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Exu ou o diabo cristão?

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CAPÍTULO II. EXU, O ORIXÁ FÁLICO DA MITOLOGIA NAGÔ-YORUBÁ

2.3 A demonização de Exu nos candomblés e em outras religiões afro-

2.3.9 Exu ou o diabo cristão?

Concluimos que, ao analisarmos o orixá Exu a partir dos mitos primordiais, entendemos que se trata de um orixá diferenciado, complexo, um deus difícil de estudar. “Exu é uma divindade do fogo. Na África foi ele quem trouxe o Sol” (BASTIDE, 2001, p. 162). Nesse sentido, Exu é o lux fero, o portador da luz, e não o portador das trevas como é o caso do diabo cristão. Vemos que existiu uma inversão de valores acerca da verdadeira função e do status desse orixá.

A partir da mitologia nagô-yorubá, constatamos que Exu é um orixá com múltiplos poderes, poderes esses adquiridos por sua esperteza, força, agilidade, movimento e ação. Ramos (2006) afirma que sem Exu não se faz nada. Exu tem um acúmulo de funções, transitando em todos os domínios, especialmente nos mais hostis, provocando as mudanças e as porosidades entre as fronteiras, abrindo passagens, novos caminhos e interligando mundos, agregando e desagregando. Previtalli (2009) comenta que Exu, ao construir, muitas vezes tem que destruir. Para que surja o novo, é preciso destruir o velho.

Portanto, Exu é o senhor das fronteiras, dos limiares, dos movimentos no tempo linear e também no tempo circular. É conhecedor dos caminhos horizontais e verticais, por isso Exu é um orixá amado e temido: amado pelos seus amigos e temido pelos inimigos. “Tu és amigo de fé de quem teu amigo é” (COSTA, 2011, p. 76). Exu é amigo de todos aqueles que também são amigos dele, por esse motivo, em solo africano, Exu é tido como “um protetor (...), e as pessoas na África usam orgulhosamente nomes como Èsùbíyìí, conhecido por Exu, ou Èsùtósìn. Exu merece ser adorado” (VERGER, 2002, p. 76). Isso prova que Exu na África não é uma divindade maléfica. Nesse sentido, caracteriza-se um paradoxo em relação à demonização de Exu, uma vez que, segundo algumas concepções, só faz maldade, principalmente às pessoas. No entanto, Exu, com o qual nos deparamos ao longo das pesquisas, e também nas crenças africanas, protege as pessoas contra as maldades, os malefícios, as forças estranhas, além de abrir caminhos. É o guardião dos portões e também do interior das casas, e esses não são papéis do diabo cristão. O diabo cristão não é guardião de lugar algum, ao contrário, invade as casas no intuito de destrui-las. O diabo não é um parceiro do homem, mas um inimigo. “Já Exu (Legbá) é um protetor das pessoas na Terra” (BASTIDE, 2001, p. 79).

Desse modo, Exu é aquele que estabelece a união ou a ligação entre os que estão embaixo com os que estão em cima (terra-céu), atendendo a uma dinâmica do tempo linear e do tempo circular. Exu une os princípios masculino e feminino (homem-mulher) através do falo, ou seja, do coito sexual, pelo acasalamento, unindo o que estava separado a exemplo da alusiva separação entre o céu e a terra.

[Exu] dá a ideia de que ele é uma divindade fálica, e o europeu, ao tocar no assunto, conserva subjacente tudo o que o cristianismo colocou de turvo e de pecaminoso na ideia de sexualidade. O membro viril ereto de Exu, todavia, nada mais significa do que a redescoberta do caminho rompido pela separação do céu e da terra. Trata-se de um principio de desordem humana, reflexo da ordem cósmica, e não de um principio de desordem moral, reflexo de desordem humana (BASTIDE, 2001, p. 219).

Portanto, a rejeição dos missionários cristãos em relação ao falo de Exu é devido aos preceitos morais bíblicos já mencionados e, também, aos resquícios do judaísmo-cristão que negam qualquer tipo de iconografias da imagem de Deus e alusões a gêneros e sexualidade pertinentes à divindade. Segundo Schwartz (1995), o judaísmo proibiu imagens de Deus, e esse Deus da concepção judaica seria desprovido de sexualidade, desprovido de falo, seria uma elevação aos ideais de perfeição ética.

O Deus dos judeus, ao contrário dos deuses do antigo Oriente Próximo e de muitas outras tradições religiosas, não tem relações sexuais nem gera filhos, pelo menos nos textos que chegaram a compor a Bíblia hebraica (SCHWARTZ, 1995, p. 18).

Na cosmovisão africana, conforme afirma Prandi (2001), o falo é o símbolo de Exu, o responsável pela cópula, o que gera filhos e garante a continuidade do povo africano e a eternidade do homem.

O falo representa a fertilidade da vida, portanto, o poder sexual reprodutivo e gerativo. Nas regiões da natureza, o sexo é um ato sagrado. E se ele é sagrado, seus frutos também são. A noção de pecado original seria uma aberração nesse sistema religioso, além disso, um dos ideais do estilo de vida yorubano era ter uma família numerosa e, portanto, o culto a Exu fazia- se essencial (MOLINA, 2011, p. 3).

Rehbein (1985) afirma que o falo é a salvação para o povo nagô-yorubá, portanto, é sagrado por ser um símbolo de fertilidade (continuidade). Para os africanos, o coito é de grande relevância; é a união carnal que gera filhos e propicia o continuísmo das espécies. “O homem é a vontade e o poder; a mulher, atiçadora

do fogo. Pela união dos dois se formou a sabedoria que modelou a Terra, o universo e todos os seres visíveis e invisíveis” (ADOUM, 1989, p. 157). No entanto, a negação do falo por parte do judaísmo-cristão é aceita também no cristianismo atual, onde Yahweh, segundo Schwartz (1995), é um deus assexuado, ou seja, eunuco. Concomitantemente, o diabo judeu-cristão é também castrado (assexuado). Nesse sentido, “Exu, de trickster e mensageiro fálico na África, virou diabo cristão castrado no Brasil Colonial, no Brasil Imperial e nos dias atuais (LAGES, 2003, p. 73).

Percebemos a desconstrução do mito original do orixá Exu ao ser ressignificado através do processo de cristianização, ou seja, a assimilação com o diabo cristão (assexuado). No entanto, “a partir do momento em que mito se transforma, ele morre (STRAUSS, 1976, p. 609).

No próximo capítulo, analisamos a ressignificação do mito do orixá Exu fálico e o surgimento do Exu-alma entidade (espírito ou guia) com suas representações iconográficas assexuadas, demonizadas e aceitas na umbanda, religião afro- brasileira sincrética e cristianizada que surgiu, no início do século XX, no Rio de Janeiro, e ressignificou o orixá Exu, resultando no coroamento da sua demonização. Constatamos que a demonização de Exu não ocorreu somente de fora para dentro, deu-se também de dentro para fora.

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