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Mulheres negras e agências de controle social em Salvador: Criminalização, Morte ou Subalternidade

6. C RIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA DE MULHERES NEGRAS EM S ALVADOR : B REVE

6.2 A mulher negra e a Diáspora

6.3.3 Mulheres negras e agências de controle social em Salvador: Criminalização, Morte ou Subalternidade

Na América Latina, o racismo é a variável que dá conta das formulações acerca da atuação genocida dos “sistemas penais”. O Brasil por ser processo e resultado de uma colonização portuguesa de números exponenciais, responsável pelo extermínio massivo da população indígena e de ter movimentado grandes números na empresa de tráfico e escravização dos povos africanos, tem suas

práticas de criminalização e suas instituições14 diretamente vinculadas ao racismo desde o seu nascedouro (FLAUZINA, 2006).

A existência do povo negro no Brasil – na qual se insere também as experiências únicas das mulheres negras – foi marginalizada e criminalizada desde o primeiro código e até antes dele, quando as agências de controle social agiam na punição da população dos escravizados. No caso das mulheres negras, somam-se ao racismo, questões ligadas ao gênero.

Se antes dissexualizadas para o trabalho pesado e sexualizada para os abusos sexuais, após a “abolição”, a existência das mulheres foi marcada por estigmas da criminalidade e ameaças à ordem moral da sociedade.

No Brasil, a prisão de escravizadas se dava pelas hipóteses previstas na legislação civil e as relacionadas à penhora de escravizados ou a ações de liberdade. Nesse contexto, ressalta-se o número de escravizadas presas a pedido de seus senhores, prisão correcional que servia para garantir o poder disciplinar dos proprietários, sempre que lhes faltassem condições para efetivar a dureza dos castigos previstos para os escravos insubordinados (PINTO, 1973).

A prisão sempre significou uma extensão da condição de subalternidade. Era o local dos açoites e do pão e água. Continua sendo o local daqueles e daquelas que, sob a valoração do poder disciplinar e das instituições que o compõem, devem ser presos, quando não exterminados.

No século XIX (cujas oito primeiras décadas foram oficialmente escravocratas), Salvador tinha valores masculinos para existência das mulheres nessa sociedade patriarcal, sob o binômio da submissão e proteção. Entretanto, não se pode dizer que esse binômio era a realidade de uma vasta população feminina, concentrada nos mocambos e das ruas da cidade (PINTO, 1973).

Com uma população de descendentes de africanos escravizados e libertos que chegava a sete milhões de pessoas às vésperas da abolição e uma indisposição por parte das classes dirigentes brancas em renegociar os termos de um pacto social tão violento e assimétrico, não sobraram muitas alternativas se não avançar material e simbolicamente sobre o grupo oprimido (FLAUZINA, 2006).

Mesmo após a derrocada de relações baseadas no sistema escravocrata, sua então condição se entendeu à linguagem e rotulou essa mulher negra e a sua

população como perigosos e degenerados. “As ruas eram consideradas pelos

brancos um ambiente perigoso exatamente pela presença expressiva de negros(as) e desclassificados(as) sociais, geralmente pessoas pobres e desamparadas

(SOARES, 2001, p.36)

Desse modo, as mulheres negras eram punidas por elementos relacionados à sua condição de raça e gênero. Para além da raça que estava simbolizado na cor de sua pele, a feminilidade da época também deveria ser imposta à uma subjetividade diretamente relacionada com o exercício do trabalho. Elas eram a própria ameaça ao projeto europeu de sociedade.

Criminalizou-se a própria existência da mulher negra, uma vez que foi desconsiderada qualquer especificidade da sua formação ou de suas necessidades. Nesse contexto, o Código Criminal de 1830 mostrava que a mulher criminosa era aquela que saiu do âmbito doméstico para a experiência do cotidiano mais amplo; a mulher da rua, a prostituta ou não, sem as algemas protetoras do pater famílias, confrontando os desafios da existência (PINTO, 1973).

