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Sem fim: as esculturas de Franz Krajcberg, a arte de Eduardo Srur e o

3. CONSTRUINDO LEITURAS: ANÁLISE DE UM PROJETO INTERARTES

3.3 Sem fim: as esculturas de Franz Krajcberg, a arte de Eduardo Srur e o

Hodiernamente, a sociedade se vê diante de problemas como o incremento do consumo, a globalização, a desintegração social e a demasiada concentração demográfica urbana, fatores que determinam o declínio da qualidade da vida nas cidades. As deficiências na interação crítica com o conteúdo midiático estão intimamente ligadas a esses problemas e, desse modo, o próximo conjunto de ações pedagógicas a ser analisado tem como foco a intertextualidade entre o livro de imagens Sem fim, da escritora e artista plástica Marilda Castanha (2016), e a obra dos artistas Franz Krajcberg e Eduardo Srur, que abordam a questão do meio ambiente.

Em vista disso, pelo seu próprio caráter abrangente, a compreensão da arte pode atuar como mediadora para o enfrentamento desse hiato entre os gêneros textuais e a leitura de mundo dos indivíduos. A apropriação crítica da chamada

cultura visual por meio da arte e de projetos interdisciplinares ou interartes pode

contribuir para a atuação mais lúcida dos indivíduos, emancipando-os para ler o mundo de maneira mais coerente e sensível (HERNÁNDEZ, 2000. p 115).

Uma grande variedade de propostas da Arte Contemporânea tem se preocupado com as relações do meio ambiente. Elas buscam uma nova lógica que compreenda as relações humanas e ambientais de maneira mais crítica, sensível e autêntica, frente aos padrões sociais vigentes (ARCHER, 2001, p. 61).

O primeiro contato dos estudantes com a temática foi uma atividade de leitura de imagens e transposição para a escrita, momento em que foi feita a leitura do livro de imagens Sem fim. Ele conta uma história, sem a utilização de recursos verbais, utilizando somente imagens, por meio das quais sugere uma narrativa sobre a convivência de um homem com uma árvore. As imagens permitem que o leitor construa a história calcado nas suas referências à medida que folheia o livro e observa as ilustrações.

Para Coelho (2000), os livros de imagem apresentam-se como uma tendência ou linha da literatura infantil e infantojuvenil contemporânea. Ela os descreve como “livros que contam histórias através da linguagem visual, de imagens que falam” (COELHO, 2000, p. 161). Assim, as imagens podem ser textos autônomos, sem necessitar da palavra escrita: “A criança não necessitaria das explicações do adulto para fruir a história; e, o que é mais interessante, por meio de uma linguagem que lhe é extremamente familiar, haja vista quanto o desenho é importante na atividade da criança” (FURNARI, 2003 p. 65). A autora afirma ainda que esse tipo de livro deve ter características como: estimular a imaginação e a atividade da criança; ter linguagem e estrutura próprias apropriadas ao universo da criança; as ilustrações devem ser originais, não estereotipadas (FURNARI, 2003).

No livro de imagem, é o leitor que transforma o enredo da história em palavras, fazendo o entrecruzamento da linguagem verbal com a linguagem visual, seguindo o caminho inverso do que se faz no processo de ilustração habitual, narrando o que as imagens sugerem. Por conseguinte, nesse tipo de livro, são as palavras que “ilustram” a imagem.

Marilda Castanha (2008), ao dissertar sobre a linguagem visual no livro sem texto, destaca a importância do aprendizado relativo à leitura de imagens, asseverando que utilizar a imagem como instrumento de linguagem foi – e ainda é – crucial para todos os grupos culturais.

