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Expressão teatral: vivências para a sala de aula

3. CONSTRUINDO LEITURAS: ANÁLISE DE UM PROJETO INTERARTES

3.1 Expressão teatral: vivências para a sala de aula

Embora seja uma linguagem que ofereça muitas possibilidades para o desenvolvimento global do indivíduo, como o senso de intercooperação, a capacidade de abstração e a autoexpressão, por diversos motivos nem sempre a expressão teatral encontra lugar nos meios escolares. Seja pela deficiência no espaço, que nem sempre é adequado para tal prática, ou pelo professor em sua formação inicial não ter uma base de conteúdos segura nessa área para que possa desenvolver atividades com grau de complexidade satisfatório, o teatro ainda é um campo a ser explorado.

Considerando Bajard (2007 p.27), há no fazer teatral ou fazer de conta, o fingir ser outro em outro mundo, a criação de situações imaginárias. Essas ações fabulativas são intrinsecamente humanas e fazem parte do desenvolvimento do indivíduo. Na ação teatral, estabelecem-se relações, o jogo, a criação e a decodificação de signos, a elaboração e a reelaboração de sentimentos, situações e referências.

O teatro, em si, é formulado na conjugação da linguagem verbal e da não verbal, trazendo em seu bojo a fala e a escrita, mas também códigos não verbais que se fundem indissociavelmente para a criação do sentido como: tom de voz, expressões faciais, gestuais, corporais, imagens, desenhos, símbolos, músicas e outros recursos. A arte teatral possui, então, um caráter hibrido, pois a leitura de uma manifestação teatral requer o entrecruzamento interpretativo de manifestações diversas que podem ser musicais, literárias, de dança, de artes plásticas (no

cenário), do mesmo modo que, nas manifestações contemporâneas, existem diálogos cênicos na música, na dança ou numa instalação.

Assim, a formação do leitor, fruidor, tanto no caso do teatro ou das manifestações linguísticas híbridas ou interartes, revela a importância da formação de um tipo de leitor/espectador para o teatro que esteja presente de forma ativa, participativa (DESGRANGES, 2011, p. 28).

Na idealização da sequência de atividades, as práticas de jogos de improvisação teatral e as leituras dos livros infantis foram introduzidas com o objetivo de instrumentalizar o estudante para a elaboração de uma compreensão e interpretação mais profunda em relação às leituras e à sua própria expressão, visto que tais atividades lúdicas exigem a desconstrução e a rearticulação desta leitura em forma de ações corporais, vocais e estratégias de representação.

Em Reverbel (1996), encontra-se que os jogos teatrais se configuram metodologicamente como espaços de liberdade expressiva, com enfoque mais no processo de aquisição do domínio sobre a linguagem teatral do que em um produto final em forma de peça teatral, por exemplo. O fazer teatral escolar se diferencia do teatro do palco ou das ruas, não em sua potencialidade criativa e expressiva, mas em seus objetivos. Na escola, o objetivo maior é a conquista da autoexpressão e capacidade interpretativa, sem que com isso se almeje a formação de atores. Busca-se o desenvolvimento de ferramentas comunicativas inerentes ao próprio desenvolvimento e capacidades humanas.

Infelizmente, quando se trabalha o teatro como produto, em ambientes escolares, pais, professores, colegas e até mesmo os próprios estudantes que irão se apresentar acabam esperando um desempenho profissional, o que empobrece consideravelmente o potencial educativo de tais ações. Não se deve almejar formar na escola atores, e sim fomentar nos estudantes o desempenho das funções lúdicas, propostas como atividade didáticas, ou seja, jogos teatrais.

No fazer teatral, o indivíduo permite a ligação do seu mundo interior com o mundo exterior, adquirindo consciência de si e do outro. Assim, os participantes dos jogos teatrais devem ser considerados na condição de experimentadores e não de atores em formação (REVERBEL, 1996).