O projeto estatal da negação e combate da existência de mulheres negras mediante a criminalização estava tão claro que não eram apenas os valores morais básicos impostos à mulher branca que se encontrava no centro do processo criminalizador das mulheres negras. Também eram punidas pelo exercício de sua expressão religiosa ancestral. O que reforça que os controles sociais não desejavam apenas que se tornassem como as mulheres brancas, mas também que deixassem de existir enquanto mulheres negras vivas e pulsantes.

As espécies criminais mais frequentes, além de exibirem pequena gravidade, estavam associadas à vida habitual da “vida do mangue”. Em estudos, constatou-se que sessenta e oito escravizadas presas pela ocorrência de fatos relacionados com a sua própria “condição civil”. Muitas delas “encontradas em candomblé” ou em “batuques no Tabão” (expressões originais dos mapas) estariam a apresentar um estilo de comportamento deliquencial especificamente relacionado à afirmação cultural de suas raízes e a violação da religião oficial do Estado (PINTO, 1973).

O combate à cultura se estendeu do século XIX ao século XX na cidade de Salvador, quando médicos e políticos consideraram que as festas populares eram bárbaras e vulgares. Recomendavam que as famílias precisavam relegar as festas de caráter popular, pois eram ocasiões em que se processava uma intensa secularização dos costumes (ESTEVES, 1989)

Além da cultura da mulher negra, a elas também foi atribuído às definições de prostituta, situação que deveria ser combatida não apenas por afetar à moralidade pública, mas também por atrair a criminalidade ao redor dos lugares em que ficavam, locais em que floresciam toda sorte de delitos.

Na sociedade patriarcal do século XIX, a prostituição era atribuída às mulheres negras como uma causa “criminógena” essencial para a ocorrência de “desordens” ou ofensa à moral pública (PINTO, 1973).

Por tratar-se de uma essência, não existiam dúvidas sobre sua culpa e seu caráter, pois já tinha em si impregnado a semente de todo o mal. Na época, havia certa benevolência às mulheres brancas, pois concebidas como pessoas consideradas desprotegidas, ainda mis se fossem órfãs ou solteiras.

Às mulheres negras, entretanto, marcadas pela escravidão, não era dado o mesmo tratamento judicial. Nesse momento, os modelos de estratificação sexual perdem-se sob a realidade da escravidão (PINTO, 1973).

Os registros policiais e a fiscalização da ordem pública demonstraram que a população criminal feminina constitua-se principalmente de prostitutas, o que a denominação da rotina policial era a de “desordem”, fora do termo técnico adotado pelo código. Essas mulheres eram qualificadas como empregadas domésticas. Depois de desordem, as práticas corriqueiras eram a de ofensa à moral pública, furtos e, em menor potencial, vadiagem e embriaguez (PINTO, 1973).

A cidade de Salvador inicia sua longa e atual trajetória de contenção da população, das pessoas do samba e do carnaval. Era necessário manter a ordem pública (previsto no artigo 312 do atual Código de Processo Penal, criado em 1941), princípio que ainda existe e serve como justificativa para a prisão provisória de homens e mulheres, para negros e negras que passam pela Audiência de Custódia.

A subjetividade da mulher negra independente se tornou um desafio criminal indiscutível. Na verdade, em uma sociedade patriarcal, onde o elemento feminino restringe-se a permanecer, como esposa ou filha, sob a proteção de algum senhor, as ruas da cidade eram acessíveis apenas a um pequeno número de mulheres, consideradas à margem do sistema e que sofriam as consequências advindas da situação marginal (PINTO, 1973).

Zahide Machado Neto (apud PINTO, 1973) afirma que os legisladores dos anos oitenta do século XIX haviam programado, muito especialmente, para alcançar a

massa escravizada “de quem se esperava – como resultante de uma espécie de analogia entre a ignorância e o mal – a execução de crimes mais degradantes”.

