experiência do sagrado e a relação do seguidor com o Daime, e mesmo sobre o que é o Daime. Vejamos as narrativas. Segundo declara Alex Polari de Alverga:

“O Daime é o daime” [risos]. Existe realmente, a bebida é o instrumento, é o sacramento, é a bebida sacramental e tomar o Daime dentro do contexto da nossa religiosidade é o sacramento. Pra mim é minha maneira de me conectar com a realidade divina, com o sagrado, com o próprio plano espiritual. Desde que eu percebi essa possibilidade de acessar a Deus, ao divino dentro do si mesmo que na verdade é a mesma coisa, e compreender que esse trabalho é o nível da consciência, então pra mim se tornou minha praia a amaneira que eu tenho trabalhado durante esse tempo. Evoluído, conhecendo um pouquinho mais sobre os mistérios da criação da vida, e pretendo

continuar trabalhando com ele nesta encarnação pra poder seguir a minha viagem, bem tranquilo [risos].

Aqui, está refletida a visão compartilhada entre os daimistas da concepção da bebida enteógena, o Daime, como sacramento da religião e seu uso como parte inseparável da expressão da liberdade religiosa desse grupo. A busca na divindade refletida na introspecção humana, pelo mergulho interior, e o estudo da natureza em suas potências de conhecimento universal, fazem parte dessa religiosidade.

Vejamos como Rômulo Azevedo compreende o Daime:

Eu diria com o daime, não só com a bebida, mas fundamentalmente com a doutrina. Eu particularmente nunca tomei daime fora do ritual religioso. Primeiro que eu não vejo sentido, a pessoa tomar aquilo, não sei nem pra quê, então. Talvez eu esteja enganado, pode ser que eu tome um dia e tenha uma revelação que eu não teria dentro da igreja, mas até hoje eu sempre tomei no ritual. Então, eu tenho uma relação muito boa porque vejam bem, o que é que me mantém no Daime? Os resultados que eu vejo na minha vida pessoal. Então eu vejo os progressos hoje, os avanços, não só na questão da minha compreensão da minha trajetória espiritual, mas sobre tudo nas demandas materiais, no dia-a-dia, nos problemas da vida cotidiana que nós enfrentamos, o daime tem sido bastante revelador pra mim. Então, tenho uma relação muito boa com ele, graças a Deus.

Nesse depoimento, assim como no seguinte, o Daime, a bebida, não é vista separadamente dos códigos e práticas doutrinárias. Sendo partes de um mesmo ser a que são atribuídos desígnios espirituais e materiais. Para Marconi Soares Costa:

O sagrado está em tudo, na minha vida acho que está na frente de tudo, depois que eu conheci o Daime a gente passa a ver o sagrado sobre outra ótica. Porque a gente vê que a realidade espiritual ela existe realmente, a vida espiritual ela realmente de fato existe, tão certa como essa realidade que a gente está aqui. Então a gente tem que ver o Sagrado de uma forma que a gente ... pra gente evoluir, pra se aperfeiçoar, entendeu? Pra poder galgar degraus maiores na vida espiritual porque eu acredito que não é só isso aqui, a gente aqui tá passando um estágio, um laboratório, um aprendizado, pra poder subir pra níveis superiores entendeu? Outros níveis. [...] Através do Daime, a gente entra em contato com o sagrado, o sagrado, não só o sagrado externo, mas o sagrado dentro da gente também, o sagrado interno, e eu acredito. Dentro da Doutrina também ensina, a gente tem também o Eu Superior, uma luz interna que é o nosso Eu Divino, então a gente tem que acessar, tem que procurar acessar esse Eu Divino através de trabalhos mesmo de auto aperfeiçoamento, corrigir os defeitos, ver os erros, entendeu? E o sagrado é isso aí, é conquistar, ter uma visão do ... sagrado, tem que trabalhar bastante. A doutrina, a nossa doutrina é trabalho, o nome já diz, nossa sessão é um Trabalho, vou fazer um

Trabalho, porque realmente é um trabalho, ta ali cantando, trabalhando internamente e externamente entendeu? As forças, as energias espirituais internas e externas também que estão ali pra receber a cura, receber os ensinamentos, através do Daime, dos hinos [...].