O teatro, para Reverbel (1997), é recurso auxiliar para os estudantes no desenvolvimento de suas capacidades expressivas e relacionais, da espontaneidade, da imaginação, da observação e da percepção. Poderá ser

desenvolvido em forma de atividades lúdicas, de cunho processual e de exercício da linguagem como recurso na formação cultural e da personalidade das crianças e dos adolescentes.

A referida autora divide a sua metodologia do ensino da expressão teatral em quatro etapas, sendo que a primeira corresponde ao estímulo, despertando o interesse do aluno diante de elementos como jornais e revistas, visita a exposições, audição de concertos, participação em festas populares e campanhas comunitárias ou o contato com formas artísticas e comunicativas do cotidiano visando à eleição de um tema.

A segunda etapa corresponde à sensibilização, que consiste na promoção de debates em torno de um tema eleito para ser trabalhado, na criação de cenas de reprodução e na imitação dos aspectos observados pelos estudantes, bem como na definição de situações e de personagens.

A etapa da sensibilização é seguida pela etapa do objetivo, ou seja, a proposição, definição ou construção, por parte dos alunos e/ou do professor, do que se deseja alcançar com a atividade. E por fim chega o momento do roteiro, quarta etapa, em que um esquema será elaborado pelos alunos, contendo personagem, ação, espaço cênico, local, tempo e duração.

Correspondendo à etapa de estímulo inicial descrita por Reverbel (1997), foi feita a leitura do livro infantojuvenil Ernesto, de Blandina Franco e do ilustrador José Carlos Lollo (2016). Na narrativa construída pela autora, uma solitária personagem passa por uma série de situações que demonstram que ela não é muito querida pelos colegas. Desajeitado e triste, Ernesto acaba cativando os leitores, que se identificam empaticamente com ele. Na roda de leitura, os alunos foram percebendo que sempre era dito algo sobre a personagem, porém tudo o que se referia a ela era negativo.

Nessa primeira leitura, foi grande o estranhamento dos estudantes pelo fato de a professora de arte estar realizando, junto com eles, uma roda de leitura. A confusão, segundo o que alguns exclamaram, é que “livro não é arte”, então não teria que estar em aulas de arte. Apesar disso acabaram se envolvendo com a leitura e ficando surpresos com o final provisório que os autores colocam na história, demostrando indignação, pois tudo acaba mal para Ernesto. Durante a leitura, também teceram comentários sobre acontecimentos parecidos com os descritos no livro, vivenciados na escola, inicialmente culpabilizando Ernesto pelas atitudes

atrapalhadas, e depois, concluindo coletivamente que as atitudes das pessoas em relação a ele não eram as ideais.

Adaptando os momentos indicados por Reverbel (1997), iniciou-se um

momento de debates sobre a leitura, na qual os estudantes concluíram entre outras

coisas que o que “dizem” de Ernesto, poderia não ser exatamente a verdade. E isso, aos poucos, fez com que criassem uma empatia com ele. Alguns apontaram que a personagem era vítima de bullyng.

O debate foi favorecido por uma estratégia narrativa dos autores: colocar um “Fim” na história, justamente quando todos os fatos estão contra a personagem Ernesto, e sua grande tristeza diante da situação fica mais aparente. Ao perceber o fim da narrativa dessa forma, os estudantes ficaram insatisfeitos e protestaram contra a qualidade da história apresentada pela professora. Eis, a seguir, cinco exemplos de desenhos feitos pelos jovens, no portfólio individual do aluno, para ilustrar as atividades criativas relacionadas à leitura de Ernesto.

Figura 2: Versão de ilustração da personagem Ernesto 1

Figura 3: Versão de ilustração da personagem Ernesto 2

Fonte: Arquivo da autora

Figura 4: Versão de ilustração da personagem Ernesto 3

Figura 5: Versão de ilustração da personagem Ernesto 4

Fonte: Arquivo da autora

Figura 6: Versão de ilustração da personagem Ernesto 5

Foi novamente detalhada a proposta para o trabalho com o teatro, solicitando que os estudantes confeccionassem, em casa, um boneco, para representar o Ernesto na recriação teatral da história. Foram informados da possibilidade de trabalhar com teatro, utilizando os bonecos construídos ou o próprio corpo como suporte para a representação.

