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4. P RISÃO DE M ULHERES : S OBREVIVÊNCIA , C ONTROLE E R ESISTÊNCIA

4.1 As mulheres criminalizadas sobreviveram à morte

4.1.6 Exposição em praça pública: O papel dos programas sensacionalistas

Outra agência social de controle presente na maioria das falas dessas mulheres foram os programas sensacionalistas da Bahia, que representam para grande maioria da população baiana uma fonte de informação séria e verídica da realidade.

Aí Bocão veio na entrevista, vieram na delegacia, me perguntou a mim se eu queria matar a criança pra me vingar que foi o que ela que ela disse lá. Que eu tava com ciúme dela e que eu queimei a casa com ciúme dela. E pra mim vingar, eu tinha matado a criança. Bocão se coisou no que ela falou, mas não foi nada disso. [...] Aí Bocão entrevistou ela, ela falou o que quis, minha família não quis botar as cara também pra falar nada porque sabe de tudo que mora lá perto de mim. E aí tá assim. [(...] Bocão fez pergunta e aí perguntou se eu queria matar uma criança, mesmo. Eu disse que não, queria matar a mãe da criança, mas a criança eu não queria fazer nada. Que eu tinha onze filho e jamais ia fazer isso com criança. Já tomei conta de criança também, de idoso, que jamais eu ia pegar uma criança pra

fazer isso. E mais uma criança que eu gostava, que eu fiquei na maternidade, que eu cuidava dentro da minha casa como se fosse um filho. E a mãe também falou isso, que o menino gostava de mim e que eu também gostava do menino. Nessa parte aí até que ela não mentiu. E em Bocão, ele disse bem assim: “A senhora em momento nenhum sabia que o menino tava lá dentro?”. Aí eu disse: “Eu não sabia”. “Mas Ana disse que a senhora sabia, que a senhora pegou o menino nas mão dela”. Eu disse: Eu não sabia”. Na hora que eu peguei o menino, de manhã cedo, dentro da minha casa, todo cagado, com fome, chorando, eu dei banho na criança, dei o mingau de Mucilon, e levei e entreguei a ela lá embaixo, na casa de Lourdes, onde ela tava morando. Não meto mais minha mão, não toquei mais na criança. Foi isso o que eu falei também pro defensor (Lélia).

A polícia se utiliza desses programas e de inúmeras linguagens para disseminar sua versão da realidade, encontrando respaldo social e fortalecendo sua influência na decisão judicial. No caso a seguir, Luiza teve sua imagem propagada como periculosa mediante anúncios de procurada nas redes de televisão mesmo após a prisão.

Eu tava ali, eu morava em xxx, fui pro Abatu com os amigos e aí fomos abordados no carro, esse carro era roubado, aí levaram a gente pra delegacia, não tinha nada contra mim, me soltaram. Eu retornei pro mesmo lugar que eu tava, até porque eu não devia nada. Retornei pra festa de onde eu tava, fiquei na festa, quando amanheceu o dia os polícia tava lá de novo, me pegaram de novo, querendo saber o que que eu tava lá, eu falei que não devia nada e que voltei pra festa, pra continuar minha festa. Eles: “Aí não, agora você vai com a gente”. Chamou lá, pegou outras pessoa na festa com droga e aí botou todo mundo junto e aí botou formação de quadrilha por eu estar com as pessoas. Aí não conseguiram achar nada, o pessoal que tinha suas droga assumiram e eles não conseguiram provar nada contra mim, aí arquivou o processo. Por causa disso eu fiquei 7 meses e tô pagando de novo por esse mesmo caso. [...] Todas as festa que tinha eu ia. Aí eu fui, meu irmão ainda falou pra eu não ir: “Não, não vai, a gente não vai”. Eu falei: “Não, mas eu vou”. Aí eu fui pra essa festa, aí na hora de voltar, inventei voltar de carro com os amigos e aí deu no que deu. [...] Muito complicado, minha vida ficou complicado. Porque além de eles me prenderem com todo mundo. Eles pintaram minha imagem de coisas que não existia, minha foto foi até parar em carta de baralho. [...] Até em carta de baralho, a minha foto foi parar. Eu já tava presa aqui no presídio e minha foto tava passando na televisão como procurada. Como uma das periculosas, não-sei-o-que-dá-mais. Me juntaram com outras pessoa que não tinha nada a ver. Teve uma operação, capa mermo, lá em xxxxx, que veio preso de lá pra cá até sair a coisa, me botaram junto com essas pessoa. Minha foto saiu no telefone, todo mundo dizendo que eu era periculosa, que eu já tinha matado não sei quantos, várias coisas. Botaram homicídio pra cima de mim, botaram 157, botaram formação, botaram porte de arma, botaram aliciação de menor, tudo isso foi quebrado (Luíza).