Foi realizado um trabalho em sala de aula com o livro de imagem, contextualizado com as incursões pelas poéticas dos dois artistas (ambos que discutem em suas obras a relação com o meio ambiente). Os alunos produziram textos e ilustrações transpondo a sua leitura e interpretação do livro Sem fim. Eis um excerto de texto e ilustrações extraído da produção de uma estudante:

Figura 18: Ilustração de aluna – leitura e criação de história 1

Fonte: Arquivo da autora

Figura 19: Ilustração de aluna – leitura e criação de história 2

Fonte: Arquivo da autora

Sem fim: Então um dia Lucas estava carregando suas tralhas. E os brotos começaram a crescer. Então ele regava todos os dias, elas cresceram e fizeram companhia para a árvore. Ele empurrando suas tralhas encontra

uma árvore. O Lucas cuidou da árvore e a arvore se alimentou. Ele ensinou truques para a arvore para ficar com outras formas. A árvore o amava. Então chegaram os animais. E passou o tempo. E os dois floresceram. Então os animais se alimentavam dos frutos e se protegiam da chuva. Deitados vendo o por do sol. Então ele olhou para a caixa. Então ele abriu a caixa. Então ele pegou seu machado. Então ele se aproximou... Ele levantou e se aproximou mais. Então todos saíram. A árvore desviou. Então ele plantou algumas coisas. (Produção textual da aluna M. E.).

Ainda no que diz respeito ao livro unicamente composto por imagens, Castanha (2008, p.141) sugere que essa leitura siga alguns passos capazes de conferir unidade à sequência de imagens, dirigindo a atenção aos pequenos detalhes, reflexões e comparações das páginas, interpretação das nuances. De acordo com a reflexão da autora, pais e professores se sentem desconfortáveis com as possibilidades do livro de imagem, posto que, com base no aprendizado do código escrito, as características relacionadas às ilustrações dos livros vão sendo colocadas em segundo plano, como se o adulto fosse, aos poucos, “desalfabetizado de imagens”.

É transgressor conceber uma obra aberta, onde várias leituras possam se relacionar. É transgressor propor uma narrativa somente por elementos visuais. E é transgressor considerar que o livro sem texto, aparentemente um objeto lúdico, também oferece uma narrativa literária para diferentes leitores, sejam eles crianças ou adultos (CASTANHA, 2008, p.148).

Garcia Canclini (2008) afirma que devido ao hibridismo das comunicações contemporâneas, cada indivíduo faz uma espécie de recorte ou “coleção” própria de repertório o que, de certo modo, permite que cada um construa um arcabouço cultural próprio diante das mesmas referências. Exemplificando a multiplicidade de possibilidades que a leitura de um livro de imagens pode trazer, seria interessante transcrever a produção textual da aluna V.N.S.P, que criou uma narrativa com vários elementos de fantasia, saindo da lógica que a maioria dos colegas estabeleceu para a história de Castanha, na qual a relação do homem com a árvore é de amizade e identificação, enveredando sua criação para outro veio interpretativo.

Sem fim: Era uma vez, a muito tempo atrás, existia uma árvore amaldiçoada. Todas as posições que um cara chamado Jubis fazia, a tal árvore fazia também. Ninguém sabe ao certo por que isso acontecia, algumas pessoas dizem que essa história era falsa e outros dizem que é verdadeira. A história deles era a seguinte, esse cara ia um dia a cada estação na casa da sua avo que morava no meio de uma floresta, em um certo dia nessas visitas ele foi passear na floresta e encontrei essa árvore, ele achou estranho a arvore era muito colorida enquanto as outras eram... verdes. Ele começou a ir, mais vezes naquele lugar, sem saber que a arvore era amaldiçoada. Dizem que tentaram tirar a árvore, mas ela era

inquebrável que quanto quebraram as árvores ao redor, nasceram outras igual ela ao redor (fragmento da produção textual da aluna V.N.S.P).

Lima (2009) defende, assim como Barbosa (1991), Hernández (2000), Rojo (2002) e outros autores aqui mencionados, a necessidade de um alfabetismo visual por meio de um “sistema básico de aprendizagem, identificação, criação e compreensão de mensagens visuais” (LIMA, 2009, p. 73). A autora ressalta a ênfase colocada pela educação em todas as formas de linguagem verbal escritas, ao passo que identifica uma falta de preocupação com a experiência visual das crianças. A referida autora postula a premente necessidade de que se leve em consideração o universo visual presente no cotidiano dos estudantes, tornando esse arcabouço recurso para uma educação mais completa. Nas palavras dela: “a inteligência visual aumenta o efeito da inteligência humana e amplia o espírito criativo” (LIMA, 2009, p. 76). Assim sendo, esse tipo de literatura é tão importante para os professores alfabetizadores como os professores de classes mais avançadas, devido à ampla capacidade narrativa que o livro composto de imagens favorece.

