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pessoa jurídica para fraudar e abusar de direitos já que, por trás dela, se escondem indivíduos que podem manipulá-la, de modo a prejudicar terceiros e sócios não administradores. Daí a necessidade de encontrar um mecanismo de coibição das referidas práticas, imputando ao seu responsável as conseqüências do mau uso da personificação, preservando a pessoa jurídica, mantendo-a intacta, quanto aos atos não problemáticos.

Paralelamente ao fenômeno da relativização dos direitos que se deu em razão da funcionalização do Direito, verificou-se também a relativização da pessoa jurídica, através do reconhecimento da sua instrumentalidade. Assim, não se mantém o tabu de que há uma rígida e intransponível separação entre a pessoa jurídica e as pessoas que a controlam e têm direito de orientar seu direcionamento. De acordo com o exposto por Justen Filho (1987, p. 45),

A pessoa jurídica é e só pode ser um instrumento para a obtenção de resultados proveitosos para toda a sociedade. A personificação societária afigura-se como funcionalmente envolvida na consecução de valores e não se encerra em si mesma.

A desconsideração da personalidade jurídica é o fenômeno pelo qual se aprecia uma situação jurídica como se sociedade e sócio não fossem pessoas diferentes. Surgiu no cenário jurídico como uma construção jurisprudencial, que passou a considerar a personificação como uma técnica instrumentalizada pelo direito para facilitar as relações jurídicas entre o organismo social (formado pelos sócios) e terceiros, conforme refere Coelho (1989, p. 89). Com essa teoria, dois dos princípios jurídicos de maior relevância a nortearem a vida das sociedades comerciais e civis com personalidade jurídica passam a ser atacados: o princípio de que a pessoa jurídica tem existência distinta da de seus sócios e o princípio de que a responsabilidade dos sócios será limitada ao montante por ele investido na sociedade.

Quando o ordenamento jurídico proporciona a certas organizações sociais a possibilidade de se transformarem em pessoas jurídicas, é certamente porque considera que esse é o meio mais adequado para a realização de determinados interesses de pessoas humanas. (...) Encarada deste ângulo, a personalidade jurídica é meramente instrumental: ela existe como meio para a realização de finalidades humanas. Não é possível conceber finalidades que sejam da própria pessoa jurídica.

Com a desconsideração, suspende-se a incidência das regras da personalidade jurídica. Essa suspensão, todavia, é episódica — ou seja, só acontece para algum ato específico. Este ato jurídico praticado pela pessoa jurídica permanece válido e produzirá todos os seus efeitos. Porém, o destinatário dos efeitos deste ato jurídico é alterado. Se, antes da desconsideração, os efeitos destinavam-se à pessoa jurídica (ou ao sócio), após a desconsideração esse mesmo ato passa a produzir efeitos em relação ao sócio (ou à pessoa jurídica). Em outras palavras, altera-se o sujeito que sofre as conseqüências do ato.

Ainda segundo as considerações de Coelho (1989, loc. cit.),

A idéia de que o ato constitutivo da pessoa jurídica pode, em dadas ocasiões, ter a sua eficácia suspensa, deixando, assim, de gerar conseqüências jurídicas o princípio da autonomia patrimonial, deve ser tomada como característica natural da pessoa jurídica (...) Nesse sentido, completando-se o conceito de pessoa jurídica, poder-se-ia consignar que esta é o sujeito de direito personalizado, incorpóreo e cujo ato constitutivo pode ser episodicamente ineficaz, se servir de instrumento para a realização de fraude ou abuso de direito.

É possível concluir daí que o instituto da personalidade jurídica não é absoluto e deve ser desconsiderado sempre que estiver sendo mal utilizado. A maior dificuldade da doutrina reside em sistematizar os casos em que será possível a desconsideração. Dito de outro modo, a jurisprudência norte-americana, por estar no sistema da common law, de acordo com o indicado por Requião (1998), aplica a desconsideração de acordo com a necessidade de cada caso. Não há uma preocupação em elencar legalmente os casos e as hipóteses em que se desconsideraria a personificação.

jurídicos, há uma preocupação em especificar as hipóteses que ensejariam a desconsideração, bem como os requisitos, para que essa aplicação não desvirtue o instituto da personificação. Na trilha dessa tentativa, citamos os trabalhos pioneiros na abordagem desse tema, como o de Rolf Serick, na Alemanha; o de Piero Verrucoli, na Itália; e, no Brasil, os de Rubens Requião e Fábio Konder Comparato.

É Coelho (1989) quem nos apresenta, em Desconsideração da personalidade

jurídica, as elaborações doutrinárias que aqui serão analisadas. Como fundamentos técnicos

da desconsideração são apontadas as situações que seguem, provenientes dos exames pioneiros acima citados.

Dos estudos de Rolf Serick, duas circunstâncias foram levantadas: quando se abusa da personalidade jurídica com vistas à realização de fraude e quando a desconsideração é condição de aplicação de normas jurídicas. Pela construção de Verrucoli, a personalização das sociedades comerciais é um privilégio para os seus integrantes, pois podem agir e existir unitariamente, como um grupo. Assim, todas as vezes que a personalidade jurídica esteja servindo de instrumento para situações injustas, e sempre que haja o abuso do privilégio, deverá ser desconsiderada. Na perspectiva de Rubens Requião, a situação de quando a pessoa jurídica é utilizada para fins contrários ao Direito, principalmente para a fraude e o abuso do direito, deve ser considerada. Fábio Comparato, a seu turno, doutrina as seguintes circunstâncias: quando há ausência do pressuposto formal da separação de patrimônios, ou seja, quando os sócios não respeitam a separação patrimonial e confundem o patrimônio societário com o seu particular; quando não se respeita o objeto social; quando a sociedade não esteja cumprindo o seu objetivo social, que é a produção e a distribuição de lucros. E, por fim, quando houver a necessidade de desconsiderar a personalidade jurídica, para beneficiar a

própria sociedade — é o caso da Súmula 486 do STF16.

Essas propostas são sistematizadas em duas concepções: a concepção objetivista e a subjetivista. Para a concepção objetivista (cujo defensor é Fábio Konder Comparato), geralmente a desconsideração pressupõe desvio de função, abuso ou fraude. Mas o ato em si nem sempre é ilícito. Então, a ocorrência da confusão patrimonial é um critério para a desconsideração.

Há uma outra vertente da concepção objetivista, segundo a qual a desconsideração será aplicada quando houver uma desfuncionalização do instituto pessoa jurídica. Nesta desfuncionalização, que pode se materializar através do abuso de direito, da fraude ou da confusão patrimonial, não se exige demonstração do elemento intencional do sujeito. Não se caracteriza abuso de direito apenas quando a pessoa age com a intenção de maleficência. O abuso está caracterizado quando a pessoa quer realizar objetivos diversos daqueles para os quais o direito subjetivo foi criado. O instituto jurídico sofre uma desfuncionalização.

Para a proposta subjetivista a desconsideração da personalidade jurídica ficaria subordinada à prova da intenção do agente em fraudar ou prejudicar o terceiro. Noronha, em trabalho ainda inédito, adota a concepção objetivista, dispondo que

o abuso de direito, não deverá ser encarado de um ponto de vista subjetivista, com a exigência da intenção de prejudicar outrem, como ainda entende forte corrente presente tanto na jurisprudência como na doutrina. 17

A desconsideração provoca a quebra do princípio da autonomia ou da

16 É também o caso da propositura da Ação Social por acionistas quando aprovada a responsabilização

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