Esse depoimento apresenta uma visão totalizante do universo e da experiência com o sagrado através do Daime. O entrevistado acredita que através do uso da bebida sagrada pode empreender expedições externas e mergulhos internos em busca de conhecer a si mesmo, da evolução espiritual. Esclarece como componente das crenças do culto a existência de um ”Eu Superior” e mesmo um “Eu Divino”. Também apresenta a definição do Santo daime como sendo a “a doutrina do trabalho” e a crença em “energias” e a doutrinação dos seres através do Daime e dos hinos. A possibilidade desse encontro com o “Eu superior”, a experiência com o sagrado, é uma característica dos cultos enteógenos. Sobre o Daime Ronaldo Porfírio da Silva afirma:

O Santo Daime pra mim, quando ele se apresentou, na minha vida e que ele me mostrou, desde a primeira vez, a minha revelação foi muito forte e hoje em dia tudo que tá acontecendo na minha vida, eu já tive essa revelação da primeira vez que eu participei do trabalho lá de cura com os meninos. Eu posso te dizer com certeza que tudo lá foi me mostrado, até o que vai acontecer, só que eu não acreditei muito, fiquei muito, vamos dizer assim, eu fiquei teimando ainda. Mas hoje em dia, as coisas que acontecem na minha vida, nesse tempo, que eu estou tomando daime, tudo está se realizando, mesmo eu duvidando. Eu nem pedi pra acontecer, mas as coisas aconteceram, até ás vezes eu neguei, muitas vezes, dizer não, não quero, mas só que como eu disse, não fui eu que escolhi foi um chamado. Então o Santo Daime pra mim faz parte do meu cotidiano, do meu dia-a-dia dentro da minha família, da minha casa, do meu trabalho. Como eu disse: é um professor, pra mim é como um padre pra igreja católica, como um pastor pra igreja evangélica, é como um pai de santo num terreiro, então pra mim o daime é meu professor. Ele me guia, me orienta me mostra os meus mínimos defeitos, as coisas que no nosso dia-a-dia você não dá importância, acha que aquilo é uma besteira, e ás vezes quando eu tomo o Santo Daime, o Santo Daime: ó! aquela besteira que tu achou que era besteira, aquilo é uma coisa que é importante, então tu vai lá e tu tenta corrigir isso aí, porque essas besteirinhas aí que vão fazer toda diferença no final. Que vão te diferenciar de uma caminhada espiritual, de uma caminhada que você não tá nem aí pra um caminho religioso ou espiritual, ou como quer que seja chamado. Então pra mim o Santo Daime, não vou dizer que seja tudo, mas é noventa e nove por cento. Então mudou completamente a minha vida, eu tive uma transformação enorme depois que eu conheci o Santo Daime, passei por uma fase assim de três anos assim na minha vida desde que eu conheci o Daime que, vamos dizer assim, eu me transformei do avesso, o que era dentro veio pra fora, o que era fora voltou pra dentro de novo ou saiu de mim. Então, pra mim a