A seguir, ilustrações compostas pelos estudantes com base no livro Ernesto, de Blandina Franco e José Carlos Lollo (2016) são exemplos da utilização da imagem como ferramenta narrativa.

Figura 20: Ilustração de aluno – recriação de Ernesto (1)

Fonte: Arquivo da autora

Figura 21: Ilustração de aluno – recriação de Ernesto

Figura 22: Ilustração de aluno – recriação de Ernesto (3)

Fonte: Arquivo da autora

Nesta etapa do projeto, procurou-se trazer para a sala de aula linguagens diferentes discutindo uma mesma temática: as imagens contando histórias, com Marilda Castanha; a escultura, com Krajcberg; a performance e a intervenção urbana, com Eduardo Srur. A proposta de trabalho envolvia produção de textos individuais, relacionando também as próprias referências na criação pessoal. Por conseguinte, as obras dos artistas seriam apenas pontos de partida, cuja infinidade de trajetos possíveis seria definida pelos estudantes com base na leitura das imagens.

Em sala de aula, tendo a leitura do livro de Marilda Castanha como ponto de partida, traçaram-se linhas intertextuais entre o trabalho dos artistas Franz Krajcberg e Eduardo Srur. O diálogo entre os discursos dessas três vertentes teve como fio condutor a questão ambiental, que aparece de maneiras diferentes, porém relacionáveis. Essas leituras teriam como culminância a produção textual calcada na leitura das imagens do livro de Castanha.

Os estudantes tiveram também contato com o pensamento do artista (escultor, pintor, gravador e fotógrafo) polonês, naturalizado brasileiro, Franz Krajcberg, que desenvolveu seu trabalho de maior destaque utilizando troncos e

raízes, sobre os quais realizou intervenções. Pautado nas questões ambientais, seu processo de criação consistia em viagens constantes à Amazônia e ao Mato Grosso onde fotografava os desmatamentos e as queimadas, revelando a destruição do meio ambiente. Delas retornava também com os materiais utilizados em suas obras - resíduos de queimadas e restos da devastação humana -, que serviram tanto como protesto como para mostrar a voz da própria natureza, distorcida, torturada e marcada pela destruição humana (RODRIGUES, 2002).

Figura 23 :Franz Krajcberg, sem título, 1980

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra6822/conjunto-de-esculturas

Krajcberg faz um apelo mudo, por meio das imagens das árvores dilaceradas em suas esculturas. Na sua poética, a degradação do meio ambiente, porém, não será tratada com especificidade no contexto do Brasil. Considerando-se encarregado da construção de pontes, pôde, em suas viagens pelo mundo, vivenciar cenários catastróficos em que a natureza era transformada em cinzas e os homens, com suas vidas interrompidas, eram reduzidos a lixo, em amontoados de corpos. Lembranças de um polonês sobrevivente da Segunda Guerra Mundial e

seus horrores. Assim sua obra se constitui na voz da natureza, muitas vezes calada pela violência da devastação humana.

Os alunos receberam a obra do artista Franz krajcberg com alguns protestos, pois as formas para eles eram estranhas e as imagens não faziam muito sentido, o que se abrandou depois da contextualização de sua biografia e dos motivos que alegava para a sua produção.

Sobre o artista plástico brasileiro Eduardo Srur, foi apresentado aos estudantes um vídeo de registro da performance Supermercado, no qual o artista, que discute em sua poética os limites de linguagem da Arte Contemporânea, confronta, por meio de uma ação performática, o consumismo como valor máximo da sociedade. O artista propõe, então, ações ilógicas como derramar sobre si os produtos das prateleiras de um supermercado. Sua obra permite discutir o papel da mídia e dos meios de comunicação nos comportamentos dos indivíduos e as suas consequências positivas ou negativas, caso do consumismo e também da degradação da natureza.

