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Explicações linguísticas e sociais para o surgimento do artigo definido a partir do demonstrativo ille na língua latina.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 331 7 REFERÊNCIAS

1 DESCRIÇÃO DO OBJETO

1.4 O artigo definido

1.4.2 Os artigos na abordagem latina

1.4.2.2. Explicações linguísticas e sociais para o surgimento do artigo definido a partir do demonstrativo ille na língua latina.

Segundo Iordan e Manoliu (1972, p. 245), alguns linguistas sustentam que o surgimento do artigo definido no latim deve-se à influência grega através das traduções do grego para o latim; os tradutores sentiam necessidade de colocar também o artigo que era tão frequente nos textos gregos nas traduções e recorriam ao demonstrativo latino ille para satisfazer a essa necessidade já que ele estava semanticamente muito próximo do artigo. Lausberg (1973, p. 210), afirma que o emprego do ipse e do ille era característico do “románico común”, podendo explicar tal uso muito provavelmente pelo influxo do adstrato grego. Ao se analisar a história da formação das sociedades romana e grega, pode-se imaginar que os contatos sociais mantidos pelos seus falantes tenham realmente favorecido a emergência do artigo no latim; cumpre lembrar que os autores mencionados não citam com base em quais linguistas eles defendem sua tese. Já para Auerbach (1972) e Câmara Jr. (1985), o surgimento do artigo definido não estaria relacionado ao contato que o latim manteve com o grego; mas estaria relacionado a questões de ordem linguística e social que ocorreram com a sociedade romanizada e a língua vulgar.

Para Maurer Jr (1962, p. 183), o latim clássico, ao contrário do vulgar, era uma língua sintética, deste modo, um grande número de funções e relações entre as palavras era expresso por meio de desinências e sufixos. O latim vulgar era mais analítico, mais simplificado com relação a ordem das palavras e na construção do período, apresentava verbos auxiliares, pronomes, preposições e advérbios na expressão das relações entre os termos. É devido a esse aspecto analítico citado pelo autor que, segundo Posner (1966, p.140), surge o artigo, “com a queda do sistema de declinação nominal e com a respectiva perda de marcas formais do nome, às línguas românicas coube rotulá-los através da anexação de morfemas.

Para outros autores como Elia (1979, p. 210), o aparecimento do artigo originou-se da perda da carga semântica do ille; assim, os demonstrativos ille e ipse sofreram um processo de esvaziamento semântico conferindo a eles o caráter de partícula, perdendo, assim, a tonicidade. Assim, com a perda da carga semântica, os pronomes ille e ipse, quando tomados como demonstrativos, eram reforçados com a partícula ecce ou eccu(m); segundo Posner (1966), em virtude da fraca ênfase demonstrativa desenvolvida pelo ille, as línguas românicas começaram a utilizar a partícula de reforço ecco/eccu(m). Maurer Jr. (1962, p. 79) ressalta que este reforço dos demonstrativos não é uma criação românica, pois este emprego já existia no latim.

Oliveira (1992) mostra-se desfavorável a essa ideia de que a causa da origem do artigo seja o esvaziamento do valor do demonstrativo; segundo ela, o ille não pertence nem à primeira nem à segunda pessoa do discurso, sendo definido negativamente com relação à dêixis, devido a isso, por não possuir carga semântica dêitica positiva é que esse pronome pôde originar o artigo. Acrescenta ainda que a partícula de reforço não se originou para distinguir o demonstrativo ille do artigo ille, pois a partícula também era prefixada aos termos iste e ipse.

Em contrapartida, Iordan e Manoliu (1972) afirmam que o ille demonstrativo não exigia a presença de um nome e que, enquanto pronome de terceira pessoa também dispensava a presença de um nome; assim, o sistema linguístico pode, segundo Mendes (2000), ter utilizado desta partícula de reforço para estabelecer a distinção entre o ille demonstrativo e o ille pronome pessoal.

Para Lausberg (1966), a função original do artigo definido é se referir a um indivíduo ausente, mas que já foi mencionado pelo falante; essa função identificadora seria oriunda do ipse, pronome identificador que era especialmente apto para se empregado como artigo. Já para Maurer Jr. (1959), essa função identificadora do artigo estaria relacionada com o fato do ille, com

o tempo, passar a exercer a função do pronome anafórico is; sendo esse o início de seu emprego como pronome pessoal e como artigo definido, funções que também eram exercidas por ipse.

Segundo Mendes (2000), essa divergência de opiniões entre os dois autores acima citados é apenas aparente; uma vez que a função identificadora defendida por Lausberg (1966) também pode ser vista como função anafórica, que é o que Maurer Jr. (1959) defende. Assim, Lausberg (1966) afirma que o artigo refere-se a um indivíduo ausente, mas já conhecido pelo ouvinte, pois, em algum momento, já foi mencionado pelo falante; o indivíduo pode, portanto, em uma primeira menção, referir-se a esse indivíduo por meio de uma expressão genérica e, em uma segunda menção, identificá-lo por meio de um artigo. Para Mendes (2000), o verbo ‘identificar’ pode estar sendo usado para marcar duas ações simultaneamente: tornar um termo que estava em sentido genérico mais identificado ou definido; e estabelecer uma relação co-referencial; nesse último caso, o artigo estaria sendo usado anaforicamente.

