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5. P OSICIONAMENTO DE ATORES DAS INSTITUIÇÕES PENAIS

5.3 Julgando na Audiência de Custódia

Essa entrevista só foi possível mediante a ajuda de terceiro que intermediou o contato mediante os e-mails entre a entrevistadora e entrevistado. O entrevistado é reconhecido como uma das posturas mais progressistas no Judiciário baiano.

Na audiência de custódia, julgam em média três juízes por ordem de substituição, não há um juiz fixo. Após várias tentativas de contato com os demais juízes, uma negativa, um ofício ignorado, restou uma entrevista realizada com profundidade acerca da atuação do juiz na audiência de custódia e especificamente nos casos de prisões de mulheres.

O juiz entrevistado permitiu a identificação, porém por não ter provas da permissão, prefiro manter em sigilo do seu nome. Trata-se de juiz com 15 anos de carreira, sendo 10 deles na justiça criminal.

A escolha por seguir a carreira se deu pela possibilidade de fazer as coisas diferentes, substituiu a primeira resposta que era a vontade de acabar com a

impunidade. Fazer o certo para o entrevistado era um traço de personalidade, o que determina também o bom funcionamento do Judiciário.

Na verdade, eu optei por fazer o curso de Direito porque, entre as opções que eu tinha, me pareceu a que mais se alinhava aí a minha personalidade e tal. E ao longo do curso a gente acaba tentando trilhar caminhos, né? E a magistratura me encantou pela possibilidade de poder fazer alguma coisa ou fazer alguma diferente. Tentar acabar com essa (não vou dizer sensação de impunidade), mas tentar mostrar que o Judiciário pode funcionar um pouco melhor se as pessoas foram empenhadas e tal, e aí eu já acho que é um traço da personalidade, a vontade de fazer o que é certo. Então, qual é o lugar que eu posso fazer mais o que é certo? Na magistratura, talvez. E aí foi uma escolha, lógico, que consciente, mas muito intuitiva, acho que as coisas acabaram me levando para que eu optasse pela magistratura.

A atuação do juiz na área criminal para ele se deu de uma forma intuitiva e desde então começou a trabalhar em conexão com os outros poderes para melhorar as coisas que para ele significa acelerar processos. Para ele, isso é poder fazer algo diferente, significativo.

Ao longo desse caminho, a gente também vai traçando outras preferencias de forma quase que intuitiva também e faz bastante tempo que nunca me desliguei da área criminal [...] Tentar trazer algumas práticas ou interlocuções que possam melhorar ou ajudar a agilizar o julgamento dos processos enquanto de conhecimento na área criminal, coordeno mutirões (tivemos um agora em abril, agora estamos em um do júri até novembro) trabalho muito interessante de articulação com outros poderes para as coisas fluírem, assento no pacto pela vida, para trazer as coisas, afinar o conhecimento das coisas e, paralelamente a essas coisas, eu trabalhei no primeiro expediente da Audiência de Custódia lá na Mata Escura e estou envolvido com o núcleo desde então [...] Não sei dizer, acaba que é uma coisa de opção. Eu era de uma vara de jurisdição plena e fui promovido para uma de competência exclusivamente criminal. E ali você vai se afeiçoando às coisas, vai botando em prática, vê que é possível algo diferente, encurtar o tempo dos processos, isso tudo vai trilhando a sua predileção.

Pedi um esclarecimento sobre o que era “predileção” e a resposta envolveu a possibilidade de julgamento rápido dos processos, o que causaria uma melhoria no trabalho dos demais atores, bem como uma resposta rápido à “sociedade”, este ser inanimado que parece cobrar a resposta na porta da sala de audiências.

Essa resposta rápida é também a medida para a diminuição da criminalidade e vê no seu papel, a realização da justiça e não somente o exercício da função do Judiciário.

É que eu já tive experiência de trabalhar com tudo, né? Área cível, traz muito conflito de interesse privado. Quase sempre envolvendo recursos, resolvendo problemas de disputa por patrimônio. E a área criminal é de

certa forma desafiadora porque é uma área em que o serviço bem feito ou você conseguindo com os demais atores é, julgar rápido um processo, um processo de relevância e conseguindo melhorar o trabalho dos outros atores, como o trabalho da polícia, do MP, defensores privados ou públicos, de certa forma você consegue dar uma resposta rápida à sociedade, quando isso é possível. Muitas vezes é. E a ideia – quando digo até com um pouco de idealismo – é que de repente essa resposta rápida pode trazer outas consequências positivas, como a diminuição da criminalidade, porque a justiça consegue dar uma resposta rápida;

Essa resposta rápida realizada pela sentença criminal serve também para resgatar a dignidade da pessoa humana, por mais que isso possa parecer um paradoxo sobre o qual não explicou.