A reação dos alunos à proposta demostrou a pouca intimidade com a linguagem artística de uma maneira geral, visto que os comentários de uma boa parte deles continham protestos, sobre teatro também, assim como sobre a literatura não ser arte. Questionados sobre o que seria arte e por que o teatro não

seria arte, os alunos responderam que arte seriam pinturas, coisas bonitas, mas não

souberam dizer o que seria o teatro já que não era arte. Nesse momento, foi necessário explicar o teatro como expressão artística humana, assim como a pintura, incluindo também a ideia de que a arte não necessita revelar exatamente o que é belo, pois, se ela é expressão de sentimentos e ideias, nem sempre se possui sentimentos e pensamentos bonitos e bons. Com isso, a maioria dos estudantes concordou que a arte pode expressar todo o tipo de sentimentos e que teatro poderia ser também arte.

Eis a seguir, quatro exemplos da variedade criativa dos alunos na construção de bonecos para representar a personagem Ernesto.

Figura 7: Bonecos feitos por alunos – livro Ernesto

Fonte: Arquivo da autora Figura 8: “Dedoche”– livro Ernesto

Figura 9: Boneca de palito confeccionada por aluna – livro Ernesto

Fonte: Arquivo da autora

Figura 10: Boneco de palito – livro Ernesto

Fonte: Arquivo da autora

No momento da exposição dos bonecos construídos, os estudantes ficaram bastante satisfeitos em fruir a criação uns dos outros, achando graça muitas vezes, da forma como o colega resolveu o mesmo problema: dar uma forma para Ernesto.

O formato do jogo teatral causou estranhamento na maioria dos estudantes, pelo fato da definição do senso comum de teatro pressupor um palco, figurinos, um texto pré-definido e não algo que se mostra em processo no formato de jogo lúdico. Os estudantes foram informados de que os jogos teatrais fazem parte da preparação do ator para estar no palco e que antes do momento da atuação no teatro, os atores fazem um treinamento para trabalhar a espontaneidade, a projeção da voz, as expressões corporais, faciais e vocais. Foi proposta a realização de alguns desses exercícios. Com os alunos dispostos em um círculo, foram trabalhados alguns exercícios do livro 200 jogos para ator e não-ator com

vontade de dizer algo através do teatro (BOAL, 1991 p. 74).

Figura 11: Jogos teatrais: espelho, espelho meu

Fonte: Arquivo da autora

Durante o desenvolvimento das improvisações teatrais, os estudantes riram e se divertiram bastante, o que quebrou a resistência inicial de se colocar diante de observadores, fazendo ações não usuais no cotidiano. Porém a característica coletiva dos exercícios ofereceu segurança para que pudessem se expressar com tranquilidade.

O diretor e dramaturgo brasileiro Augusto Boal é uma das mais expressivas referências em pedagogia teatral, no Brasil e no mundo. Ele apostou no dinamismo

social da linguagem teatral pela sua capacidade de instrumentalizar o indivíduo para exercer a cidadania como poderosa ferramenta de aquisição da consciência social. Para ele, o teatro desenvolveria características como capacidade de expressão, autoconhecimento, socialização, autoestima, raciocínio lógico, senso crítico, espontaneidade, intuição, criatividade.

Para realizar o teatro com os alunos, ficou estabelecido que cada aluno decidiria fazer uma representação da história da maneira que se sentisse mais à vontade: poderia utilizar seus movimentos corporais ou usar o boneco construído para representar a narrativa, que seria recriada a partir do momento em que se interrompe no final provisório.

As histórias poderiam incluir a ilustração, tal como aparecia no livro infantojuvenil Ernesto, como no exemplo da aluna A.Z, que, neste caso, poderia ser exibida pelos estudantes durante a própria apresentação.