Mesmo sem os dados subterrâneos da morte de mulheres negras pela Polícia, constatou-se que muitos processos não chegavam ao seu final e um dos motivos era que essas mulheres presas preventivamente morriam na prisão. O que demonstra ser a prisão provisória a herança de uma sociedade que contém e prende corpos por fundamentos genéricos. Dentre os motivos justificadores, temos a ofensa à ordem pública, à ordem econômica, conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da sanção penal (art. 312 do Código de Processo Penal).

Poucos são os casos em que foi encontrado o pronunciamento judicial, uma vez que o processo não chegava ao seu final, às vezes por falta de provas e não localizavam as testemunhas, e outras vezes porque as mulheres, presas preventivamente, maioria jovem, morriam nas prisões do Estado. Na aplicação da pena, estas sofriam penas muito maiores que as mulheres brancas (PINTO, 1979).

Mulheres negras e brancas continuam sendo tratadas e julgadas de modo diferente no século XXI. Em 2012, realizei minha primeira análise por Observação da Audiência de Custódia, quando da sua implementação e que tinha seu funcionamento dentro do Complexo Penitenciário da Mata Escura.

No mesmo mês, duas mulheres foram presas portando a mesma substância entorpecente: uma branca, moradora de bairro nobre da cidade, bairro da Barra, portava quilos da substância e outra, mulher negra, portava gramas, moradora de um bairro popular e considerado periférico. Para a primeira foi aplicado medidas diversas da prisão por apresentar residência fixa e boa personalidade, à segunda foi aplicado prisão.

Naquele dia, em uma sala improvisada, o juiz perguntou a ela: “Onde você mora?”. Ela respondeu: “Morava, né? Porque não moro mais, agora tô aqui”. Lembro que o juiz olhou pra ela e disse que ela deveria ter respeito. Ela tinha todos os elementos objetivos para conseguir a liberdade provisória, mas o juiz a prendeu porque aquela reposta era caracterizada como ofensa à Justiça o que levaria a presumir que haveria uma ameaça da instrução criminal. Mesmo após ela explicar o local que morava, ele não se convenceu.

Diante dessa situação, a subordinação de gênero é reformulada em razão da questão racial, esta prevalece no contexto do comércio de entorpecentes. Podemos sugerir que na Bahia, os aparelhos de controle social formal não tiveram como

projeto corrigir mulheres brancas desviantes, mas reprimir a população negra e as mulheres negras que representavam em si o próprio desvio.

Tanto que os discursos violentos dirigiam-se à negros e negras. Em um dos dias do trabalho de campo, cheguei e presenciei o promotor aos gritos com um jovem negro: “Me respeite que eu não sou da sua laia, não me confunda com seu tipo criminoso”.

Esse tipo de comportamento no século XXI só reforça o fato de que a criminalização não está diretamente relacionada com o combate de comportamentos, mas está relacionada ao combate da mobilidade e vida de sujeitos que foram inseridos nessa sociedade para ficarem no lugar de serviçais.

O número predominante de mestiças entre as mulheres presas também não surpreende. Poucos séculos de existência não bastaram ao País, que apenas conquistava sua independência política, para afastar a identificação a identificação entre o branco e a figura do colonizador. A vivência de instituições escravocratas, o intento de europeização que afligia as camadas senhoriais, a carência de feições culturais autóctones, tudo isso concorria para a marginalização das pessoas de pele escura, postas sob opressões de todo o tipo. O branco é o português, o senhor, o proprietário; o negro é o escravo, vindo de terras de costumes brutais e absurdos, que apenas servem a divertir a imaginação das sinhazinhas, nos salões dos sobrados (PINTO, 1979, p.55)

A criminalização feminina do século XIX decorria, em muitos aspectos, de condições gerais que afetam que afetam igualdade a homem e mulheres (de cor)15. Pobreza, ignorância, racismo, agressões à “minoria” cultural são, indubitavelmente, problemas atuantes na criminalização das pessoas recém-liberdade (PINTO, 1973).