Vê na sua atuação uma forma de tratar o cidadão, diminuir a criminalidade e dar efetividade ao mito de uma sociedade sem conflitos.

[...] ou o resgate da dignidade da pessoa humana, porque a justiça criminal, por incrível que pareça que é o rolo compressor, é a última trincheira, de repente a justiça criminal consegue resgatar pessoas, por mais que possa parecer um paradoxo assim. Mas a gente tem exemplos aqui no Núcleo de Prisão em Flagrantes, então, é tentar fazer uma justiça criminal rápida que possa ter efeitos práticos de tratar melhor o cidadão, mesmo que ele seja envolvido com a justiça criminal e dar uma resposta para a sociedade, para que a sociedade tente diminuir a criminalidade e viver de forma mais pacífica, talvez esse seja o mote.

Acredita que antes da audiência, não era possível entender exatamente quem era o sujeito preso, o seu comportamento, o seu aspecto, o seu problema. Agora, o olhar humanizado se deve a uma resposta rápida dada pela Audiência.

Como não havia Audiência de Custódia, não se sabia exatamente quem era aquele sujeito, qual era o comportamento dele, qual era o aspecto dele, qual era o problema dele, decidia formalmente com a análise fria de papel. A Audiência de Custódia já teve um ganho enorme que ao invés de ficar preso 10 dias, ele vai ficar um (se for o caso de ser solto). Então a gente encurtou o prazo de apreciação daquele flagrante e, fora isso, a gente consegue ter um olhar mais humano em relação àquela pessoa.

Admite o fato de que prisões anteriores são incomodas ao Judiciário. Antes o juiz tinha dois perfis e duas alternativas: ou prendia o sujeito que iria custar caro para o Estado e ser cooptado pelas facções ou soltava por entender que não era o público para a unidade prisional. Porém, esse público que não é para o cárcere apresenta uma “hipossuficiência humana” e soltar não quer dizer ter um olhar mais humano sobre a personalidade da pessoa.

Há um olhar de doença e degenerescência para com certos indivíduos que não tem na liberdade um campo de exercício de sua dignidade humana, havendo, portanto, uma exigência de recuperação das personalidades pelo Judiciário.

E aí o que acontecia muitas vezes e que incomoda os juízes é que as vezes a pessoa que é levada à Audiência de custódia, ela já tem 3, 4, 5 prisões anteriores. Se a gente olhar, muitas delas é sem violência ou grave ameaça contra a pessoa, são justamente esses pequenos furtos ou ele foi conduzido por tráfico de entorpecentes, mas foi preso ali com muita pouca quantidade de drogas, para subsistência ou até mesmo ele vende, mas ele vende pra sustentar o próprio vício. E o juiz tinha duas alternativas nesse caso, ou mantinha o sujeito preso porque ele já foi preso 2, 3, 4 vezes antes, ele vai pro sistema prisional, vai ser cooptado por facções criminosas, ele vai custar R$ 3.000,00 mês para o Estado; ou simplesmente fala “esse é o público que não precisa ir pra unidade prisional”, devolve ele pra rua, e ia contar o tempo pra ele estar aqui de volta novamente, ou seja, por mais que se entendesse que o que o sujeito precisa não é cadeia, a gente simplesmente devolver a liberdade não significa ter um olhar mais cuidadoso em cima daquela personalidade, daquele hipossuficiência humana, eu tô falando aí de usuários maciços de entorpecentes etc. e tal.

Na busca pela “recuperação dessas personalidades”, o Judiciário iniciou parcerias com projetos proveniente dos movimentos sociais. Em Salvador, o objetivo da parceria com o “Corra pro Abraço” é o de salvar os criminosos não violentos, que são passíveis de recuperação. O trabalho da instituição é visto em última instância como uma forma de limpeza, para que ele deixe de viver à margem, de “ser” um criminoso, e volte para o ambiente social certo, “limpo”. Contraria os próprios objetivos institucionais e difere da perspectiva dos movimentos sociais que vê no Judiciário uma instância de violência com pessoas em situação de rua.