Ninguém gostava do Ernesto só por que ele andava com seu capuz e ninguém via seu rosto e se afastava dele falavam que ele era feio chato e suas roupas feias. Então Ernesto decidiu mudar e saiu e foi comprar roupas para se arrumar melhor e foi ao cabelereiro cortar seu cabelo. Um tempo depois ele tinha se arrumado. Ernesto ficou amigo de muita gente. Ele até se casou. (História criada pela aluna A.Z. a partir do livro de literatura infantojuvenil Ernesto, de FRANCO e LOLLO, 2016).

Figura 12: Ilustração de história criada por aluna – livro Ernesto

Nas apresentações, cada grupo de alunos reagiu de maneira diferente à proposta: alguns incluíram novas aventuras para Ernesto; outros adicionaram advertências aos que faziam comentários negativos sobre ele; outros criaram histórias que só inicialmente seguiam a proposta da leitura, mas depois enveredavam por outros contextos.

Figura 13: Apresentação de teatro com bonecos

Fonte: arquivo da autora

Na apresentação, solicitou-se aos alunos que encenassem para o grupo o novo final que haviam planejado para a história. Os alunos foram, então, divididos em grupos e a partir das versões individuais foram criadas novas versões, que eram apresentadas ao restante da sala que seria a plateia.

Aos moldes do teatro do oprimido de Boal, a plateia, no entanto, poderia intervir na apresentação. Dessa forma, a história foi construída e reconstruída diversas vezes, em coautoria pelos alunos, a cada nova intervenção transformando a aula em um rico campo de experimentações, onde “experimentar é penetrar no ambiente, é envolver-se total e organicamente com ele” (SPOLIN, 2005, p. 3).

Essa etapa permitiu verificar que, considerando a possibilidade de construção de propostas de ensino interartes, o recurso do contato da criança com o jogo vai além dos momentos de diversão, tornando mais significativas a expressão e a criatividade dos participantes

Os autores mencionados demonstram, por meio de suas técnicas para jogos teatrais, a importância da ludicidade, da brincadeira, do jogo, como forma de enriquecer o repertório pessoal dos estudantes e de contribuir para a estruturação de uma sociedade autêntica, autônoma e crítica.

As atividades de expressão artística são excelentes recursos para auxiliar o crescimento, não somente afetivo e psicomotor como também cognitivo do aluno. O objetivo básico dessas atividades é desenvolver a autoexpressão do aluno, isso é, oferecer-lhe oportunidades de atuar efetivamente no mundo: opinar, criticar e sugerir. (REVERBEL, 1997, p. 34).

O trabalho desenvolvido direcionou-se para além do simples decifrar de códigos na leitura em sala de aula, caminhando para um modelo sociointeracionista, de interação com a linguagem, levando o estudante a relacionar-se com os conteúdos enfocados. Sob essa ótica, acredita-se que atividades dessa natureza possam oferecer aos estudantes condições para se posicionarem criticamente frente aos desafios da comunicação na contemporaneidade.

As atividades propostas despertaram nos estudantes a necessidade de colocar em uso habilidades necessárias para a vida social e humana. Apontaram que a perspectiva do fazer artístico, conjugado à leitura contextualizada, pode ser muito proveitosa tanto como recurso para o professor, em sala de aula, quanto para o estudante, na aquisição de conhecimentos.

A observação, a percepção, a imaginação e, principalmente, a criatividade são recursos que o indivíduo necessitará não somente nos meios escolares: são pré-requisitos, sobretudo, para que este se torne um leitor que examina a complexidade dos textos aos quais tem alcance, além da mera superfície, e seja capaz de cruzar referências e buscar conteúdos para a sua própria formação/humanização.

Assim, o fazer artístico conjugado à leitura contextualizada pode ser muito proveitoso tanto como recurso para o professor em sala de aula quanto para o estudante na aquisição de conhecimentos.