A constituição do artigo definido, de acordo com Lapesa (1961), também ocorreu a partir da anáfora. O elemento dêitico ou sinalizador era usado abundantemente na língua coloquial, isso possibilitou o amplo emprego dos demonstrativos, aumentando ainda mais o número de demonstrativos que acompanhavam o substantivo para fazer referência anafórica a um ser ou objeto mencionado antes; com o tempo, dois elementos passaram, especialmente, a exercer essa função: o ille e o ipse; este passou a indicar pessoa ou coisa que já havia sido mencionada e aquele se tornou puro signo de referência anafórica. Depois, houve a ampliação do uso de ille ou

ipse para além do campo endofórico, passando a evocar coisas que o discurso não designa, mas

que estão implícitas ou relacionadas a ele. À medida que passaram a ser usadas mais frequentemente, tanto o ille quanto o ipse foram adquirindo novas funções que surgiram através de um desenvolvimento progressivo.

Mendes (2000) acredita que a associação ou a ausência de ille e ipse junto ao nome substantivo foi ocorrendo progressivamente e realizando a distinção entre realidades atuais e conceitos virtuais, o que para ela é a distinção entre referência exofórica/endofórica e referência homofórica; esta ocorrendo quando o referente é identificável extra-linguisticamente sem ter relação com a situação e aquela quando o referente é identificável por uma situação específica.

Para outros autores, o surgimento do artigo está relacionado a questões pragmático- discursivas; dessa forma, o artigo estaria relacionado a uma vontade de melhor expressividade e clareza no latim popular. Para Maurer Jr. (1962), o latim clássico era bem menos expressivo que

o latim vulgar: o latim clássico restringiu o gosto tradicional das formas afetivas e expressivas, enquanto que, no latim vulgar, os antigos recursos expressivos permaneceram em um grau elevado, apresentando excesso de formas concretas e expressivas. Lapesa (1961) ainda ressalta uma relação entre o uso de demonstrativos com a necessidade de deixar acentuada a vivacidade expressiva da frase.

Auerbach (1972) resume as causas para o surgimento do artigo definido no latim vulgar da seguinte forma: a) com a difusão do latim, as novas populações, ao começar a usá-lo, sentiram dificuldade com o sistema da língua latina, pois possuía quatro séries de tipos de conjugação e cinco para declinação e várias particularidades e exceções; isso fez com que essa nova população confundisse e simplificasse a língua, o que ocasionou o enfraquecimento das flexões; b) as desinências no latim vulgar possuem uma posição articulatória débil, com sílabas átonas, isso fez com que facilitasse o seu desaparecimento; c) o latim clássico não favorecia a concretização dos fatos e atos particulares enquanto que o latim vulgar visava a apresentação concreta de fenômenos particulares, favorecendo as formas analíticas.

Segundo ele, muitas outras particularidades da língua surgiram com essa transformação que ocorreu no uso do latim vulgar pelos povos romanizados. Silva Neto (1970) também concorda que foi essa mudança no sistema flexional do latim que ocasionou o surgimento do artigo definido, “como acentua Meillet, se o indo-europeu não possuía artigo era por causa da autonomia de cada um dos termos da frase, mas à medida que se atrofiava a flexão o demonstrativo assumia o papel de artigo” (SILVA NETO, 1979, p. 251). Para ele, o artigo definido teria surgido no latim devido ao desejo de expressividade e clareza e que esse desejo certamente deve ter surgido em função das confusões ocasionadas pelos casos latinos com desinências iguais e pela perda de desinências.

Câmara Jr. (1985) também concorda com Silva Neto (1979) ao afirmar que o artigo definido surge devido à necessidade de clareza, uma vez que a tipologia frasal tem por base um sistema analítico com partículas conectivas que surgem para manter as relações sintático- semânticas que foram perdidas no sistema latino: “naturalmente a remodelação morfológica dos nomes está ligada a uma remodelação paralela dos padrões sintáticos, e uma nova tipologia frasal também pouco a pouco se estabeleceu”. (CÂMARA JÚNIOR, 1985, p. 23)

O que se observa é que as simplificações ocorridas na morfologia do latim vulgar favoreceram grandes mudanças no sistema flexional dessa língua; isso ocorreu em função “da

complicação do sistema latino, da debilidade das desinências finais átonas e da tendência à concretização do fenômeno expresso pelas palavras que emergiu no seio do povo romanizado.” (NAZÁRIO, 2011, p. 341); fortaleceu-se a mudança do aspecto sintético para o aspecto analítico, possibilitando a independência de palavras em relação ao sistema sintético do latim clássico. Tudo isso fortaleceu mudanças semânticas na forma de se usar os pronomes demonstrativos ipse e ille, que passaram a exercer a função de marcar a categoria gramatical de determinação e definitude, função essa que antes era exercida pelas desinências perdidas. Esses pronomes deixaram de exercer a função de localização no espaço e passaram a determinar o nome, satisfazendo a necessidade de especificação de seres. Cumpre lembrar que tudo isso só ocorreu por que tanto o latim vulgar quanto as línguas românicas desenvolveram um sistema linguístico que possibilitou a independência das palavras.