E aí a gente conseguiu uma parceria com o projeto “Corra pro Abraço”, da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos e, acho que Desenvolvimento e alguma coisa, Desenvolvimento Social. Eles têm aqui, no Núcleo, uma equipe multidisciplinar, todos os dias, e se a gente percebe que o sujeito tem esse perfil, não é um criminoso violento, ele tá em situação de vulnerabilidade, etc. e tal, ao invés dele ir para a cadeia – continua sendo uma decisão personalíssima do Estado – mas se ele optar por não converter o flagrante em preventiva, ele pode direcionar essa pessoa para o Corra pro Abraço, que vai trabalhar com esse sujeito formas de resgatar a sua dignidade, então eles vão atrás da família, eles trabalham em rede, eles têm apoio de hospitais e postos de saúde, eles conseguem um lugar pra dormir, eles conseguem matrícula em escolas e vão tentar trabalhar essa pessoa para que ele deixe naturalmente de viver à margem, de ser um criminoso e volte para o ambiente social certo, limpo. Na verdade, esse é o nosso objetivo.

O juiz ainda admite que há personalidades que não podem ser recuperadas. E afirma que o objetivo que o motiva é trazer as pessoas de volta para a vida e fora do sistema de justiça criminal. Portanto, admite que todos aqueles que estão

classificados como clientes do sistema de justiça criminal não têm vida, o que sugere mais do que estar fora da sociedade. Eles têm sua existência negada de modo oficial.

Em algumas hipóteses, você não é capaz de fazer isso, a depender do crime praticado, da personalidade daquela pessoa, talvez um trabalho de resgate, de dignidade ou de ressocialização seria muito mais difícil, mas tem vários outros que a gente consegue fazer isso sem precisar encarcerar o sujeito. Então é uma tentativa, ainda que bem incipiente, bem inicial, de trazer pessoas de volta pra vida para que elas deixem de ser clientes do sistema de justiça criminal. E tem funcionado bem, elas têm experiências maravilhosas, depoimentos de pessoas que vêm sendo acompanhadas e nunca mais delinquiram, que começam a se organizar, começam a sair dessa roda viva da drogradição, então são experiências enriquecedoras, sabe? E que trazem bons resultados. É isso que motiva [...]. A experiência da Audiência de Custódia me trouxe uma sensação nova de ter contato com o sujeito logo depois que ele sai do procedimento policial, então ele não tem ainda uma defesa formal estruturada, ainda que ele tenha conversado com o defensor antes, e aqui nós resguardamos isso, todos contam com o defensor. E aquela situação de você perceber que o contato pessoal com o conduzido (fala mais pausada) dá ao magistrado muito mais elementos para decidir do que o contato com o papel. Então, a Audiência de Custódia me trouxe essa sensação, aliás, essa certeza de que continuamos decidindo o processo com muito mais elementos de convicção do que antes, com muito mais riqueza de percepção do sujeito, da sua origem, da sua instrução, da sua noção de ilicitude, de seus antecedentes, isso tudo fica muito mais claro na Audiência de Custódia do que nas de papel.

Às mulheres presas não é dado tratamento diferenciado dos homens, somente nos casos específicos. Os casos são gravidez e maternidade. O dever de cuidado materno é colocado como um elemento diferenciador. O que não acontece com os homens.

As mulheres na Audiência de Custódia são muito poucas. A estatística que nós temos aqui é que eles orbitam em 5% das pessoas presas em flagrante. Naturalmente que tem sido um movimento interessante da criminalidade, de expandir sua nefasta incidência sobre as mulheres, então temos visto mais mulheres envolvidas com o crime, principalmente tráfico de entorpecentes. Os crimes violentos nem tanto. Roubo, porte de armas, nem tanto. Mas o tráfico de entorpecentes tem crescido bastante com mulheres, ainda que elas representem aqui um número pequeno de pessoas, 5%, como te disse, tem sido crescente o número delas no tráfico. A Audiência de Custódia de mulheres não tem tratamento diferente nenhum do que acontece com os homens. A não ser de questões próprias femininas, perceber se aquela mulher está grávida e dar a ela um tratamento condigno com a gravidez é uma missão da Audiência de Custódia, de repente se ela tem filhos menores, dependentes economicamente ou emocionalmente de cuidados dela, também ela terá um olhar diferenciado na audiência de custódia, mas fora isso, a lei é para todos, o que acontece com os homens acontece com elas. Via de regra é isso, não tem muita particularidade acerca das mulheres não.

Perguntei sobre algum caso que marcou. Ele falou sobre uma agressão empreendida ao marido por uma mulher com “ciúme de outra” e que a divulgação na imprensa motivou que outra mulher fizesse a mesma coisa na semana seguinte.

Até que pensando em mulheres, teve uma conduzida ao Núcleo há algum tempo que, por ciúme, briga com o marido, namorado, não sei, ciúme de outra mulher, ela jogou ácido no rapaz, e ela foi mantida presa. E o interessante disso é perceber que a divulgação de um ato criminoso como esse traz consequências no meio social, tô falando do ato criminoso e não da consequência da prisão. Porque logo na semana seguinte tivemos outro caso de uma mulher que também jogou ácido no companheiro. Então, isso talvez acenda um alerta de como a imprensa deve tratar ou como deve noticiar e se deve noticiar determinadas práticas criminosas, entendeu?