importância que eu dou o Daime é a minha caminhada nessa vida, são as revelações que eu tenho espirituais, o meu entendimento, o meu saber, o meu comportamento. Então é fundamental hoje em dia pra mim o Santo Daime, hoje em dia sem o Santo Daime eu não sei nem aonde eu estaria, talvez eu não tivesse nem aqui hoje dando essa entrevista, se não fosse o próprio Santo Daime. Então na minha vida e na vida da minha família é muito importante. E eu mesmo tendo as pedras do caminho, os degraus a serem subidos, as dificuldades a serem vencidas, pretendo continuar nessa doutrina. Conhecer ainda mais o Santo Daime, que eu tomo há dez anos, mas parece que foi ontem a primeira vez que eu tomei Daime. A minha revelação como eu falei, ela foi tão forte que me demonstrou coisas pra minha vida toda, e até hoje quando eu tomo Daime, me vêm coisas que eu vi na minha primeira vez, que hoje em dia que eu tenho a compreensão. Então eu acredito que é pra minha vida toda. Enquanto eu tiver nessa terra caminhando aqui, eu não encontrei outro lugar onde eu posso dizer que encontrei a verdade, nem que seja a minha. Mas a que me deixa feliz, é o que me dá força no meu dia-a-dia. Ás vezes você pensa no trabalho, que você vai passar a noite todinha bailando, ás vezes você até reluta: rapaz hoje eu não vou não. Mas depois que você vai que você termina o trabalho, você diz: era pra eu ter vindo mesmo, ter concluído esse trabalho. Porque é dele que você vai obtendo mais força, mais respostas, mais força no seu dia-a-dia pra você continuar nessa vida tão corrida, e vamos dizer louca, que agente vive nos dias de hoje. E a distancia que o mundo está desse caminho espiritual, que o principal nessa nossa busca é essa, uma busca de uma realização espiritual de uma realização material, mesmo com todas as dificuldades. Eu acredito que o Santo Daime é isso, é pra mim um professor que me mostrou e que me mostra até hoje o caminho a seguir nessa vida, pra gente poder se equilibrar. Pra mim hoje minha vida é muito mais equilibrada, com o Santo Daime, então eu só tenho a agradecer ao Santo Daime, as pessoas que me apresentaram o Santo Daime. E só tenho a agradecer, o Santo Daime pra mim é só alegria [risos].

O depoimento acima exalta o poder de revelação do Santo Daime e demonstra o sentido de missão e de chamado, quanto à sua pertença ao culto. Reforça para Daime o caráter de planta professora e relata o processo de transformação a que vem passando na sua caminhada espiritual de experiência com o Daime. Na fala observamos como a religiosidade daimista é presente no dia-a-dia dos seguidores. A estrutura ritual, como a execução dos hinos e a ingestão da bebida, solicita aos adeptos períodos de dedicação ao culto, com ensaios musicais e dietas a serem realizados para o melhor aproveitamento da experiência com o sacramento.

A este respeito, Andréia Carrer Carvalho apresenta sua declaração:

Na anamnese que eu faço com as pessoas, quando elas me perguntam isso eu digo assim: eu posso até te dizer o que é pra mim, vou dizer, mas só entende o que é mesmo quem toma daime. Quem toma o santo

daime sabe dizer o que é essa experiência pra cada um, que é única, que é singular pra cada um. Mas pra mim especialmente o Santo Daime trouxe realmente esse religare, esse reencontro com o meu Eu Superior, com o divino. Num momento em que eu estava muito desconectada, muito perdida. Quando eu tomei o santo daime pela primeira vez eu tinha desenvolvido uma síndrome do pânico, por um acidente e depois um assalto que eu sofri, quando eu tomei o santo daime eu vi que tava tudo bem, tudo certo. Que aquilo que aconteceu foi importante e necessário para o meu acordamento. Para eu entender quem eu sou, quem eu já fui, o que eu vim fazer aqui, o que eu vou fazer ainda, pra eu poder me conhecer. Então assim, foi fundamental, eu posso dizer que realmente, aquilo que os antigos dentro da doutrina falam: a mulher que tomou o daime pela primeira vez nunca mais voltou, a que voltou foi outra, foi outra. Foi esse meu renascimento mesmo, pra conseguir olhar pra dentro de mim, de ver, teve momentos assim que eu vi tanta coisa que tava lá debaixo do tapete, que só eu e o Santo Daime podia saber naquele momento ali. E que ... como que meu Deus, isso veio a tona nesse momento? Uma coisa que tava tão bem escondida que eu nem mais lembrava, das minhas sombras das minha mazelas, enfim. E o quanto foi importante, apesar de difícil na hora, de doloroso, de eu ter chorado muito, de eu ter passado [emoção] pelas passagens que eu fiz, que eu passei. Mas o quanto foi importante e doloroso naquela época ver tudo isso naquela época, pra ter essa oportunidade de reescrever a minha história de transformar aquilo, de ser uma outra mulher, eu digo assim, de aprender. O Santo Daime me ensinou a ser mulher de verdade, irmã de verdade, filha de verdade, mãe de verdade, companheira de verdade, coisa que eu não sabia. Estava muito aquém do ser humano que Deus me possibilitou ser, do que eu estava sendo. E o daime então me possibilitou esse mergulho, e quando ele me possibilitou esse mergulho lá pra dentro de mim que eu vi, e que eu tive a chance de então, como o padrinho Sebastião dizia: eu não quero saber o que você foi. Já viu? Ótimo! Agora eu quero saber o que você é. Aí eu saí pedindo perdão pra todo mundo que eu machuquei, que fiz mal sabe, tentando ... se eu não podia corrigir ou consertar, tentando então pra frente fazer melhor, sabe. E assim eu fiz com várias pessoas, tento continuar fazendo. Porque na verdade, o encontro com o Santo Daime ... se você me pergunta o que é a experiência com o Santo Daime? Pra mim eu acho que ela foi e continua sendo, e eu acho que será para sempre pra mim: a grande escola pra que eu possa aprender, continuar aprendendo na busca que eu me dispus a fazer, depois que eu tomei o Santo Daime pela primeira vez, que é de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a mim mesmo. Que o homem já falava lá atrás a tanto tempo, só veio pra isso replantar as santas doutrinas. Então se cada dia eu puder honrar esse poder, e puder fazer com que através das minhas atitudes, dos meus atos, do meu testemunho aqui na terra de ser uma verdadeira mãe, verdadeira irmã, verdadeira companheira, verdadeira filha, eu assim estou honrando essa doutrina, esse caminho que eu escolhi que até hoje eu sou muito grata por essa oportunidade. Que eu sei que é só um reencontro com este ser divino que é o daime, é só um reencontro nosso. Mas eu agradeço profundamente, nessa encarnação ele me resgatou. Ele trouxe a possibilidade: olha acorda! Você não é essa aí não, essa daí foi aquela que se perdeu de si mesma, acorda e veja quem você é! E aí me entregou tudo que eu tenho hoje:

eu devo a minha vida, eu devo a alegria que eu tenho de viver, a saúde da minha família, eu devo ao Santo Daime.

Como dito acima, a experiência com o Santo Daime, é de cunho pessoal, e o conhecimento é intransferível através do discurso, o nível de compreensão do processo de autoconhecimento possibilitado por esse veículo, está conectada as informações e degraus de conhecimento espiritual, galgados pelo seguidor. A interpretação da expansão de consciência e tomada de sentido de transformação, passa pela categoria da fé, recurso inseparável dessa espiritualidade. O elemento exógano, externo, no caso o Daime, auxilia esse adiantamento do autoconhecimento também no campo empírico, da expansão dos sentidos, mente e visão. Como já exemplificado acima, mostraremos uma imagem que representa esses estados de unidade e conformidade com o presente, expressados na fala da entrevistada.

Figura 55 – de Pablo Amarinho

A Ayahuasca, em seus mais variados usos, é entendida em diferentes tradições e entre estudiosos como um veículo enteógeno – que liga ao Deus interior, por meio de fortes substancias psicoativas e, caracteristicamente tem seu uso evocado para fins de cura. Antes de ser usada num contexto religioso urbano, já assumia o caráter de planta

professora e curadora ou que esclarece o sujeito para que se promova a autocura, seja por meio do transe, estados alterados, ou não ordinários de consciência, e mesmo por processos purgativos (chamados entre os adeptos de limpeza). São incontáveis os nomes dados por diferentes tradições a essa bebida: yajé, Huni, vegetal, daime, hoasca, ayahuasca, e entre elas el purgo, pelos seus poderes purgativos ( ou de expulsar males).

No contexto ritual daimista, como uma continuidade dos cosmos indígena e xamânicos, a ayahuasca, ou daime, junto a outras plantas sagradas, são chamadas medicinas da floresta. No Santo Daime o próprio sacramento é um remédio, que atua na expansão da consciência associado a outros recursos de cura presentes também em outras tradições apresentando uma abordagem do uso do corpo como aparelho para se alcançar estados não ordinários de consciência, o daime, é associado a uma doutrina ou complexo religioso expresso nos hinos vivenciado desde seus rituais e estendidos as outras esferas da vida social, como observamos, aqui na história de vida de seus participantes.