Diante dessas considerações, ressalta-se, concordando com Rojo (2002), que, historicamente, as tecnologias dos meios de comunicação em massa e as mídias atuais têm representações quase insignificantes nos processos de ensino escolar, fundamentado em práticas ligadas quase que exclusivamente ao escrito e ao impresso, da maneira mais tradicional.

Figura 24: Leitura de imagens, Eduardo Srur

Fonte: arquivo da autora

Também foi realizada leitura de imagens de uma intervenção urbana de Srur (2009), intitulada PETS, quando foram espalhadas ao longo da marginal do Rio Tietê em São Paulo, gigantescas garrafas pet. Nessa obra, o artista pretende que, por meio da admiração e estranhamento, e da inevitável percepção dos objetos de descarte e consumo de dimensões grandiosas, o participante/observador da obra recicle seu olhar e ideias sobre os problemas ambientais e o consumo desenfreado. Os pré-adolescentes apreciaram muito a obra PETs, pois disseram ser interessantes os grandes objetos espalhados por um ambiente urbano. Também demostraram compreender e gostar da crítica feita pelo artista do ponto de vista da preservação ambiental. Já a obra Supermercado, antes de se dizer algo sobre as motivações do artista, recebeu muitas críticas nas quais os estudantes apontaram o desperdício de alimentos, que eram jogados sobre o corpo do artista, e também sobre a ilogicidade das suas ações. Nesse caso, as críticas da maioria não se dissiparam após a contextualização.

O ensino da arte, sobretudo no que diz respeito à Arte Contemporânea, como revelam as obras dos artistas estudados no projeto, precisa passar pela compreensão contextual do objeto de estudo, indo além dos estudos dos elementos formativos de uma obra de arte e se aproximando das inter-relações entre a obra e outros contextos, entre estes os que fazem parte da vivência pessoal dos alunos.

Dessa maneira, a contextualização possibilitada pela incursão nas três referências utilizadas proporcionou um enriquecimento do repertório dos estudantes.

Figura 25: Eduardo Srur, PETS, 2008

Fonte: http://www.eduardosrur.com.br/oartista

Observe-se que desenvolvimento da capacidade de produção textual está intimamente ligado ao ato de ler, que, por sua vez, envolve diversos procedimentos e capacidades ligadas à percepção, às práticas cognitivas, afetivas, sociais, discursivas e linguísticas que se manifestam em interdependência. Capacitar o aluno para ler criticamente as propostas constantes dos meios de comunicação contemporâneos implica que se trabalhe na escola um conceito ampliado de leitura, que inclua as novas formas de interação leitor/autor surgidas recentemente.

Podemos dizer que, por efeito da globalização, o mundo mudou muito nas duas últimas décadas. Em termos de exigências de novos letramentos, é especialmente importante destacar as mudanças relativas aos meios de comunicação e à circulação da informação (ROJO, 2009, p. 105).

Podem ser feitas aproximações conceituais entre as proposições de Rojo às de Hernández (2000). Este reflete também sobre o modo como as mídias produzem formas do indivíduo ver mundo e, como no contexto educacional, essas questões podem ser problematizadas e contempladas.

A Arte Contemporânea traz no bojo das suas ideias assuntos pertinentes aos problemas enfrentados no quadro histórico atual, bem como nos gêneros textuais, imagens e outras formas comunicativas presentes no cotidiano dos estudantes.

Assim, em uma perspectiva sociointeracionista, a presente proposta de ensino interartes buscou oferecer aos estudantes recursos interpretativos para compreender as linguagens (livro-imagem, escultura, performance, vídeo, intervenção urbana) envolvidas em torno de um mesmo problema, produzindo reflexões ricas e profundas geradoras de novos textos, significados e fabulações. Os alunos perceberam, dessa forma, que as linguagens artísticas podem interagir em um mesmo contexto, da imagem à palavra escrita, da expressão plástica ao audiovisual, reforçando-se a criação pessoal de uma poética das correspondências por meio do desenvolvimento de suas capacidades de associar ideias e interagir criativamente com elas.

3.4 Cada Coisa: palavras e imagens na mídia e nas obras da artista Isabel de Sá e