Na oportunidade de acrescentar algo a mais, caracterizou a ausência de um sistema que prenda mulheres no semiaberto em Salvador como algo indesejado e que eles faziam uma política de encarceramento consciente.

A audiência de custódia é uma política de encarceramento consciente, repercutindo de forma positiva para as mulheres porque, em comunicação com a diretora do Conjunto Penal Feminino, soube que depois de anos operavam com o número abaixo da capacidade.

Não, é só dizer que relativamente às mulheres, a gente tem uma unidade prisional aqui em Salvador que abriga mulheres, presas provisórias ou condenadas, condenadas em regime fechado, pois não há na capital unidade que recolha em regime semiaberto, ou condenadas do semiaberto ou condenadas do fechado que progridam para o semiaberto. Então a gente acaba tendo uma situação muito particular e indesejada, que é uma mulher presa preventivamente que ao ser condenada, se o for em regime semiaberto, ela acaba tendo o benefício da prisão domiciliar que é bem melhor do que a situação que ela estava antes em prisão provisória. Então ela tem na condenação algo muito menos gravoso, em termos de punição do que o que ela estava enquanto provisória, e esse é um ponto. E o outro, é que, como eu disse, que a Audiência de Custódia é um bom filtro consciente (porque não existe ninguém irresponsável aqui) de dizer quem vai entrar ou não no sistema prisional e isso acaba repercutindo também sobre o número de mulheres encarceradas, a boa notícia é que há pouco tempo eu soube pela diretora da unidade feminina daqui de Salvador, que desde há muitos anos, que ela não trabalhava lá como ela trabalha hoje, com menos pessoas que a capacidade da unidade. Ou seja, tem vaga sobrando para mulheres. Então essa política do encarceramento consciente, do encarceramento só quando efetivamente necessário, já repercutiu com relação às mulheres de forma positiva.

A taxa de encarceramento, em sua opinião, se deve à natureza feminina.

É bem perceptível que as mulheres se envolvem menos no mundo do crime. Envolvem menos, eu digo, entenda, elas praticam menos atos criminosos. Se elas são maioria da população e são 5% dos presos em flagrante, certamente as mulheres estão muito menos envolvidas na prática

de crimes que os homens, né? Então acaba sendo uma proporção razoável. O que a gente tem que fazer é com que os homens tenham esse comportamento, essa temperança e essa doçura das mulheres para que eles pratiquem menos crimes também. Eu não sei como fazer isso, como fazer com que os homens que tem um perfil violento, criminoso, possam se portar um pouco mais como mulheres para delinquir menos. Talvez seja uma questão cultural ou da própria natureza masculina que é mais impetuoso, gosta de resolver tudo pela força e aí acabam se jogando no mundo do crime. As mulheres talvez tenham um freio maior, um equilíbrio para não se dar a esse tipo de coisa.

Os elementos comuns de identificação das mulheres conduzidas até a audiência beiram à opinião comum. A isso se acrescenta o fato de que não trilharam um caminho saudável. Vê nessas mulheres uma incapacidade para realização de “crimes sofisticados”, são elas apenas vítimas do meio.

Muitas delas jovens, muitas com pouco acesso à educação, com quase nenhuma habilidade profissional, vindas de periferia, muitas com prole numerosa. Ou seja, pessoas que, em tese, não tiveram um ambiente saudável de vida, muitas inclusive envolvidas severamente com uso abusivo de drogas, então não tiveram oportunidade e se tiveram, não aproveitaram a oportunidade de trilhar um caminho saudável pra vida e acabaram descambando para o crime. Não percebi ainda, que eu me lembre, alguém assim uma mulher criminosa sofisticada, sofisticada não no seu aspecto, mas de praticar crimes sofisticados que exigissem grande elaboração, não. Acabam que elas são meio vítimas do que vem acontecendo ao seu redor, acabam se imiscuindo nisso, ou fazem uso de entorpecentes, ou acabam praticando pequenos furtos, ou pequenos roubos, ou agressões, entendeu? Muito fruto do meio ou da falta de chance de conseguir coisa melhor.

As causas da criminalidade para o entrevistado se resumem ao fruto e a falta de algo melhor. A entrevista foi pautada em uma postura higienista e a missão de consertar essa sociedade. Há a vida e possibilidades de regenerar pessoas e há os não-regeneráveis que estão fora da vida em sociedade.