Pode-se extrair do relatório de 1877 do Des. Luís Antonio da Silva Nunes ao presidente da Província, apresentado a Assembleia Legislativa, referindo especificamente a mulheres criminalizadas16 de modo geral.

O número de crimes cometidos no ano de 1876, quer se trate daqueles que afetam a segurança individual, quer dos que dizem respeito a propriedade, entre os quais, como nos anteriores, avultam os homicídios, os ferimentos e ofensas físicas, e os furtos, fala muito alto para, por si, demonstrar que não é mais lisonjeiro o nosso estado a semelhante respeito, e a necessidade que há de curar-se seriamente dos meios de corrigir esse mal, que priva o cidadão de um dos mais preciosos direitos [...] Nem outro resultado se poderá obter ou esperar, enquanto subsistirem as causas de que geralmente deriva-se a reprodução contínua de fatos criminosos. Entre eles,

15

Destaque acrescentado.

16 O termo utilizado pela autora é “criminosa”, mas atribuir o adjetivo qualitativo como pronome é

são muito sensíveis – a falta de força pública indispensável a destacar em todos os termos da Província, a fim de prevenir os crimes e capturar os criminosos foragidos, quem zombam da ação da Justiça; a necessidade de educação moral e civil de que se ressentem ainda diversas camadas de nossa sociedade; a falta de meios de trabalho para o excessivo número de indivíduos que vivem sem emprego, em ociosidade completa; a prostituição, os vícios que em grande escala desenvolvem-se (Des. Luís Antonio da Silva Nunes apud PINTO, 1973)

As causas da criminalidade correspondiam à condição social de homens e mulheres recém-libertos. Desse modo, as instâncias penais de controle social – o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia - no Brasil estão diretamente relacionados a combater negros e negras dede os seus primórdios.

A sua finalidade era tão evidente que nunca conseguiram agir para proteger a população negra e as mulheres negras. Quando necessitaram fazer denúncias sobre os estupros, muito deles ocorridos dentro da casa de seus empregadores, deveriam provar não terem dado causa. Porém, como as mulheres negras eram vistas como indecentes, prostitutas e qualificavam estas como domésticas, eram raras ou quase inexistentes a punição de seus agressores.

O trânsito na rua é novamente valorada para a análise judicial. As mulheres da rua não só praticavam crimes, mas também não eram vítimas de crimes, pois se colocaram na condição de perigo. A punição para o Poder Judiciário não tinha como objetivo apenas punir melhor as delinquências e desvios, mas passar imagens positivas de ordem sexual, ensinar comportamentos. Nesse contexto, a mulher higienizada não ia muito à rua, permanecia em casa com as portas fechadas, onde também deveria ser seu espaço de lazer (ESTEVES, 1989).

Desse modo, os estupros realizados contra essas mulheres não poderiam ser punidos apenas pela prova da conjunção carnal, mas também deveria ser analisa o padrão de honestidade, associado ao comportamento e a conduta, não somente à virgindade. Mulheres não honestas não poderiam ter a proteção do judiciário.

Isso tudo parece ser uma desculpa para punir e controlar as mulheres negras, pois ou morriam de fome ou decidiam trabalhar e sofrer estupros e falta de proteção. “No próprio biótipo, a mulher muleta ou mestiça já era apontada como a sedutora” (ESTEVES, 1989, p. 59).

O projeto higienizador comportava não somente o extermínio, a prisão, mas também o controle de comportamentos que eram básicos na vida da população negra da época. Nada muito diferente do projeto de Estado que ainda está em curso como herança e se difunde para as mais variadas agências de controle social.

Diante disso, pode-se sugerir que a criminalização secundária, e por vezes a primária, dirige-se aos homens e mulheres negras historicamente indesejados(as) no projeto-nação. Nesse contexto, a criminalização secundária de mulheres é realizada para detê-la ao lugar histórico da subalternidade e da negação de sua existência pela imposição cultural e social de uma sociedade que ainda busca explorar seus corpos.