A periculosidade se repete em falas televisivas. No Direito, esse conceito é atribuído àqueles que são considerados inimputáveis (aqueles que não têm desenvolvimento mental completo), aos quais são aplicados medidas de segurança. Apresentam esse conceito, pois induzem a atribuição do adjetivo de “perigoso”

àquelas pessoas que continuamente são apresentadas nos programas sensacionalistas, negros e negras.

Além disso, reforçam o imaginário social ao dizerem que estão com a “preventiva batida”, com o mandado de prisão. São tão perigosos que a justiça está procurando e que estão alertando à todos de que são perigosos.

O Diário Oficial já, e talvez nunca foi suficiente para informar sobre a prisão de alguém, é preciso mostrar a cara, é preciso mostrar o corpo.

Me botaram na televisão como traficante. Bocão passou minha foto na televisão dizendo que eu era uma traficante de alta periculosidade, que eu tinha preventiva batida, a qual eu não tenho, que eu não fui assinar no fórum, sendo que eu fui assinar e praticamente eu não devo mais nada de uma cadeia que eu tirei em 2012, que já tem 5 anos. Passei na televisão. [...] Não, a minha foto passou. [...] Quando eu cheguei aqui as menina que me contou. Eu tava na delegacia, aí tiraram uma foto minha e disseram que não ia pra mídia. (Maria Filipa)

Perguntei quem tirou essa foto para a o programa sensacionalista “Se Liga Bocão” - apresentado por “Zé Eduardo” na rede RecordTv Itapoan, exibido das 12h às 14:30 e cuja audiência extrapola a audiência de todos os outros estados do país7 - Maria Filipa me respondeu que foi uma agente na própria delegacia. Em outras palavras, o próprio Estado permite e contribui para que essa violência continue

existindo.

Foi uma agente de lá, uma que vestia a camisa laranja e me botou num negoço assim e disse: “Não se preocupe não que é só pra ficha da delegacia”. Aí quando eu cheguei aqui as menina me disse: “Passou uma matéria que o irmão dele falou que eu só tinha 3 meses morando com ele”. Sendo que eu conhecia ele em 2013, quando eu saí daqui da cadeia, fui presa em 2012 e saí em 2013. (Maria Filipa)

Angela já havia se utilizado do envio de cartas para o programa sensacionalista “Se Liga Bocão”, apresentado por Zé Eduardo, para denunciar a morte do seu pai pelo comércio de substâncias psicoativas, mas não houve sucesso. Na sua prisão, contudo, ela foi alvo de reportagem tanto estadual, quanto nacional.

A gente mandou carta pra Zé Eduardo, Zé Eduardo não...[...] Do Se Liga Bocão [...]. Ah, meu Deus! Eu que me bata com ele [...] Zé Eduardo desde o começo, Zé Eduardo me esculhamba. [...] Oxe, passou no Bocão, passou no Jornal Nacional, passou em tudo. (Angela)

A informação da prisão também passa por um filtro seletivo. Os programas sensacionalistas mostram de forma vexatória e caricaturada a imagem que é

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Conforme reportagem no site do próprio programa:

http://www.bocaonews.com.br/noticias/entretenimento/entretenimento/169412,recordtv-itapoan-tem-a- maior-audiencia-da-emissora-no-pais.html

difundida sobre quem são os criminosos no estado. Trabalham com órgãos oficiais para viabilizar a informação simbolicamente preparada para toda e qualquer pessoa em horário abrangente, a hora do almoço.

4.2 Audiências de Custódia8 pela narrativa da Mulher Presa

Após sobreviverem e se não forem presas temporariamente, as mulheres passam a ter contato rápido com o juiz, o promotor e a defesa na audiência de custódia. Esse contato, proposto como uma forma mais humanizada e presente da análise sobre a necessidade da prisão está repleto de discriminações e comportamentos que ultrapassam o seu fim.

Audiência de custódia quando a gente é preso e leva a gente pra ter audiência de custódia. O juiz só fez me ouvir, ouviu todos, um por um, depois ouviu todos. Aí ele não quis dizer, não me disse nada. Mas eu falei, contei como foi a situação e tudo, do momento em que eu fui presa. Ele falou: “eu não quero falar”. Aí a promotora disse que a gente teria que aguardar a audiência no presídio, só, pronto [...] Nada, não quis dizer nada, o juiz. (Lúcia)

Antes, reproduzem comportamentos socialmente construídos em relação aos sujeitos já discriminados e violentados em outras instâncias. No caso das mulheres e segundo as próprias mulheres, o silenciamento e a acusação judicial são a regra enquanto que à defesa técnica é negado o respeito e a influência.